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A produção do corpo: uma interpretação do caso
Juliana Borges
, a partir da sua repercussão na imprensa

   
Grupo de Estudos Socioculturais
em Educação Física (GESEF)
Escola de Educação Física/UFRGS
Porto Alegre/RS
 
 
Carolina de Campos Derós | Fernanda Melati
Thaís Rodrigues de Almeida | Marco Paulo Stigger

stigger@orion.ufrgs.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Após ter vencido o Miss Rio Grande do Sul 2001, representando a cidade de Santa Maria, a modelo gaúcha, Juliana Borges, com a intenção de "amenizar alguns defeitinhos", submeteu-se a 19 cirurgias plásticas, com a intenção de ter maiores chances para vencer o Concurso Miss Brasil. Este fato gerou uma grande repercussão junto aos meios de comunicação, reascendendo as discussões sobre os limites da remodelagem do corpo. A partir deste acontecimento particular (aqui denominado o caso Juliana Borges) e da sua repercussão na imprensa (análise de 164 reportagens de jornal e revista, além de diversos sites da internet), busca-se, neste trabalho, oferecer elementos para que se possa compreender e discutir de que forma e até que ponto estes modelos corporais são construídos na sociedade contemporânea.
    Unitermos: Corpo. Cultura. Mídia.

Trabalho produzido pelo Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física Escola de Educação Física/UFRGS,
sob a coordenação do professor Marco Paulo Stigger. Apresentado no XIII Congresso Brasileiro de Ciência do Esporte de 2003.

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 87 - Agosto de 2005

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    No âmbito das ciências sociais, a discussão sobre o corpo não é nova. Já em 1935, no texto "As Técnicas Corporais", Marcel Mauss buscava mostrar como os corpos não são apenas biológicos, mas construídos socialmente. Além disto, ao utilizar termo técnicas corporais, o autor não estava apenas se referindo a determinadas técnicas e as suas relações com objetivos utilitários, mas, também, chamando a atenção para os elementos simbólicos que estão presentes em atos simples, como o caminhar. Isto pode ser identificado em outros aspectos relativos ao corpo, como, por exemplo, a postura e as formas de vestir, o uso de tatuagens, etc., através dos quais as sociedades e os grupos sociais também se distinguem uns dos outros, constituindo a sua identidade:

Juliana Borges    En una palabra, cada sociedad tiene -su cuerpo-, igual que su lengua, constituida por un sistema más o menos refinado de opciones entre un conjunto innumerable de posibilidades fonéticas, léxicas y sintácticas. Al igual que una lengua, este cuerpo está sometido a una administración social (De Certeau, 1977, p. 01).

    Neste sentido, cada sociedade elege diversos atributos que delimitam o que cada um dos seus integrantes devem ser, tanto do ponto de vista intelectual e moral, quanto no que se refere ao físico. Isto ocorre através do processo de socialização, onde a cultura, enquanto instrumento de controle, dita normas em relação ao corpo; normas a que o indivíduo tenderá, à custa de castigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de estes padrões de comportamento se lhe apresentem como tão naturais quanto o desenvolvimento dos seres vivos, a sucessão das estações ou o movimento do nascer e do pôr-do-sol (Rodrigues, 1986, p. 45).

    Na sociedade de consumo, onde a aparência é um elemento central, os indivíduos são conduzidos a consumir estas normas sociais de diversas formas, entre elas através da adequação do seu corpo aos padrões corporais que são disseminados via meios de comunicação de massa, tendo como referência diversos modelos, entre os quais as pessoas que estão em destaque nesta mesma sociedade (atores, atrizes, cantores, etc.). Apropriados pela indústria cultural, os corpos, adaptados a estes modelos, adquirem um valor de troca relativo à sua capacidade (maior ou menor) de associar-se às imagens de juventude, saúde, boa forma e beleza (Faetherstone, 1991 apud Carvalho, 1995).

    Nesta perspectiva, os meios de comunicação de que a sociedade dispõe, para além das informações e espetáculos que veiculam, difundem valores e formas de comportamento em relação ao corpo. Isto não é nenhuma novidade e nem é o objetivo deste trabalho reafirmar estas posições, já defendidas por diversos estudiosos da área.

    O que se busca aqui é oferecer elementos para que se possa compreender e discutir de que forma e até que ponto estes modelos corporais são construídos na sociedade contemporânea, a partir de um acontecimento exemplar de grande repercussão nacional (e até internacional), aqui denominado o caso Juliana Borges.


O que é o caso Juliana Borges?

    Após ter vencido o Miss Rio Grande do Sul 2001, representando a cidade de Santa Maria, a modelo gaúcha, Juliana Borges, 22 anos, com a intenção de "amenizar alguns defeitinhos"1, submeteu-se a 19 cirurgias plásticas2, pretendendo, assim, ter maiores chances para vencer o que seria a continuidade do concurso, agora no âmbito nacional.

    Considerado por muitos uma "maratona de cirurgias plásticas"3, este fato gerou uma grande repercussão junto aos meios de comunicação, sendo matéria de vários jornais e revistas, assim como tema de diversos programas de televisão: capa de revistas; notícia de primeira página de jornais; entrevistas em programas de grande audiência (Jô Soares e Hebe Camargo). Tal foi a visibilidade do fato, que o assunto foi tratado, inclusive em jornais e revistas de outros países, como, por exemplo, o New York Times e o Sunday Times.

    As várias discussões que o ocorrido suscitou foram abordadas pela imprensa a partir de vários pontos de vista, desde o olhar vinculado às áreas da saúde e da estética, até vinculadas aos aspectos éticos, no que se refere à validade da utilização da cirurgia plástica como um recurso para aumentar as chances de vencer o concurso. Mesmo que este último aspecto tenha sido o mote da maior parte das discussões, toda a repercussão social que o acontecimento proporcionou, chamou a atenção para a relevância que este tema tem na sociedade em que vivemos e, acima de tudo, reascendeu os debates sobre os limites da remodelagem do corpo.


Problema e objetivo

    Isto conduziu à questão central deste estudo, que busca saber o que levou Juliana Borges a tomar a decisão e a se submeter às 19 cirurgias plásticas. As respostas que esta pergunta poderia proporcionar, poderiam ser bastante simples e facilmente apresentadas: Juliana fez as cirurgias, pois queria vencer o Concurso Miss Brasil (o que conseguiu); Juliana fez as cirurgias, pretendendo vencer o Concurso Miss Universo (o que não conseguiu); Juliana pretendia, com isto, se promover e ganhar dinheiro (o que, segundo os dados obtidos, conseguiu).

    Mas não é isto que o estudo procura saber. Questionando de outra forma, o que se pretende saber é: que universo cultural é este, que conduz uma pessoa a se submeter à tantas cirurgias plásticas para amenizar defeitinhos (segundo se pode depreender, Juliana não foi a única candidata que, até hoje, se submeteu a cirurgias plásticas)? Que elementos interferem na constituição deste universo? Quem são seus protagonistas? Como, neste universo cultural, o corpo é vivido e pensado? Como, neste universo, o corpo é produzido?

    Motivado por estes questionamentos e centrados no caso particular de Juliana Borges, o objetivo do estudo é desvelar aspectos do universo cultural das misses e, através disto, oferecer elementos para a compreensão e reflexão acerca de como, na sociedade atual, são construídos os modelos corporais.


Metodologia

    O esforço para alcançar o objetivo do trabalho se sustenta na análise e interpretação de 164 reportagens4 retiradas da mídia impressa nacional e diversos sites da Internet, veiculadas logo após Juliana Borges ter vencido o Concurso Miss Universo 2001. As reportagens foram obtidas nos jornais: Zero Hora; Estado de São Paulo; Folha de São Paulo; Diário Gaúcho; O Globo. Além destas, foram utilizadas reportagens das revistas: Época; Veja; Istoé. Os sites visitados foram: IstoÉ online, Veja Online, Revista Plástica & Beleza, Estadão.com.br, JB Online.


O mundo das misses e seus modelos corporais

    Ao observar-se uma fotografia das concorrentes do concurso Miss Brasil ou Miss Universo, chama a atenção o quanto, em vários aspectos, as candidatas se assemelham. Este fato parece não ser uma coincidência, mas uma evidência de que, no que se refere ao corpo, o mundo das misses pode ser visto como um universo cultural particular, no qual há um padrão corporal que se espera das candidatas. Além disto ser identificável no contexto do mundo das misses visto de forma geral, pode ser verificado ao compararmos as vencedoras de diferentes épocas, o que mostra como cada época tem o seu padrão corporal, diferenciando-se de outras. Isto pode ser identificado pela comparação dos corpos das misses dos tempos atuais, com a época em que Marta Rocha foi Miss Brasil (1957): segundo Juliana Borges, "naquela época as formas eram mais arredondadas e hoje uma miss tem que ter forma de top model, porém mais turbinada"5. Um dos aspectos que determinam este padrão são as medidas que vigoram desde o início do concurso: 90 cm de busto e quadril; 60 cm de cintura.

    No que se refere às cirurgias plásticas, "é outra época, são novos conceitos", conforme afirma Deise Nunes6, lembrando que, antigamente, as misses não podiam nem pintar os cabelos, pois delas eram esperados atributos físicos irretocáveis, diferente do que ocorre hoje, quando elas podem utilizar todas as tecnologias disponíveis.

    Segundo as informações obtidas em vários dos jornais e revistas consultadas, o que vem prevalecendo atualmente neste universo, é o que a imprensa denominou padrão venezuelano. Este é o modelo corporal considerado adequado ao que se espera das candidatas, desde que verificou-se que, a partir da década de 90, sempre figura, entre as cinco primeiras colocadas, uma candidata oriunda da Venezuela. Este padrão é, de tal forma considerado vitorioso, que, na Venezuela, foram criadas escolas de misses, por onde passaram várias das candidatas.

    Além disto, este padrão é mantido pela atuação do que parece ser um novo tipo de profissional que o mundo das misses criou: o missólogo, um especialista na formação de misses que, conforme relatado na imprensa, é o responsável pela preparação das candidatas para a participação no concurso. No caso de Juliana Borges, é assim que se intitula Evandro Hazzi, ao afirmar, em entrevistas, que foi ele que a criou: "Juliana é uma jóia que eu lapidei e criei".


Conclusão: um corpo produzido

    O que se pode perceber é que, neste mundo das misses, existe como que um mercado de um determinado padrão corporal que é consumido por todos que ali estão inseridos. Para além dos bens materiais que circulam em torno dos concursos de misses, há, também, um consumo de bens simbólicos: valores, idéias, modos de pensar e viver o corpo.

    Ao que parece, este mercado funciona de forma semelhante ao que acontece na lógica do marketing, onde um produto a ser vendido é produzido, de forma a atender aos gostos e necessidades de um determinado público7. O missólogo, tendo conhecimento do que o mundo das misses espera das suas candidatas, cria/produz um corpo para atender este universo.

    No caso da Juliana Borges, o material que analisamos mostrou que, com a repercussão que este obteve nos meios de comunicação, não foi só a imagem (padrão corporal) da candidata adquiriu visibilidade neste mercado, mas também o próprio Concurso Miss Brasil: "o silicone tirou o Miss Brasil do esquecimento" (IstoÉ, 04/04/2001). Da mesma forma, a atitude de Juliana também promoveu o médico que realizou as cirurgias na candidata, o Dr. Almir Nacul que contabilizou, como uma cirurgia, cada ponto de incisão. Ou seja, Juliana submeteu-se a 3 grandes cirurgias, mas, na imprensa, foi divulgado que foram 19. Este fato foi considerado pelo repórter Adriano Catozzi (Folha de São Paulo), como um "forte, mas duvidoso esquema de marketing".


Notas

  1. Palavras de Juliana Borges em entrevista à revista Isto é Gente, de 26/03/2001.

  2. Na realidade, segundo Juliana Borges em entrevista concedida ao repórter Adriano Catozzi, foram 19 pontos de incisão, realizados em 3 grandes cirurgias (Revista Plástica & Beleza, n. 23, 2001)

  3. Jornal Zero Hora, 16/01/2001.

  4. Foram 164 reportagens onde o nome Juliana Borges apareceu. Apesar do número de reportagens ser grande, é importante ressaltar que muitas delas foram pequenas notas, além de - em muitas situações - serem informações que se repetiam.

  5. A palavra turbinada está vinculada à uma aparência musculosa do corpo, obtida, tanto via atividade física, como através de intervenção cirúrgica.

  6. Miss Brasil 1986 para Zero Hora (01/04/2001).

  7. Conforme a revista ÉPOCA, Juliana está inserida num meio profissional em que "convive com homens e mulheres que esculpem o corpo de acordo com as exigências das passarelas".


Bibliografia

  • CARVALHO, Yara Maria de. O "Mito" da Atividade Física e Saúde. São Paulo: Hucitec, 1995.

  • DE CERTAU, Michel. Historias de cuerpos. IN: Revista Historia y Grafía. México: Universidad Iberoamericana, nº 15, julho - dezembro 1997.

  • FAETHERSTONE, Mike, HEPWORTH, Mike & TURNER, Brian S. The body - Social Process and Cultural Theory. Great Britain: Sage, 1991.

  • MAUSS, Marcel. Sociologie et Antropologie. Paris: Quadrige/PUF.

  • RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos Editora, 1986.

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revista digital · Año 10 · N° 87 | Buenos Aires, Agosto 2005  
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