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Ritos e rituais contemporâneos
das corredoras de longa distância

   
PPGUGF/Lires - LEL
Universidade Estácio de Sá - RJ
(Brasil)
 
 
Geovana Alves Coiceiro
Vera Lucia de Menezes Costa

geovanaalves@globo.com
 

 

 

 

 
Resumo
    As corridas de longa distância preenchem o espaço contemporâneo de signos rituais, oferecendo saídas para as imposições regulamentadas do quotidiano, abrindo espaço à integração e propondo aos nossos imaginários a escapatória de suas simbolizações (Segalen, 2002). Esse espaço contemporâneo de ritualização vem encontrando adeptos em todo o mundo; seja do ponto de vista do corredor que se entrega à realização do movimento com paixão, ou seja do ponto de vista do coletivo, quando teremos concentrações de corredores que se constituem em verdadeiros tapetes humanos deslocando-se em competição pelas ruas das cidades. Essas corridas vêm obtendo a adesão de mulheres no mundo inteiro, demonstrando que um ato de simbolização pode se desenvolver fora das esferas de referência essencialmente masculinas e viris. O objetivo do estudo foi evidenciar os ritos e rituais das corredoras de longa distância. As investigações foram baseadas nos estudos de Martine Segalen (2002) e Coiceiro (2003), feita com corredoras de alto rendimento do Brasil, selecionadas de acordo com o ranking da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAT), pelos seus desempenhos na temporada de 2001 nas modalidades de 10.000 metros até Maratona (42.195 metros), compondo uma amostra de 10 (dez) atletas de elite. Foi utilizada a entrevista semi-estruturada e o método de análise do discurso proposto por Orlandi (2000, 2001). Os ritos encontrados no estudo foram: da coesão social, do sacrifício, da transgressão e da renovação.
    Unitermos: Corredoras de longa distância. Imaginário social. Ritos. Rituais.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 86 - Julio de 2005

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Introdução

    A corrida de longa distância oferece um espaço contemporâneo de ritualização. Paradoxalmente, observa-se que o contexto atual tende a negar a existência dos ritos, relegados às civilizações primitivas, não havendo espaço numa época marcada pela racionalidade, pela eficácia, pela técnica.

    Tendemos dar pouca importância aos ritos e aos rituais e muitas vezes os relegamos a todo comportamento repetitivo, como por exemplo escovar os dentes. Contudo, sabe-se que a repetitividade de uma ação é condição necessária mas não suficiente para determinar um rito.

    Trabalharemos com a definição de rito, segundo a etnóloga francesa Martine Segalen, "o rito é caracterizado por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de linguagens e de comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo. (...) Enquanto conjuntos fortemente institucionalizados ou efervescentes, os ritos podem ser considerados sempre como um conjunto de condutas individuais ou coletivas relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual e de postura), caráter repetitivo e forte carga simbólica para atores e testemunhas." (2002: 31-32).

    Dessa forma será desenvolvido um quadro de referência para estudarmos os rituais contemporâneos e buscar pistas que possam nos levar aos ritos e rituais das corredoras de longa distância.

    O rito, segundo Segalen (2002) não se pode fazer de qualquer maneira, precisando apoiar-se em símbolos reconhecidos pela coletividade. Ou seja, para que exista rito é preciso que exista um certo número de operações, gestos, palavras e objetos, que exista a crença numa espécie de transcendência. Dessa forma o rito não pode ser confundido com os hábitos diários das pessoas, tais como, escovar os dentes, tomar banho, se alimentar, pois essas atividades em nosso grupo social, não se apresentam carregadas do simbólico.

    O que presenciamos nas sociedades modernas é que os ritos se deslocaram do centro do social para a sua margem. Eles podem ser encontrados em dimensões fora trabalho (extralaboral), tais como o esporte, o lazer, dentre outras.

    Contudo, apesar dos ritos se situarem fora do universo do trabalho, eles não se encontram totalmente marginalizados e escondidos, e podemos vê-los se impor ao assistir 15 mil pessoas espalhadas pelas ruas de São Paulo para participar da Corrida de São Silvestre, ou mesmo na comemoração de aposentadorias e aniversário em espaços restritos ao trabalho. Pois, "separados de seu aspecto utilitarista, alguns campos do fora trabalho (extralaboral) parecem atualmente constituir um reservatório de ritual para nossas sociedades modernas".1

    Considerando o imaginário um sistema dinâmico organizador de imagens, cujo papel fundador é mediar a relação do homem com o mundo (Durand, 1997), nos lançamos na busca de pistas que pudessem elucidar os ritos que envolvem as corredoras de longa distância nas suas disputas atléticas.

    Amadoras, profissionais, iniciantes podemos classificar as corredoras de longa distância pelos seus diferentes níveis de performance, mas será que quando estão envolvidas em suas performances, seja na busca pelo primeiro lugar no pódio, por um ouro olímpico, por uma medalha de participação elas são envolvidas por símbolos diferentes?

    A corrida de longa distância começa a encontrar muitos adeptos em todo o mundo, contudo a sua prática se resumia às pistas dos estádios olímpicos e apenas homens podiam praticá-la2. Na década de 60 a CLD começa a se libertar das pistas e a sua prática passou a ser feita pelos bosques e jardins das cidades de uma forma livre e prazerosa. Mas é na década de 80 que as CLD ganham as ruas das cidades de todo o mundo, local este que a legitima até os dias de hoje.


O Rito e a corrida de longa distância

    As corridas de longa distância preenchem o espaço contemporâneo de signos rituais, oferecendo saídas para as imposições regulamentadas do quotidiano, abrindo espaço à integração e propondo aos nossos imaginários a escapatória de suas simbolizações (Segalen, 2002). Esse espaço contemporâneo de ritualização vem encontrando adeptos em todo o mundo; seja do ponto de vista do corredor que se entrega à realização do movimento com paixão, ou seja do ponto de vista do coletivo, quando teremos concentrações de corredores que se constituem em verdadeiros tapetes humanos deslocando-se em competição pelas ruas das cidades.

    Devemos ressaltar que essas corridas vêm obtendo a adesão de mulheres no mundo inteiro3, demonstrando que um ato de simbolização pode se desenvolver fora das esferas de referência essencialmente masculinas e viris. Como exemplo, podemos citar a "Corrida contra o câncer de mama", que se realiza anualmente no Rio de Janeiro e que, em 2004, reuniu mais de 3.000 mil mulheres, correndo e caminhando pelas ruas do Aterro do Flamengo, um desfile de formas femininas, uma vez que a corrida é destinada à participação do sexo feminino em apoio à campanha contra o câncer de mama.

    O que faz as pessoas se aglomerarem pelas ruas de uma cidade para correr uma maratona ou outra CLD qualquer? O que acontece numa grande concentração de corredores? O que celebram essas multidões reunidas? Ficamos surpresas ao ver na publicação de uma das revistas mais conceituadas no Brasil4, que trazia na sua capa "Mania de correr: uma legião de cariocas adota o hábito em busca de saúde e boa forma". A revista relaciona a prática da corrida com o bem estar físico e mental, mas ao ler as declarações dos praticantes é possível observar o quanto esses corredores são envolvidos por símbolos e rituais. Uma praticante relata após completar 24 km: "Por que razão estou fazendo isso?" Razão primeira, bem estar físico e mental, "É uma incrível sensação de liberdade. Razão segunda, ela passou a ouvir o seu corpo que é embalado pelo ritmo cadenciado de suas passadas.

    As investigações foram baseadas nos estudos de Martine Segalen (2002) e Coiceiro (2003), feita com corredoras de alto rendimento do Brasil, selecionadas de acordo com o ranking da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAT), pelos seus desempenhos na temporada de 2001 nas modalidades de 10.000 metros até Maratona (42.195 metros), compondo uma amostra de 10 (dez) atletas de elite. Aproximamo-nos do universo das atletas utilizando a entrevista semi-estruturada e o método de análise do discurso proposto por Orlandi (2000, 2001). Os ritos encontrados no estudo foram: da coesão social, do sacrifício, da transgressão e da renovação.


Encontrando os ritos


O rito da coesão social

    Estamos diante de 15, 20, 50 mil corpos que se movem com o mesmo objetivo: jovens e velhos, ricos e pobres, pretos e brancos, homens e mulheres, profissionais e amadores, não há distinção entre as pessoas. Falamos de uma corrida de rua. O que celebram essas multidões reunidas nas corridas de longa distância pelo mundo? Seriam esses movimentos reapropriações das peregrinações? Formas de homenagem, veneração, obediência e submissão ao sagrado? O que podemos perceber é que para as corredoras, tal espetáculo é ambivalente, pois elas são espectadoras e atrizes. Expectadoras ao se impressionarem em fazer parte e participar da multidão de corredores que se espalham pelas ruas da cidade. E atrizes porque sem elas o espetáculo não existiria.

    Devemos ressaltar que apesar das corridas surgirem de um movimento visando a ecologia, o que percebemos ao observar essas aglomerações é um deslocamento de sentido, pois o grande sucesso das corridas de longa distância (ou pedestrianismo) não está mais nos bosques e sim nos grandes centros. Haveria aí uma ecologia urbana? Uma apropriação das ruas da cidade tão esquadrinhadas pela organização urbana? Podemos citar a corrida de São Silvestre, uma prova histórica para o Brasil, onde os atletas percorrem 15 km pelas ruas de um dos maiores centros nervosos do mundo, a cidade de São Paulo. Assim como não poderíamos deixar de citar a maratona de São Paulo, porque toda cidade em destaque no cenário mundial tem que ter uma maratona. 5

    Para Durkheim6, o essencial é que haja indivíduos reunidos, que sentimentos comuns sejam experimentados e expressos em atos. Para o autor o fato de um grupo estar reunido, faz com que o rito produza estados mentais coletivos de efervescência. Não há grupos que não sintam a necessidade de manter e consolidar os sentimentos coletivos em intervalos regulares.

    O que se observou nas corredoras, foi uma identificação muito grande com a corrida, é como se elas fossem arrebatadas por um sentimento de pertença que não conseguem se desvencilhar.

"Mesmo que eu pare de competir, mas eu tenho que continuar correndo, entendeu?"

"Eu não vou parar de correr nunca. Vou assim até o fim da minha vida."

"Ah! Eu adoro a corrida, a corrida é a minha vida, eu acho que se eu parar de correr, do fundo do coração, acho que eu fico doente, alguma coisa assim."

    Dessa forma o rito aparece na fala das atletas, como um conjunto de condutas individuais ou coletivas relativamente codificadas, com suporte corporal, caráter repetitivo e forte carga simbólica. Essas condutas são fundadas numa adesão mental, da qual a atleta eventualmente não tem consciência. Segundo Huizinga (2000), o jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-se "apenas" de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. As corredoras estabelecem uma relação de dependência com a corrida, é como se dependessem dela para viver.

    A ritualização da corrida promove uma certa beatificação, fazendo surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem7. E seus efeitos não cessam depois de acabado a corrida; sua magnificência continua sendo projetada sobre o mundo de todos os dias, garantindo assim, a ordem, a segurança e a prosperidade de todo o grupo de corredores até a próxima corrida.

    E aí entendemos o comportamento das atletas ao superam as dores, o cansaço, o sofrimento de cada competição ou treinamento, pois a repetição do gesto, ou seja, a ação ritual realiza uma transcendência vivida. Para Brandão (1998), o rito é a práxis do mito, através deles é possível reviver histórias sagradas, dessa forma o homem torna-se apto para repetir o que os deuses e heróis fizeram nas origens. Esse retorno às origens é uma forma de readquirir as forças que jorram illo tempore.

    Eliade (2000) vai comungar dessa questão ao dizer que o rito, reiterando o mito8, aponta o caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado.


O rito do sacrifício

    Para Segalen (2002:81), "o corpo do corredor é ao mesmo tempo instrumento e finalidade da ação, na medida em que a corrida exige um engajamento físico muito importante, a atividade oferece um aspecto catártico, a possibilidade de passar para o outro lado, de ultrapassar um limiar do corpo, geralmente tabu".

    Os treinamentos e as competições são muito desgastantes para as atletas corredoras; elas dão tudo de si, levando o corpo à total exaustão, acabando com todo o combustível para que ele funcione em perfeitas condições. É preciso resistir à dor, mas como? É preciso suportar o sofrimento, mas como? Treinar, treinar e treinar. É dessa forma que as atletas vão atingindo outros patamares, outras posições, ganhando forças para prosseguir na sua trajetória. Seus corpos são submetidos a treinamentos mais intensos, para prosseguir num caminho sem volta, pois elas não admitem piorar suas performances, só aceitando melhorar cada vez mais.

"o pessoal está morto, acabado, e está treinando."

"o segredo é treinar: Treine, treine, muito mesmo, e certinho."

"A minha vontade era tão grande... que não via canseira, não via cansaço, eu queria era só treinar, treinar, que eu achava que quanto mais eu treinasse, mas eu ia conseguir chegar ao pódio."

    Sacrifício, para essas atletas, tem dimensão idêntica ao sagrado, e elas podem ou não ter consciência da religiosidade embutida em suas ações. Constatou-se que as atletas revelaram-se verdadeiras heroínas. Para Chevalier (1998) sacrifício é a ação de tornar algo ou alguém sagrado, isto é, separado daquele que o oferece, seja um bem próprio ou a própria vida, separado, igualmente, de todo o mundo que permanece profano. Entendemos que o sagrado vivenciado pelas corredoras está vinculado ao sacrifício da realização do feito, que se vincula à purificação. Elas sabem que para alcançar o objetivo devem treinar muito, sacrificar-se, sentir muitas dores no corpo e que assim alcançam o sublime: o êxito da tarefa, vencer.

    O público também comunga, junto com os praticantes de corrida, dessa adoração pelo sacrifício, pois já não é de hoje que o ser humano se sente atraído pela vida nos extremos. 9 "Raro é o público que permanece insensível à representação dessas situações-limite. O indivíduo mais alheio ao heroísmo e a gratuidade não deixa de experimentar uma perturbação ambígua ante a encenação de uma situação contra a qual ele não cessa de se proteger, a cuja eventualidade o assombra." (Nicolas apud Segalen, p.89)

    Por trás de tanto sacrifício existe alguma coisa que impulsiona essas atletas e faz a sua trajetória se tornar mágica. Muitas relatam sobre um ideal, uma meta que ela tem dentro de si e que as move com tanto vigor e obstinação. Quem ainda não presenciou a alegria, a força, ou mesmo o desespero estampado no rosto de uma corredora ao cruzar a linha de chegada? A sua vitória ou mesmo a sua derrota é vivida por todos que a cercam, rico ou pobre, branco ou preto, não havendo distinção, pois todos estão envolvidos por essa emoção.

    Há uma sede de ir contra o tempo, que se esvai, de ir correndo as distâncias, que diminuem, para alcançar a linha de chegada, porto seguro de sua jornada.


Rito da transgressão

    Para Huizinga (2000), o jogo antecede a cultura e a sua essência e sua característica primordial está na intensidade, na fascinação, na capacidade de excitar que podem ser traduzidos em alegria, tensão, medos, divertimentos. Porém, percebe-se que na vida social moderna, o esporte vem ocupando um lugar que ao mesmo tempo acompanha o processo cultural e dele está separado. O que se verifica é um excesso de seriedade, de controle e de regras nos jogos, dessa forma eliminando ou mesmo neutralizando os elementos lúdicos, que é essencial para a perpetuação do jogo. Contudo, pode-se perceber o surgimento de certos fenômenos contrários a essa tendência, e nesse contexto podemos inserir as corridas de longa distância, que se apresentam como uma forma de transgredir a ordem, o controle, as regras e o excesso de seriedade.

    Maffesoli, ao falar de uma errância que vai exprimir a revolta, violenta ou discreta, contra a ordem estabelecida, "a errância é a expressão de uma outra relação com o outro e com o mundo, menos ofensiva, mais carinhosa, um tanto lúdica, e seguramente trágica. (...) Sentimento trágico da vida que, desde então, se aplicará a gozar, no presente, o que é dado viver no cotidiano, e que achará seu sentido numa sucessão de instantes, preciosos por sua própria fugacidade." (2001: 28-29). Para o autor esse caráter eterno e efêmero se concentra no instante, no detalhe, no rito, em que o movimento se detém, em que a imobilidade é um elemento da socialidade.

    A errância, esses excessos, podem ser ressaltados ao observar os atletas cuspindo no chão, assoando o nariz com a mão, urinando ou defecando na via pública, exibindo-se com pouca roupa, suados e seminus em locais reservados para as pessoas circularem bem vestidas, perfumadas e prontas para o trabalho.

    Podemos compreender a corrida como o deslizar de um tempo produtivo, controlador e aprisionado? Segundo Maffesoli (2003:08), a grande mudança que esta operando é o deslizar de uma concepção de mundo "egocentrada" para "locuscentrada" ou seja na pós-modernidade nascente, o que esta em jogo são grupos, "neotribos" que investem em espaços específicos e se acomodam a eles. E as corridas de longa distância vêm se revelando um espaço fértil para essa nova organização, com a qual as corredoras jogam com seus sonhos, desejos, medos na busca da superação dos seus limites.


O rito de renovação

    A corrida passa a organizar a vida das atletas uma vez que estas se disponibilizam todos os dias para treinarem seus corpos para o dia da competição. A corrida passa a ser ritualizada em uma sucessão de etapas: a separação para o sacrifício (ato sagrado), iniciação pela purificação (ato profano) e, em seguida, o retorno ao mundo dos mortais. As atletas passam a se sentirem renovadas seja, após um treino difícil ou longo, após períodos de treinamentos mais desgastantes, ou mesmo após aquela competição onde as melhores estão presentes, exigindo-lhes performances perfeitas para batalharem10 pela vitória.

"Eu quero correr contra o meu relógio, meu tempo, eu quero fazer 1 hora e 20 minutos, parava, mentalizava, tentava me concentrar e conseguia."

"Toda paciência, porque no começo é muito difícil, a gente precisa muita dedicação. E ter em mente que se você treina um dia você chega lá."

"Eu não conseguia melhorar as minhas marcas, e eu sempre achei que eu tinha algo mais, e que precisava de algo mais para melhorar, e eu vim em busca disso."

    Treinar, treinar, treinar, competir, competir, competir, descansar... Essa é a rotina de uma corredora que a leva à exclusão para obtenção de melhores resultados, exclusão necessária também para que nada que a relegue ao mundo profano possa atrapalhar. Muitas se separam das famílias, dos filhos, dos maridos, para se confinarem em "santuários" esportivos onde os treinamentos e os pensamentos das atletas devem estar direcionados a grandes conquistas. Podemos constatar pequenos retornos, pois apesar desses confinamentos, as atletas sentem falta de suas famílias, e isso é normal, uma vez que todas as atletas vivenciam sua condição humana.

"É muito difícil eu sair, raramente. Eu fico visando o esporte, a competição, é disso que eu vivo, e se eu não dedicar a isso eu não vou ter resultados depois."

"Eu conheço vários colegas, vários atletas que abandonaram a família porque ela não dava apoio... aí ele abandona, aí ele troca a família pelo esporte."

Meu marido mandou eu escolher entre ele e o atletismo, e eu escolhi o atletismo. Eu troquei ele, pelo atletismo, e não me arrependo disso."

    O rito de renovação vai envolver todos os outros ritos uma vez que essas atletas se lançam a cada corrida num movimento ininterrupto de passadas, que as movimentam nessa catábase, que é a corrida. Esse envolvimento inclusive pode chegar ao extremo. Quem não se lembra da atleta suíça Gabriele Andersen, que nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, levou seu corpo ao limite, a ponto de não comandar mais seus movimentos. A sua determinação era tamanha que conseguiu cruzar a linha de chegada, suprindo todas as suas deficiências. O que aconteceu com Gabriele já foi e será vivido por muitas atletas em todo o mundo.


Conclusão

    Conclui-se que o espaço urbano passa a legitimar e testemunhar a efervescência promovida pela corrida de longa distância no Brasil e pelo mundo afora. Nesse espaço verificamos alguns ritos concernentes ao imaginário de corredoras de longa distância: Sacrifício e disfarce dos corpos, esforço para chegar ao seu limite, sentimento de participar de uma poderosa emoção coletiva, transgressão dos espaços urbanos. É por meio desses rituais que as atletas percebem, vivenciam, desejam e sonham com as suas superações atléticas.


Notas

  1. Ver Segalen, 2002:69.

  2. Ver Coiceiro, 2003.

  3. As mulheres enfrentaram muito preconceito para se inserirem nas corridas de longa distância. Ver Coiceiro, "O imaginário d corredoras de longa distância", 2003.

  4. Revista Veja Rio, ano 37, n°35, out. 2004, p. 10-18.

  5. As grandes cidades utilizam as corridas como emblema identitário, havendo inclusive rivalidades do tipo: o percurso mais rápido - dessa forma o recorde mundial é batido - as com maior número de participantes, melhor estrutura de atendimento e suporte ao atleta, as provas históricas, dentre outras. Dessa forma teremos , dessa forma podemos citar: Nova York, Boston, Tóquio, Paris, Berlim etc. Esses emblemas identitários promovidos pelas corridas vão desencadear em identidades urbanas, com as quais o corredor se posiciona para escolher e participar de acordo com seu interesse.

  6. Durkheim, 1912:553.

  7. Huizinga, 2000:17

  8. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana. (Eliade, 2000:23)

  9. Ver Ashcroft. A vida no limite, 2001.

  10. Em Coiceiro (2003), verificamos que algumas atletas relacionavam a sua presença em uma competição como em uma guerra, por esse motivo usamos a palavra batalha, para chamar a atenção do leitor.


Referência Bibliográfica

  • Ashcroft, F. (2001). A vida no limite: a ciência da sobrevivência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

  • Chevalier, J. ; Gheerbrant, A. (1998). Dicionário de símbolos. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

  • Coiceiro, G. A. (2003). O imaginário de corredoras de longa distância. (Tese de Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade Gama filho.

  • Durand, G. (1997). As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins fontes.

  • Durkheim, E. (1912). Lês formes élémentaries de l avie religieuse: le système totémique em Australie. Paris: Félix Alcan.

  • Eliade, M. (2000). Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva.

  • Huizinga, J. (2000). Homo ludens. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva.

  • Maffesoli, M. (2003). O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk.

  • Orlandi, E. P. (2001). Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3ªed. São Paulo: Pontes

  • __________ (2000). Discurso e leitura. 5ª ed. São Paulo: Cortez

  • Segalen, M. (2002). Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV.

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