Além dos muros escolares: um resgate dos jogos tradicionais nas aulas de Educação Física |
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Licenciada em Educação Física Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC |
Karla Cristina Mathoso da Silva mathosok@hotmail.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 88 - Setiembre de 2005 |
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Brincando hoje...
Atualmente, ao observarmos as crianças brincando, percebemos que estas repetem papéis inspirados pelos programas televisivos, protagonizando as vivências dos personagens de desenhos animados. Quando questionamos um grupo de crianças que se encontram na primeira série do ensino fundamental sobre quais são as suas brincadeiras preferidas, praticadas com seus colegas em suas casas obtivemos como resposta: "vídeo - game, futebol, bola e boneca".
Em continuação a conversa, perguntamos sobre outras brincadeiras, inspiradas em nossa própria infância como brincadeiras com corda - pular corda, cabo de guerra, passar por cima/baixo sem encostar na corda, foguinho; amarelinha, pipa, peteca, elástico, pega-pega, esconde-esconde, taco, bolinha de gude entre outras e como resposta obtivemos apenas algumas positivas sobre tais vivências, que comparadas a nossa expectativa de resposta foram distantes do esperado.
Apesar do quadro ao qual nos deparamos, temos ciência de que pesquisar sobre os jogos tradicionais infantis é de fundamental importância, pois essas atividades são significativas e fundamentais para o desenvolvimento das crianças e podem ser apreciadas pela educação formal de forma eficaz. A criança ao jogar reconstitui a realidade através de sua ação lúdica, onde se reflete suas condições concretas e onde o conteúdo é o aspecto característico central elaborado pela criança a partir das atividades dos adultos e das relações que se estabelecem em sua vida social.
Segundo Souza (2001), ao inserirmos o jogo no processo de ensino-aprendizagem, estamos paralelamente incluindo nele o corpo da criança. Esse processo poderá propiciar o desenvolvimento de várias dimensões infantis, pois no brincar, o viver da criança, o seu existir, é o mais significativo, revelando a sua complexidade, a sua criatividade a sua imaginação e a sua humanidade, combatendo a visão fragmentada, pragmática e utilitária da sociedade produtiva que impede esse ser brincante de sonhar e viver feliz.
Concordando com Souza (2001), podemos analisar os valores intrínsecos aos jogos tradicionais infantis e refletir sobre suas possibilidades em relação ao processo de desenvolvimento das crianças, assim nos capacitamos a ousar sugerir que tais jogos sejam parte do processo educativo, na perspectiva que essa inclusão na escola venha a minimizar os efeitos da docilização do corpo em nome do desenvolvimento dito como intelectual.
Observamos que as escolas, em geral, negam as possibilidades de desenvolvimento que não estejam associados à cognição. As vivências experênciadas pelas crianças no seu cotidiano além dos muros escolares são praticamente desprezadas, tendo como motivo de tal exclusão o desrespeito a cultura lúdica infantil.
Por crer que um dos caminhos possíveis para o processo educativo infantil é a consideração da riqueza da cultura lúdica da criança viemos através deste trazer um resgatem de jogos tradicionais infantis realizando a seleção de alguns jogos1 em comunidades do interior de Florianópolis e relatados em sua tese de doutorado.) observados em comunidades do interior da ilha de Santa Catarina. "Jogos tradicionais infantis: são atividades lúdicas desenvolvidas em ruas, quintais, terrenos baldios, produtos da cultura popular transmitidos de geração em geração." (Souza, 2001)
Durante a análise dos jogos tradicionais infantis realizadas por Souza (2001), várias categorias cognitivas foram sendo identificadas. Este afirma sem perder de vista outras dimensões que essa atividade é rica em qualidades e habilidades cognitivas. Apresentamos as que mais destacaram no agir lúdico das crianças investigadas, esclarecendo que elas estão identificadas em cada jogo, são elas: criatividade, a análise e síntese, associação, causa e efeito, classificação, discriminação, figura e fundo, imaginação, memória, percepção espacial, percepção temporal e seriação.
As crianças são especialistas em brincar e, nas atividades lúdicas, elas desenvolvem seus aspectos cognitivos, afetivos e motores. O jogo, portanto, é um dos recursos concretos para o desenvolvimento infantil. As experiências e as ações lúdicas são fundamentais na autoconstrução da infância. No brincar, no jogar as crianças correm salta, arremessa, imitam, fazem de contra, sempre de forma alegre e prazerosa. Essas ações lúdicas produzem efeitos significativos que caracteriza todo o seu processo de desenvolvimento. Através dessas ações, a criança se comporta intencionalmente, buscando a sua transcendência. Nos seus raros momentos sem ocupação, no entanto, a criança ainda brinca, no jogo, o movimento é consciente, refletindo as múltiplas expressões e dimensões do universo infantil. Nessa ação, a criança torna-se um ser único e social, indivisível no que diz respeito às relações corpo e mente. O agir intencional da criança no mundo fica evidenciado nas suas ações lúdicas, pois, através da representação da realidade, ela utiliza símbolos e signos que lhe permitem a progressiva abstração das suas experiências sensório-perceptivas.
Assim, temos de entender que a ação motora da criança. O seu movimentar, resulta de uma combinação de diversos fatores, antropológicos, biológicos, culturais e psicológicos. O seu desenvolvimento motor sofre uma forte influencia da sensação, da percepção, da cognição, da emoção e da memória. O movimento da criança é singular e tipicamente humano, principalmente porque o seu corpo é muito mais do que um corpo físico se deslocando no tempo e no espaço é muito mais do que um simples conjunto de alavancas, ele é a sua instância de interação com o universo. Através desta investigação podemos apontar as qualidades motoras presentes nas brincadeiras, são elas: agilidade, coordenação, equilíbrio, força, flexibilidade, resistência, relaxamento, velocidade.
Quadro dos jogos observados2
A voz da garotada ... Uma experiência no BeatrizEm um breve convívio com crianças de 06, 07 e 08 anos, estudantes da primeira série da Escola Básica Municipal Beatriz de Souza Brito, conversamos várias vezes sobre as brincadeiras presentes em seu cotidiano, nos mais diferentes espaços, como em casa, com os vizinhos, na escola...Coletando seus depoimentos, cito as diversas atividades relatadas:
Pular corda, futebol, vôlei, alerta, esconde-esconde, pega-pega e suas derivações como americano e corrente, basquete, vírus da gripe, elefante colorido, pega árvore, mestre mandou, queimada, pique bandeira, handebol, estátua, alturinha, colchonete, perna de pau, bambolê, bobinho, tiro ao alvo, mímica, dança das cadeiras, odoleta, batata quente e cabo de guerra.
Durante as intervenções com esta turma várias das brincadeiras listadas foram realizadas. Como dinâmica utilizamos uma caixa ao qual denominamos como caixa surpresa, onde colocamos varias papeletas, em cada qual constava uma brincadeira indicadas pelos alunos em conversas anteriores. Realizávamos o sorteio, e a papeleta sorteada era a indicação de qual brincadeira seria realizada, assim, através de sorteios podemos atender aos pedidos de todos sem priorizar ou repetir as brincadeiras. Percebemos grande satisfação durante as brincadeiras e o domínio das regras dos jogos de forma constante entre as crianças presentes.
Dimensão pedagógica dos jogos tradicionais infantisOs jogos tradicionais têm para além de uma função lúdica, uma dimensão educativa e pedagógica importante. Estes sublinham a importância do trabalho em grupo, a formação de caráter, a imaginação, a destreza motora e agilidade assim como é um importante fator de socialização. Tais jogos surgem no âmbito dos tempos livres e eram praticados e inventados pela população. Já que as posses financeiras eram escassas, o povo tinha necessidade de produzir os seus próprios brinquedos, que podiam ser feitos de trapos, madeira, cartão, barro, etc. enfim todo o tipo de materiais que pudessem ser re-aproveitáveis.
Tal como já foi dito, os jogos tradicionais não têm apenas uma função lúdica, pois, hoje em dia dá-se um novo significado à palavra "jogo", especialmente no meio escolar e pré-escolar. Este é um direito da criança, no qual se desenvolvem capacidades psico-motoras importantes; tais como a imaginação, resolução de problemas, flexibilidade e estimulo mental, motricidade física para um bom desenvolvimento motor da criança.
Segundo Souza (2000), "a criança é um ser brincante"; o brincar é o seu modo mais privilegiado de expressão e de comunicação, permitindo-lhe desenvolver-se a partir das interações com o meio ambiente e com as estruturas que possui. O autor entende que as inserções do jogo tradicional do processo educativo das series iniciais do ensino são fundamentais e possibilitará o desenvolvimento da criança sem a necessidade de impor-lhes uma linguagem corporal estranha. Para Souza, utilizando o jogo tradicional como ferramenta durante as aulas, deixaremos de insistir numa educação que vem exigindo da criança uma atitude socializada por intermédio de uma pratica individualizada, enfatizando apenas os aspectos cognitivos de sua formação esquecendo que ela, além de cérebro, é corpo e espírito. O desenvolvimento harmônico da criança depende dessa compreensão por parte dos educadores.
Considerações finaisO jogo tradicional, além de ser o mundo de proteção da criança, possibilita-lhe espaço e tempo de prazer, de invenção, de criança, de experiência sem medos e de possibilidades de controle máximo possível do acaso. Oportiniza-lhe, também a conquista da liberdade, da autonomia, da compreensão do mundo vivido, da auto-reflexão, da materialização de projetos, idéias e desejos e a emancipação. Esses jogos diminuem, ainda, os efeitos dos jogos modernos, imbuídos de desejos de destruição, alienação e consumismo.
A característica mais marcante dos jogos tradicionais é o modo com as crianças, sujeitos deste estudo, brincam, tendo em vista que a felicidade delas é contagiante. Esses jogos apresentam valores implícitos e representam par a criança uma vivencia revolucionaria. São recursos que lhe permitem criar e recriar a cultura, vivendo papeis e valores que extrapolam o universo imediato em que se insere. A importância dos jogos, além de seus valores implícitos, relaciona-se também ao significado que a criança dá a tais jogos, os quais se revelam como espaço social criado intencionalmente por elas, exigindo, portanto uma aprendizagem social e uma convenção aceita por todos.
Verificamos que tradição e modernidade para as crianças andam lado a lado, pois, o prazer em brincar com brinquedos atuais, eletrônicos ou não, mas com designer mais futurista, lhes trás tanto prazer quanto brincar das mesmas brincadeiras que estão presentes a muitas gerações, brincadeiras estas que seus pais, seus avós, seus bisavós... brincavam. Os espaços e tempos podem diferir, mas o espírito infantil, brincante permanece vivo e acredito que continuará transpondo tempos e espaços, proporcionando alegrias, desenvolvimento e relações sociais das mais distintas formas.
Acredito que este assunto - jogos tradicionais infantis, é muito vasto e interessante, merecendo muitos estudos pelos educadores, principalmente pelos profissionais da Educação Física.
Notas
Observados por Souza (2001)
Souza (2001) Página 186
Referência
SOUZA, E. R. de. Do corpo produtivo ao corpo brincante: o jogo e suas inserções no desenvolvimento da criança / Edison Roberto de Souza; Francisco Antônio Pereira Fialho, orientador. - Florianópolis, 2001.
VELASCO, C. G. Brincar: o despertar psicomotor. Rio de Janeiro: Sprint, 1996.
VOLPATO, G. Jogo, brincadeira e brinquedo: usos e significados no contexto escolar e familiar. Florianópolis: Cidade Futura, 2002.
revista
digital · Año 10 · N° 88 | Buenos Aires, Setiembre 2005 |