O nicho 'Esportes de Aventura': um processo de civilização ou descivilização? |
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*Mestrando em Ciências Sociais Aplicadas – UEPG Integrante do Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade UFPR, Grupo de Pesquisa Esporte, Lazer e Sociedade – UEPG e Ciências Sociais e Interdisciplinaridade – UEPG Administrador da lista Sociologia do Esporte do CEV (cevsocio) **Doutor em Educação Física - UNICAMP Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná Cefet-PR – Unidade de Ponta Grossa; Professor do Programa de Mestrado em Engenharia de Produção do Cefet- PR |
José Roberto Herrera Cantorani* cantorani@cev.org.br Luiz Alberto Pilatti** luiz.pilatti@terra.com.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 87 - Agosto de 2005 |
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Introdução
Buscamos, com este trabalho, compreender os fenômenos relativos às práticas corporais compreendidas nos esportes de aventura. Abordamos o fenômeno à luz das teorias relativas à expansão do consumo esportivo na sociedade contemporânea, baseando-nos, paralelamente, no fato de o esporte moderno, se apresentar, em certa medida, como uma das poucas maneiras de o homem contemporâneo se expressar instintivamente na atual sociedade.
Convém frisar que a abordagem do tema a partir da perspectiva que nos propusemos é apenas uma dentre outras possíveis e, que este, se trata de um texto exploratório, não tendo, assim, a pretensão de traçar diretrizes metodológicas, e neste aspecto, nem tão pouco exclui outras possibilidades de abordagem.
Os esportes de aventura, nas últimas duas décadas, vêm sendo marcados por grande desenvolvimento e repercussão. O crescimento do número de praticantes das diversas modalidades foi elevado e o surgimento de novas modalidades também é um fato constatado.
Segundo PARLEBAS1, a Educação Física vive atualmente uma fase difícil em sua evolução em função de procedimentos antiquados frente ao surgimento, a cada ano, de novas práticas esportivas.
Partindo então deste conceito, seríamos levados a acreditar que o surgimento de tantas novas modalidades incorporadas à terminologia "esportes de aventura" atinge direta ou indiretamente a Educação Física.
Acreditamos que para buscarmos o entendimento e o significado do surgimento e crescimento das muitas modalidades inseridas neste contexto dos esportes de aventura se faz necessário que as estudemos no contexto e segundo os conceitos do próprio esporte. Conseqüentemente, uma questão de formulação bem simples nos parece ser mais apropriada. Ou seja, o que está favorecendo o surgimento de tantas novas modalidades esportivas? Ou ainda, sofisticando e fechando um pouco mais: o que está levando as pessoas, no país do futebol, a buscarem novas modalidades esportivas?
Dada a complexidade e diversidade que a terminologia "esportes de aventura" nos apresenta, buscaremos, primeiramente, verificar onde está a brecha nos esportes modernos para o surgimento de tantas novas modalidades esportivas. Feita tal investigação, trabalharemos a evolução dos esportes de aventura partindo de um esporte que se apresenta, pelo menos inicialmente, como um esporte relacionado à terminologia e a uma história que, a priori, nos leva a crer que tenha dele próprio surgido tal terminologia. Na seqüência, trabalharemos o desenvolvimento desse esporte, o surgimento de novas modalidades, a partir deste, e a sua evolução, chegando aos esportes de aventura da sociedade contemporânea.
Não obstante, para uma melhor compreensão do que são os "esportes de aventura" hodiernos vamos estudá-los no contesto em que estão inseridos, ou seja, uma sociedade capitalista em que as regras do jogo se apresentam em prol do lucro.
Esporte moderno e "emoção"O esporte moderno caracteriza-se por aspectos particulares. Um deles, o objetivo de transmitir ao público emoções2, que na sociedade hodierna tornam-se cada vez mais controladas, tem sido objeto de estudo de muitos autores. Entre eles, Norbert ELIAS que, como veremos através de suas palavras logo abaixo, cada vez mais e a cada momento restringe-se ao esporte moderno tornar possível a experimentação de emoções de extrema excitação, que em tempos passados não eram condicionadas a locais nem a momentos próprios, podendo o homem se expressar mais livremente perante tais sociedades.
Faremos, primeiramente, algumas observações sobre aspectos analisados por ELIAS no processo de civilização. São eles: a sociogênese, a psicogênese e atividades do tipo miméticas. A sociogênese diz respeito ao desenvolvimento, em longo prazo, das estruturas sociais. Um processo de centralização rumo à monopolização de todo o conjunto de processos sociais, que para nós, vale salientar o controle da violência. A psicogênese, por sua vez, aborda, sobre tudo, a passagem dos mecanismos de coação exteriores para mecanismos interiores, ou seja, uma espécie de internalização dos ideais de civilidade, uma disciplinarização de si.
Há, porém, de se considerar que ELIAS expõem esses dois aspectos em um processo de interdependência, ou seja, uma relação mútua de dependência entre eles. Com base nessas duas dimensões e conseqüente processo de interdependência, ELIAS constrói uma teoria da civilização. Uma civilização que chega a um ponto de regulação, coordenação, de funcionalização e civilidade, que para se satisfazer, em certos aspectos, tornou-se necessário a criação de atividades do tipo miméticas.
Em "Esporte Moderno: possibilidades agressivas na sociedade hodierna" procuramos mostrar que o esporte moderno se apresenta como possibilidade, aceita até certo ponto, de materialização da agressividade e, que por esse motivo, torna-se fundamental para a vida societária hodierna e, conseqüentemente, facilitador de sua própria venda e consumo. Procuramos, ainda, examinar como a relação entre os sentimentos agressivos e o esporte foi sendo construída ao longo dos tempos e, como essa relação determinou que o esporte moderno assumisse uma postura de compensador na sociedade contemporânea.3
Para a compreensão deste conceito ELIAS4 é peça chave, pois ao estudar O Processo de Civilização, chamou de "miméticas" as atividades capazes de produzirem emoções semelhantes àquelas de características extremamente sérias da vida. Assim, essas atividades do tipo miméticas foram sendo aperfeiçoadas frente ao processo em que o homem, para escapar do autocontrole imposto pela sociedade através de estruturas e mecanismos de regulação e controle dos afetos/impulsos, desenvolveu para compensar a falta de possibilidades de ações de extrema excitação. ELIAS E DUNNING relatam o seguinte:
Tanto quanto se vê, as actividades de lazer enquanto área social de libertação das restrições do não lazer podem encontrar-se nas sociedades em todos os estádios de desenvolvimento. [...] Nos primeiros tempos, numerosos tipos de actividades religiosas possuíam funções análogas às que as atividades de lazer têm hoje - várias atividades de lazer do nosso tempo, em particular as do tipo "mimético", possuem funções semelhantes àquelas que alguns tipos de actividades religiosas tinham nesses tempos.5
E completam:
As funções específicas do desporto, teatro, corridas, festas e de todas as outras atividades e acontecimentos de uma maneira geral associados ao termo "lazer", em especial de todas as actividades miméticas e dos acontecimentos do mesmo gênero, têm de ser estabelecidas relativamente a esta ubiqüidade e estabilidade de controlo das excitações. É com esta polaridade que nos preocupamos aqui. Sob a forma de factos de lazer, em particular os da classe mimética, a nossa sociedade satisfaz a necessidade de experimentar em público a explosão de fortes emoções - um tipo de excitação que não perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, como sucede com as excitações do tipo sério.6
Com isso, realçamos o entendimento de que, para o homem, a competição, assim como a cooperação e o conflito não são apenas processos sociais, mas necessidades, que quando dirigidas ao esporte, cria-se uma ligação, uma comunhão de extremo significado e peculiaridade, creditando-lhe, ou seja, ao esporte, um caráter compensador, não só, mas, principalmente, frente à falta de possibilidades de ações agressivas de satisfação7. Tornando-se, assim, facilitador de sua própria venda e consumo.
Analisando esses processos sociais e as suas relações com o meio esportivo, procuramos avançar um pouco mais em nossa abstração de que o esporte é o meio pelo qual o homem extravasa seus instintos agressivos e todas as suas frustrações diárias acarretadas por um modo de vida altamente civilizado.
Contudo, ao levar em conta a dinâmica do esporte hodierno, há de se considerar que tais práticas sugerem muito mais excitações agradáveis em seus espectadores e telespectadores que a seus próprios praticantes. Em verdade, os jogos ou passatempos, através da sua codificação e institucionalização, tornaram-se "esportes", e estes, após o advento dos satélites8 e conseqüentes veículos, tornaram-se o que hoje conhecemos por "esporte moderno", "esporte-espetáculo", e/ou "esporte-indústria", como melhor encaixar ou convier, dependendo da condição e/ou momento em que estiver sendo empregado.
Segundo esses aspectos, não nos parece insensato ou ilógico imaginarmos que o consórcio entre o veículo televisivo e o grande e crescente campo9 caracterizado pela busca de atividades de "extrema excitação"10 ou excitações agradáveis, como detalhado em ELIAS, ou ainda, "libertadoras de instintos agressivos"11 , como trabalhado em Hans LENK, tenha se constituído no terreno fértil no qual se desenvolveu de forma espantosa o esporte moderno, atingindo assim, uma dimensão planetária como a que conhecemos em tempos atuais.
De fato, ao examinar o desenvolvimento do esporte moderno, esta nos parece ser uma conclusão racional. Contudo, é também um fato que nos remete o pensamento a um ponto mais adiante, qual seja o de que devido a um público consumidor cada vez maior, em grande número o teleconsumidor, o esporte moderno passa cada vez mais a responder a interesses de venda, com vistas à satisfação dessa massa12.
Dessa forma, aqueles que praticam o esporte encontram-se envoltos por normas que respondem aos interesses do espetáculo, fazendo daquilo que era um jogo, praticado com prazer, uma profissão cada vez mais séria e parte de um grande negócio.
Para que melhor possamos esclarecer e para ampliar um pouco mais nossos horizontes com relação ao assunto em questão, recorremos ao uso de algumas palavras de Eric DUNNING. O autor, ao referir-se à suposta tendência no sentido da "esterilidade", "seriedade" e "caráter profano" do esporte moderno, afirma ser Stone13 quem trata este problema de maneira mais adequada:
"Todo o desporto", afirma Stone, "é afectado pelos princípios antinômicos de jogo e espetáculo", isto é, encontra-se orientado de modo a originar satisfação, quer nos jogadores quer nos espectadores. Mas o "espetáculo" para os espectadores é, de acordo com Stone, a "ausência de jogo", a destruição do caracter de jogo no desporto. Sempre que um grande número de espectadores assiste a um acontecimento desportivo, este transforma-se num espetáculo, realizado em função dos espectadores e não dos participantes directos. Os interesses dos primeiros precedem os interesses dos últimos. O prazer de jogar é subordinado à realização de actos que agradem a multidão. O desporto perde assim a sua incerteza, a espontaneidade e o caracter de divertida inovação, torna-se um tipo de ritual, previsível, até mesmo predeterminado nos seus resultados.14
Não pretendemos aqui discutir a esterilidade ou o caráter profano ou, ainda, a marginalização do esporte posto em separado do processo cultural, como é colocado por HUIZINGA, pois também não acreditamos nisso. Pretendemos, isso sim, destacar a seriedade com que vem sendo tratado o esporte, não a rigor como defende RIGAUER, mas em certa medida, como quando externa que o esporte passa a caracterizar-se, tal como as formas de trabalho nas sociedades industriais, pela luta pelos resultados15 outras palavras, o esporte moderno ao se estruturar profissionalmente está a se tornar tanto mais sério quanto cada vez mais uma profissão e tão somente profissão.
Se estes diagnósticos estão corretos, acreditamos que começamos a dar corpo à compreensão daquilo que, pretensiosamente, defendemos como teoria para uma análise presente e relevante sobre a recente massificação dos esportes de aventura. Ou seja, se levarmos em conta que tanto em ELIAS16 como em Hans LENK17 o esporte moderno - pelo primeiro referido como atividades do tipo miméticas18 e pelo segundo como libertador de instintos agressivos - reflete-se na sociedade hodierna, como uma válvula de escape das amarras sociais no que se refere à comportamento, à forma se expressar, de agir e se expor perante o meio em que vivemos, este já não permite, ou permite muito pouco, que o seu "praticante" assim o faça. Ficando assim, essa válvula de escape, muito mais a serviço de seu público alvo, o espectador e telespectador.
Em se falando de futebol, por exemplo, já que se trata do esporte número um - não apenas em nosso país, mas a nível mundial -, os campos de várzea, de um modo geral, e salvo as exceções, já nem existem mais. As crianças e adolescentes hoje começam a jogar em escolinhas, nas quais se ensinam táticas e técnica. A seriedade já começa no "início" da coisa. Mas e a malandragem, o drible, o "drible moleque"? Em outras palavras, trata-se de uma escola preparatória para uma profissão. E, por tanto, séria, se abstendo daquilo que diverte e que da prazer (o "drible", a "farra", "a beleza da jogada que antecede a um gol"), ou, como em ELIAS, as chamadas excitações agradáveis19.
Dessa forma, nos parece razoável que se o homem moderno tem no esporte uma forma de se expressar instintivamente e, que se no esporte moderno ou esporte profissão a coisa caminhe para normatizações, fato que o tornam cada vez mais controladores, como a própria sociedade, diga-se de passagem, esse mesmo homem passe a buscar novas fontes de materialização de excitação agradável e de prazer.
Nessa busca por novos meios de extravasamento das emoções, é possível que os esportes de aventura venham servindo de ancoradouro para tal busca, a ponto de estarem crescendo tanto em número de praticantes como em variedade de modalidades, criando assim, uma demanda e conseqüentemente um campo a ser mercantilizado, um nicho que as indústrias do esporte prontamente vem explorando.
O aparecimento dos esportes de aventuraPrimeiramente, acreditamos ser necessário nos atermos para o fato de que, ao longo da evolução humana, sempre existiram práticas que envolvessem desafios e aventuras em que fortes emoções20 se faziam presentes. Contudo, tais práticas não podem ser chamadas de "esportes de aventura", pelo fato, é claro, de que não eram atividades esportivas, pelo menos não no sentido que é atribuído hoje à expressão. E, por fim, estas não eram dotadas da função que o esporte assumiu mais recentemente em nossa sociedade.
Em segundo plano é preciso lembrar BOURDIEU quando diz que a história "pode responder esta questão [...] de saber a partir de que momento se pode falar em esporte, isto é, a partir de quando se constituiu um campo de concorrência no interior do qual o esporte apareceu definido como prática específica, irredutível a um simples jogo ritual ou ao divertimento festivo."21
Em outras palavras, muitos dos esportes modernos tomaram forma a partir de atividades ancestrais sendo então institucionalizados com regras específicas e por entidades gestoras. Possivelmente, no decorrer desta evolução, descobriu-se um nicho "aventura", ou seja, um segmento do mercado esportivo oferecendo novas oportunidades de negócio.
O surf como precursor dos esportes de aventuraDentre os esportes radicais acredita-se que o surf já era conhecido há aproximadamente mil anos, sendo, portanto, praticado desde cerca de 900 d.C. Existe uma lenda, que descrita em uma boa parte dos escritos sobre o surf, que fala sobre um rei do Taiati ter navegado até o Havaí só para surfar. Após conhecer várias ilhas encontrou ondas perfeitas em local chamado Mokaiwa na ilha de Kauai, onde viveu por muitos anos tornando-se o rei da ilha.22
Desde então o surf vem evoluindo passo a passo. No início eram utilizados enormes objetos de madeira feitos a partir de troncos de árvores. O tamanho foi diminuindo, surgiram as técnicas de shapear, e hoje elas são feitas de poliuretano cobertas de fibra de vidro.23
O capitão James Cook ao descobrir o Havaí, em 1778, e se deparar com nativos dropando as ondas abre o caminho para a transformação do que era apenas uma atividade de prazer no esporte como o conhecemos hoje.24
Cook considerou o surf uma atividade relaxante, mas diversos missionários protestantes que habitavam o local não tiveram a mesma opinião e durante todo o século 18 desestimularam a prática do esporte. Até o início do século 20 o esporte permaneceu por baixo até conhecer o nome do "pai do Surf " Duke Paoa Kahanamoku, que manteve o surf verdadeiramente vivo graças a sua simples e pura persistência pelo esporte dos reis.25
Até então, o mundo não tinha idéia do que era o Hawaii, muito menos o surf, entretanto nas Olimpíadas de 1912, em Estocolmo, Duke Kahanamoku ganhou uma medalha de ouro na natação quebrando o recorde mundial nos 100m estilo livre e uma de prata no revezamento 4 x 200.26 Oito anos mais tarde, nas Olimpíadas de Antuérpia, Duke já aos 30 anos, conquistou medalhas de ouro, e graças a esse feito provou ser o nadador mais rápido do mundo. Somente nas Olimpíadas de Paris é que Duke perdeu sua colocação para um nadador bem mais jovem do que ele, chamado Johnny Weismuller. Este, anos mais tarde, tornou-se um conhecido ator de Hollywood, interpretando em vários filmes o papel de Tarzan. Duke, filosoficamente comentou: "Pelo menos, foi necessário o Rei das Selvas para me vencer".27
Após sua vitória em Estocolmo ele introduziu o surf na América em 1913 e na Austrália em 1915, sendo que, graças à sua posição de campeão olímpico, seus esforços não foram em vão. Tais esforços vingaram e floresceram, formando o embasamento do que seria o surf na Era Moderna. Ele morreu em 1986, aos 94 anos, mas até hoje todos os surfistas lembram daquele que foi e sempre será lembrado como o "pai do surf moderno".28
No Brasil, durante os anos 50, um grupo de cariocas começou a descer as ondas de Copacabana com pranchas de madeira. O esporte começava a se popularizar. As primeiras pranchas de fibra de vidro, importadas da Califórnia, só chegaram aqui em 1964.29
Em 15 de junho de 1965, foi fundada a primeira entidade de surf do país, a Federação Carioca. Ela organizou o primeiro campeonato em outubro daquele mesmo ano. Mas o surf só seria realmente reconhecido como esporte em 1988 pelo Conselho Nacional de Desportos.30
Partindo então do surf, outros esportes foram sendo incorporados a esta terminologia, uns criados a partir do próprio surf como: skysurf, snowboard, windsurf, wakeboard e o próprio sket31, e outros não derivados do surf, como: bungee jump, rafting, rapel, escalada e muitos outros.
Os esportes de ventura e o processo civilizadorA partir dos anos 80, há um grande desenvolvimento dos esporte de aventura, tanto em diversificação de modalidades quanto na organização dessas modalidades. Em conseqüência, vem ocorrendo uma diminuição do nível de riscos envolvidos, pois nos últimos anos passou a contar, devido à demanda, com empresas especializadas em equipamentos de segurança, que, por sua vez, se tornam cada vez mais sofisticados.
Estes dados referenciais, por um lado, parecem sugerir que tais esportes fazem parte de um processo civilizador, devido a sua evolução quanto ao nível de riscos envolvidos, e devido também ao fato de que para a exploração deste nicho, a institucionalização e as normatizações das modalidades que oferecem uma respectiva demanda já estão ocorrendo.
Não obstante, poderíamos entender esse fato como contraposição ao processo de surgimento dos esportes de aventura. Ou seja, que talvez seja pelo fato do homem tentar se abster dos esportes demasiadamente institucionalizados que novas modalidades vão surgindo.
No entanto, a estrutura esportiva institucionalizadora vai progressivamente tomando conta desses esportes que estão surgindo. E outros vão surgindo à medida que os primeiros vão ficando carregados de normas, e novamente a estrutura esportiva vai se encarregando de sua institucionalização. Para BOURDIEU "[...]esse espaço dos esportes não é um universo fechado sobre si mesmo. Ele está inserido num universo de práticas e consumos, eles próprios estruturados e constituídos como sistemas."32
O próprio surf, usado aqui como forma de caracterizar o início e evolução da terminologia em questão, hoje já é possível pensar sobre o seu posicionamento em relação à aventura. Não se fala na modalidade sem que se venha à mente a idéia de competição e/ou profissão. Contudo, há ainda aqueles que o praticam de uma forma mais radical, aliás, da mais radical possível, e que o fazem por prazer, deixando de lado as competições. Um exemplo é prática das grandes ondas, que é para poucos.
Ainda na trilha dos esportes de aventura, verificamos que este, como todos os outros esportes que por ELIAS foram denominados miméticos33, nos servem de meio de extravasamento de emoções, de experimentação de sentimentos primitivos que estão relacionados aos nossos instintos e que, por isso, apesar do nível de civilização atingida, não são esquecidos. Caracterizam-se, então, por oferecerem um ponto de fuga dos rígidos controles sociais de comportamento, e que são aceitos pela própria sociedade. Teriam então os esportes de aventura uma ligação com o processo de "descivilização", uma contraposição não planejada do processo civilizador?
Para ELIAS, a luta contra o controle do Estado constitui uma das principais características do comportamento da dinâmica de todas as sociedades-Estado, essa luta é canalizada pela "configuração anatômica" da sociedade. Se pensarmos da mesma forma em relação ao esporte de hoje, o esporte-moderno, veremos que este possui a mesma "configuração anatômica", o que nos faz retroceder o pensamento ao ponto em que ELIAS diz que o esporte serve de "laboratório orgânico" para se compreender a sociedade.34
Se o esporte, de um modo geral, é uma válvula de escape da dinâmica de controle das sociedades-Estado, poderíamos, então, considerar os esportes de aventura como uma forma de escapar da mesma "configuração anatômica" presente no esporte-moderno. Interpretação a ser considerada, principalmente se levarmos em conta o exemplo do surf, do qual novos ramos, mais radicais, vão surgindo ao passo em que a modalidade vai sendo normatizada e profissionalizada.
Dito de outra forma, à medida que a estruturação do campo de uma modalidade dos chamados esportes de aventura passa a responder à mesma estruturação do campo esportivo, em que uma reprodução da cultura é convertida em campo de investimento capitalista, praticantes interessados apenas no prazer da prática esportiva dão forma a uma nova prática.
Como demonstra GEBARA, o espetáculo esportivo se constitui e se desenvolve num "mercado onde o consume se define pelo tempo socialmente disponível, preponderantemente comercializado pela mídia [...]". E, em seguida, "trata-se de aproveitar a existência tanto deste tempo como de um enorme contingente de praticantes amadores para construir um mercado voltado para grandes públicos com potencial de consumo de imagens espetaculares [...]".35
No mundo capitalista não se perde tempo nem espaço, o esporte é um produto que é vendido de diferentes formas a diferentes camadas sociais, e este nicho "esportes de aventura", por sua vez, está cada vez mais mercantilizado para suprir a uma demanda já existente.
Considerações finaisEm uma sociedade altamente civilizada, o esporte hodierno aparece como uma válvula de escape, uma forma do homem se expressar instintivamente. Mas, considerando que os esportes são um meio de se escapar da pressão comportamental imposta pela sociedade, os "esportes de aventura" talvez tenham se proliferado por se apresentarem como um meio de escapar da ordem imposta pelo próprio esporte moderno.
Contudo, em uma sociedade capitalista, quando uma demanda é criada, ela é prontamente explorada. Como nos indica ELIAS, o esporte não deve ser encarado como algo separado da sociedade e, tão pouco a sociedade em separado do esporte, ambos interligam-se em uma cadeia de interdependências que estruturam o sistema de forma global, um processo de interação, ao qual ELIAS se refere como "dinâmica imanente das configurações".36
Através dessas palavras compreendemos e tentamos nos fazer compreender que para se estudar qualquer que seja o esporte é preciso relacioná-lo ao meio em que está inserido, ou seja, a própria sociedade. É dessa perspectiva que analisamos o nosso objeto de pesquisa e com base nela desenvolvemos a idéia da dinâmica de interdependência entre a sociedade e o esporte, entre o esporte e os esportes de aventura, e entre a sociedade e ambos, uma vez que no processo histórico estão todos sujeitos à influência de uns sobre os outros.
Notas
PARLEBAS, P. Perspectiva para uma Educacion Física Moderna. Junta de Andalucia: IEF, 199
Uma das idéias que nos ocorrem quando se menciona a orientação de um processo de civilização é a das mudanças no sentido de um maior autocontrole. Elias, externa que: "O desporto tal como outras atividades de lazer, no seu quadro específico pode evocar através dos seus desígnios, um tipo especial de tensão, um excitamento agradável e, assim, autorizar os sentimentos a fluírem mais livremente". ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA DA EXCITAÇÃO. Lisboa: DIFEL, 1992. p. 79.
Ver: CANTORANI, J. R. H. Esporte Moderno: possibilidades agressivas na sociedade hodierna. Conexões: educação, esporte, lazer. Campinas, n. 5, p. 131-141, dez. 2000.
ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ...
Op. cit. p. 104.
Op. cit. p. 111-112.
Essa é uma das características, do esporte moderno, contidas na tese da função niveladora (teoria da compensação), na qual o autor encara a atividade esportiva como uma reação niveladora frente às exigências e pressões da sociedade industrial e suas condicionantes de vida. Lenk, aprofundando a discussão em torno do esporte moderno, o considera, entre outros aspectos, "libertador dos instintos agressivos, frente a falta de possibilidades de rações agressivas de satisfação em uma existência totalmente imposta pela civilização". LENK, H. Deporte, Sociedad, Filosofia! In: Altius, Citius, Forius. Madrid: INEF, 1972.
Segundo PILATTI, em Reflexões sobre o Esporte Moderno: Perspectivas Históricas: "Foram os satélites que permitiram o esporte-indústria, quando ligaram os continentes pela imagem, há aproximadamente 30 anos. O drible moleque, que acontecia apenas para o deleite das arquibancadas, ganhou o mundo. A televisão multiplicou a platéia de milhares para criar a audiência e o mercado de milhões". FRANCHINI, E. et. Al. I Prêmio Indesp de Literatura Esportiva: 1 Volume. Brasília: Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto, 1999. p. 275.
Bourdieu entende o esporte como um conjunto de práticas e de consumos esportivos oferecidos por instituições a diferentes agentes sociais para suprir uma demanda social. BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ...
LENK, H. Deporte, Sociedad, Filosofia!...
Ver PRONI, M W. Marketing e Organização Esportiva: elementos para uma história recente do esporte-espetáculo. Conexões - educação, esporte, lazer. Campinas, v. 1, n. 1, p. 74-84, jul./dez. Neste artigo o autor rela a importância do marketing esportivo na indústria do esporte, e como essa indústria trabalha a opinião pública.
Com relação ao tema tratado, DUNNING externa seu parecer dizendo que Huizinga, "apesar de o relacionar, numa perspectiva destrutiva, com uma orientação geral e se preocupar com o que considera os efeitos destrutivos da interacção entre amadores e profissionais [...] não conseguiu referis-se à dinâmica, à sociogênesi da suposta tendência no sentido da "esterilidade", "seriedade" e "caracter profano" do esporte moderno", e que este problema é tratado de maneira mais adequada por Stone, que modifica as afirmações de Huizinga, "sugerindo que os desportos modernos estão sujeitos a uma dupla dinâmica, resultante, por um lado, da maneira como estes são envolvidos nos "confrontos, tensões, ambivalências e anomalias" da sociedade mais alargada e, por outro, de algumas características inerentes às suas estruturas. ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ... p. 307.
Op. cit. p. 307
Tanto HUIZINGA quanto RIGAUER e suas respectivas idéias foram retiradas de: ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ... p. 305 - 309.
Op. cit.
LENK, H. Deporte, Sociedad, Filosofia! ...
ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ... p. 104.
ELIAS, N; DUNNING, E. A BUSCA ... p. 323.
ELIAS e DUNNING relatam em seu trabalho que nos primeiros tempos muitas atividades religiosas possuíam funções análogas às que têm hoje as atividades de laser. ELIAS, N. op. cit. P. 104.
BOURDIEU, P. Questões ... . p. 137.
Os dados relacionados ao surf que aqui foram expostos foram retirados dos seguintes sítios: 360graus.terra.com.br/surf/surf_história.htm, http://sites.uol.com.br/therealsurf/historia.htm e http://members.nbci.com/XMCM/surf_files/s_historia.htm.
Op. cit.
Op. cit.
Op. cit.
Op. cit.
Op. cit.
Op. cit.
Op. Cit.
Op. Cit.
Uma prancha com rodas que possibilitou dropar em solo firme.
BOURDIEU, P. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 208.
ELIAS, N. op. cit. P. 104.
Op. cit.
GEBARA, A. Tempo Livre e Meio Ambiente: uma perspectiva histórica. In: Coletânea do I Encontro Nacional de História da Educação Física e do Esporte. Campinas: FEF/UNICAMP, 1994. p. 54-59.
ELIAS, Norbert; Op. cit. p. 28-30
Referências bibliográficas
ANSHOWINHAS, Paulo. Jogos de risco. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 de Junho de 1995, cad. ZAP, p. 4-5.
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
CANTORANI, José Roberto Herrera. Esporte Moderno: possibilidades agressivas na sociedade hodierna. Conexões: educação, esporte, lazer. Campinas, n. 5, p. 131-141, dez. 2000.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Zahar, 1993.
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A Busca da Excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.
GEBARA, Ademir. Tempo Livre e Meio Ambiente: uma perspectiva histórica. In: Coletânea do I Encontro Nacional de História da Educação Física e do Esporte. Campinas: FEF/UNICAMP, 1994.
LENK, Hans. Deporte, Socidad, Filosofia! In: Altius, Citius, Fortius. Madrid: INEF. 1972.
PARLEBAS, Pierre. Perspectiva para uma Educacion Física Moderna. Junta de Andalucia: IEF, 199
PRONI, Marcelo Weishaupt. Marketing e Organização Esportiva: elementos para uma história recente do esporte-espetáculo. Conexões - educação, esporte, lazer. Campinas, v. 1, n. 1, p. 74-84, jul./dez., 1998.
360graus.terra.com.br/surf/surf_história.htm
http://sites.uol.com.br/therealsurfer/historia.htm
http://members.nbci.com/XMCM/surf_files/s_historia.htm
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digital · Año 10 · N° 87 | Buenos Aires, Agosto 2005 |