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A quadra e os cantos: arquitetura de gênero
nas práticas corporais escolares

   
Escola de Educação Física da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, ESEF/UFRGS, Porto Alegre
(Brasil)
 
 
Vinícius Pauletti Gonçalves
Alex Branco Fraga

alexbf@cpovo.net
 

 

 

 

 
Resumo
    Este trabalho analisa diferenças de gênero evidenciadas por escolares em suas práticas de distribuição e ocupação dos espaços e a relação com os discursos sobre o corpo na legitimação da parte central de uma quadra esportiva como lugar dos meninos e dos seus cantos como o das meninas. Através de um trabalho investigativo de cunho etnográfico realizado entre março e maio de 2004, e baseado no conceito de arquitetura discursiva de Frago e Escolano (1998), relações de gênero de Joan Scott (1995) e Guacira Louro (1995, 2003), procurei analisar alguns elementos da constituição de gênero nas práticas corporais escolares.
    Unitermos: Educação Física. Corpo. Gênero. Arquitetura escolar.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 87 - Agosto de 2005

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Introdução

    Crianças brincando ativamente durante o recreio na quadra esportiva de uma escola pública. Cena corriqueira num espaço que, conforme relato de um dos meninos da Escola Estadual de 1ª a 3ª série Dináh Néri Pereira (anexa ao Instituto de Educação em Porto Alegre/RS), é "o lugar mais legal de brincar". Entusiasmo que não estava relacionado ao tamanho da quadra (12m de comprimento por 9m de largura), nem aos "equipamentos" disponíveis (duas tabelas de basquete, algumas linhas e números desenhados no chão), e sim ao significado atribuído pelas próprias crianças àquele espaço. Ali elas podiam correr, saltar, gritar na hora do recreio, ali eram realizados os grandes jogos (futebol, basquetebol, caçador, queimada), onde ocorriam as aulas de educação física e podia-se desfrutar da "liberdade" do movimento. Numa escola onde a arquitetura reservava tão poucas áreas abertas, um espaço um pouco mais "arejado" acaba se tornando um lugar muito valioso para as crianças.

    Numa das observações de campo realizadas nesta escola, a distribuição e a movimentação de meninos e meninas neste espaço chamava a atenção. Eles ocupavam praticamente a quadra inteira correndo de um lado para o outro. As meninas, por sua vez, não corriam tanto e restringiam suas brincadeiras a um dos cantos, frequentemente "invadido" pela brincadeira dos meninos. Ao ser perguntado sobre os motivos desse "desequilíbrio territorial", um dos que participava da "correria" respondeu sem hesitar:

- "Ah, as meninas não precisam mais do que um canto".

    Esta frase nos permitiu ver com mais clareza o foco da pesquisa de caráter mais etnográfico1 desenvolvida neste espaço da escola. A análise das relações de gênero nas práticas corporais escolares encontrara seu ponto de partida no enunciado acima e, desde então, as observações feitas semanalmente entre os meses de março e maio de 2004, durante o recreio escolar dos/as alunos/as da 3º série do ensino fundamental ganharam um novo rumo.

    Este trabalho investigativo culminou na monografia intitulada "A quadra e os cantos: arquitetura dos corpos nas práticas corporais", apresentada no curso de especialização "Pedagogias do corpo e da saúde" da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - ESEF/UFRGS (GONÇALVES, 2004) 2, base principal da construção do presente artigo. A intenção aqui é discutir as relações de gênero no interior da escola a partir dos significados atribuídos ao espaço da quadra esportiva pelos/as alunos/as que ali circulavam.

    De acordo com Joan Scott (1995), podemos entender o conceito de gênero a partir de duas premissas básicas: "um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [... e] uma forma primária de dar significado às relações de poder" (p. 86). Para Guacira Lopes Louro (1995), as desigualdades entre homens e mulheres vão muito além dos aspectos físicos, estão imersas numa rede de práticas discursivas que constituem homens e mulheres em sujeitos masculinos e femininos muito mais complexos do que as distinções de ordem fisiológica nos fazem supor. Judith Butler, citada por Guacira Louro (2003), afirma que a diferença sexual "não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas" (p. 47).

    Logo nas observações na quadra esportiva da escola durante o recreio, já saltava aos olhos a distribuição desigual entre meninos e meninas no desenvolvimento de suas brincadeiras, mas o fator que mais chamou a atenção foi a "naturalidade" que meninos e meninas lidavam e justificavam esta ocupação territorial naquela área específica.

    Certo dia, uma das meninas, quando perguntada sobre o que mais gostavam de brincar, respondeu:

- "De 'caçador'3, quando tem bola".

    Ao ser indagada porque ficavam restritas ao canto da quadra se a brincadeira que elas mais gostavam exigia um espaço maior, a mesma menina respondeu:

- "Porque os meninos correm mais, brincam de pega-pega..."

    Essa noção de que os meninos correm mais, e por isso precisam de mais espaço para desenvolverem suas atividades, encontra legitimação naquilo que Linda Nicholson (2000) chama de "fatos da biologia", que desde as primeiras sistematizações modernas vem atribuindo funções e delimitando destinos sociais de homens e mulheres com base numa noção de "eu fisiológico como um dado no qual características específicas são sobrepostas" (NICHOLSON, 2000, p. 11). A naturalidade com que uma das meninas justificou a maior ocupação de espaço na quadra por parte dos meninos mostra o grau de enraizamento deste discurso nas práticas corporais infantis. Para Alex Fraga, (2000, p. 97), "o poder de penetração de um discurso na vida social está associado a sua capacidade de ser visto como algo 'natural', tornando imperceptíveis seus efeitos entre aqueles que se encontram capturados" (p. 97). Questionar a aparente "naturalidade" desta premissa biológica na ocupação de lugares numa quadra esportiva de uma escola pública ajuda a entender de que forma as relações de gênero vão tomando corpo e ordenando a movimentação em espaços físicos desta natureza.

    A arquitetura de uma "instituição de confinamento" como a escola também carrega uma série de significados que determinam ações e legitimam certas narrativas. Agustín Escolano (Frago; Escolano, 1998) mostra que as categorias espaço e tempo não são simples representações de esquemas abstratos, aspectos neutros em relação ao processo de aprendizagem, eles também nos constituem como sujeitos de um determinado discurso. Para Louro (1995), instituições sociais como escolas, igrejas, hospitais, prisões expressam as relações de gênero que as constituem, ou seja, tais instituições sociais são generificadas (1995). O corpo escolar não apenas circula num determinado espaço, mas também se conforma às paredes, às cadeiras, às mesas, aos muros, às quadras que o circundam e as regras de uma movimentação inscritas nesta arquitetura.

A arquitetura escolar é por si mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores [...] marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos (Frago; Escolano, 1998, p. 26).

    Os espaços educativos, ainda conforme Frago e Escolano (1998), estão impregnados de uma série de valores que constituem uma espécie de "currículo oculto". Mesmim, citado por pelos mesmos autores (Frago; Escolano, 1998), entende que a arquitetura é "uma forma silenciosa de ensino", pesada estrutura que, ao ordenar as ações do espaço escolar, vai educando os corpos num dado sentido. Desde as inscrições que distinguem o banheiro masculino do feminino até a distribuição voluntária de meninos e meninas na quadra esportiva esse currículo silencioso e imponente vai sendo posto em operação e vai produzindo marcas de gênero na constituição dos corpos infantis. Nas palavras de Frago e Escolano, "o espaço não é neutro. Ele sempre educa" (1998, p.75).

O espaço comunica; mostra a quem sabe ler, o emprego que o ser humano faz dele mesmo. Um emprego que varia em cada cultura; que é um produto cultural específico não só às relações interpessoais - distâncias, território pessoal, contatos, comunicação, conflitos de poder-, mas também à liturgia e ritos sociais, à simbologia das disposições dos objetos e dos corpos, [...] à sua hierarquia e relações (Frago; Escolano, 1998, p. 64).

    Como espaço constituinte da arquitetura escolar e, portanto, de aprendizagem, a quadra esportiva impõe um determinado modo de ser que acaba correspondendo a um modo masculino de estar no mundo, mesmo com a crescente participação feminina nas práticas esportivas. Parece predominar na escola um olhar sobre o esporte que dá peso às habilidades motoras como marca de distinção fundamental entre os gêneros, mais do que ao significado cultural atribuído por um determinado grupo social aos corpos em movimento.

    A arquitetura de gênero inscrita naquele pequeno espaço foi pouco ganhando visibilidade também nas falas e nos gestos daquelas crianças. A performance de cada um dos gêneros, baseada numa noção físico-desportiva, acabava justificando para meninos e meninas a utilização por parte deles de um espaço maior do que o delas na quadra, mesmo quando os meninos estavam em menor número.

    É importante ressaltar, contudo, que a presente análise não pretende reforçar a dicotomia "meninos x meninas", ou que seria menos produtivo ainda, condenar meninos "opressores" e empunhar a bandeira das meninas "indefesas", pois, como diz Jonathan Culler (1997), tal movimento implicaria muito mais neutralização e permanência do que desconstrução e deslocamento. É preciso pensar, como diz Michel Foucault, "que o poder funciona e se exerce em rede, […] não se aplica aos indivíduos, passa por eles" (1995, p. 183). Neste sentido, o movimento analítico aqui empreendido visava dar visibilidade aos mecanismos de exclusão que estão intimamente ligados à posição de sujeito masculino e feminino construída pelos discursos de ordem biológica e que se encontra inscrita na arquitetura escolar.

    Os signos que marcam este espaço arquitetônico, ou seja, a estrutura e os elementos constituintes da quadra esportiva, também marcam e conformam os corpos de meninos e meninas nesta configuração discursiva biológica. A escola deve estar atenta aos mecanismos que fortalecem estas relações de poder e os tornam, quase que imperceptivelmente, "naturais" aos nossos alunos. Para "desnaturalizar" esse processo, é preciso construir procedimentos que permitam desmanchar não as diferenças entre homens e mulheres, que são muitas e de várias ordens, mas a desigualdade de oportunidades que se justifica em grande parte nos "fatos de biologia". Desigualdade que não estão restritas apenas à relação de gênero, ela alcança todos os sujeitos que se encontram de alguma forma marcados socialmente. Incluem-se aí questões de raça, de etnia, de religião, de estética entre muitas outras.

    Para enveredar por este caminho investigativo é preciso, de acordo com Guacira Louro (2003), "assumir os riscos, admitir os paradoxos, as contradições [...] ensaiar respostas provisórias, múltiplas, questionar todas as certezas sem que isso signifique a paralisia do pensamento" (p. 42). Ao demonstrarmos que existem relações muito mais complexas naquilo que consideramos "natural" na arquitetura escolar, esperamos que este trabalho de alguma forma auxilie educadores e educadoras em suas práticas pedagógicas.


Notas

  1. Inspirado na perspectiva teórico-metodológica traçada por Clifford Geertz (1989).

  2. Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no II Congresso Sul Brasileiro de Ciências do Esporte, realizado na cidade de Criciúma, no período de 7 a 9 de outubro de 2004, promovido pelas Secretarias Estaduais do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) em parceria com a Universidade do Extremo Sul Catarinense/UNESC.

  3. O "caçador" ou "queimada" é um jogo de caráter pré-desportivo. Cada componente de uma das equipes, a sua vez, arremessa a bola com o objetivo de acertar um/a dos/as colegas adversários/as no outro lado da quadra, eliminá-lo/a e contar pontos para sua equipe.


Referências

  • CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. São Paulo: Rosa dos tempos, 1997. Cap. 2, seção 4: Instituições e inversões. Disponível em: http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/insinver.htm Acesso em: 16 mar. 2002.

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

  • FRAGA, Alex Branco. Corpo, identidade e bom-mocismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

  • FRAGO, Antônio Viñao; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

  • GEERTZ, Clifford. Estar lá, escrever aqui. In: Diálogo. v. 22, n. 3, p. 58-63, 1989.

  • GONÇALVES, Vinicius Pauletti. A quadra e os cantos: arquitetura dos corpos nas práticas corporais. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Monografia de conclusão (Especialização em Pedagogias do Corpo e da Saúde) - Programa de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano, Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

  • LOURO, Guacira Lopes. Gênero, história e educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade. Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 101-132, jul./dez., 1995.

  • ________. Currículo, gênero e sexualidade: o "normal", o "diferente" e o "excêntrico" In: Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 41-52.

  • NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, p. 9-41, 2000.

  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 71-99. Jul./dez., 1995.

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