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Educação Física e a liberalização da profissão
Physical Education and the liberalization of the occupation

   
Grupo de Estudos em Trabalho,
Educação Física e Materialismo Histórico/UFJF
 
 
Prof. Bruno Gawryszewski
bgesporte@pop.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    O professor de Educação Física está tendo seu trabalho vinculado à saúde, ao bem-estar e à preparação física. Tal condicionante vem desvinculando sua função de trabalhador da educação a uma roupagem de profissional liberal. O estudo se propõe a refletir sobre o trabalho do professor de Educação Física e sua inserção na sociedade frente a atual conjuntura, analisando aspectos da política internacional e do mundo do trabalho.
    Unitermos: Educação Física. Globalização. Trabalho.
 
Abstract
    The teacher of Physical Education has been his work linked to the health, well-being and the physical trainning. Such expression comes unlinking his function as a worker of the education to look like a liberal professional. The essay propose itself to reflect on the work of the teacher of Physical Education and his insertion in the society front the current conjuncture, analyzing aspects of the international politics and the world of the work.
    Keywords: Physical Education. Globalization. Labor.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 86 - Julio de 2005

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    A crise do capital vem infringindo diversas reformas estruturais na configuração dos Estados nacionais. As principais forças econômicas da América Latina (Brasil, Argentina e México) sofriam com uma profunda crise financeira em 1982 que os obrigou a renegociarem suas dívidas com o sistema financeiro internacional e os países centrais do Hemisfério Norte. A condição sine qua non para obtenção de crédito para evitar o colapso financeiro seria levar adiante um pacote de medidas que transformariam (e desmontariam) os Estados por completo.

    Neste contexto de ajustes de Estado, a Educação Física, não se colocando imune ao mundo, também sofreu transformações no campo epistemológico, ontológico e estrutural. Difundiu-se o mercado de academias de ginástica e a profissão de personal trainer, além de spas e resorts, que incluem em seus programas as atividades físico-desportivas. Com a crescente desvalorização do espaço escolar, que é posto de lado em privilégio aos compromissos financeiros do poder público com seus credores, tais locais privados têm alterado a veiculação da imagem do professor de Educação Física, especialmente no que tange ao trabalho, categoria central na elaboração deste ensaio.

    Estas novas tendências do mercado de trabalho abriram um outro campo para os professores de Educação Física, trazendo consigo um novo perfil deste trabalhador para a sociedade, o perfil de um profissional liberal. Tal constatação parece permear o pensamento da sociedade em geral sobre este trabalhador que é associado à boa forma física, hábitos ditos saudáveis, mas, principalmente, à academia de ginástica. Não é muito difícil ser chamado entre conhecidos como personal trainer.

    Por isso, este estudo pretende levantar algumas considerações sobre as mudanças ocorridas no trabalho do professor de Educação Física. Para tal, utilizamo-nos de uma breve retrospectiva da evolução do sistema capitalista no final do século XX e suas implicações na formulação das políticas educacionais, como as diversas alterações no mundo do trabalho, tomando como marco a crise do capital. Por fim, discutimos o novo perfil do professor de Educação Física a partir da liberalização da profissão.


A educação sob a tutela da globalização

     Após a Segunda Guerra Mundial, a economia dos países europeus encontra-se devastada. Por um lado, os Estados Unidos terminam a guerra em uma situação bastante privilegiada, solapando as demais potências mundiais. No seu encalço, a União Soviética comandava o recém-ampliado bloco dos países socialistas no Leste Europeu. Preocupado com uma possível expansão do comunismo para os demais continentes, os Estados Unidos comandam diversos tratados multilaterais, destinados a garantir a estabilidade dos mercados, ao desenvolvimento da infra-estrutura dos países periféricos e à reconstrução da economia européia através do Plano Marshall.

     Liderada pelos Estados Unidos, uma aliança global dos principais países capitalistas foi feita com o objetivo de evitar uma aniquilação mútua e encontrar uma forma racional de enfrentar a sobreacumulação atingida na década de 30. Para atingir tal objetivo, seria necessário compartilhar os benefícios do desenvolvimento da economia e a abertura de novos mercados. Por isso, o apoio estadunidense aos países em desenvolvimento e à descolonização de países africanos e asiáticos (HARVEY, 2005).

     O Brasil entre as décadas de 40 e 70 desenvolveu um parque industrial importante, uma alta taxa de expansão dos empregos assalariados, especialmente no setor secundário da economia, que abrigava no início da década de 80 cerca de 36% das ocupações empregatícias (POCHMANN, 1999).

     A espantosa explosão da economia durante os anos de 1953 e 1975 baseou-se na expansão de bens de consumo em massa, com o crescimento da produção industrial girando em torno seis por cento ao ano. O modelo de produção industrial de Henry Ford espalhou-se por todo o mundo, das construções de habitações à junk food . Bens e serviços antes relegados apenas a alta burguesia, agora já abarcava a classe média. As viagens a locais ensolarados, a geladeira, o telefone e a lavadora de roupas tornaram-se o padrão de conforto desejado por todas as famílias européias (HOBSBAWM, 1995; SEVCENKO, 2001).

     Foi uma época que o historiador inglês Eric Hobsbawm denominou como "Era de Ouro" do capitalismo. As principais metas que os governos sociais-democrata almejavam eram a regulamentação e garantias do pleno emprego, educação, saúde, previdência social e moradia. Outra função dos governos seria a formulação de políticas de distribuição de renda através da taxação progressiva e fiscalização de trustes e cartéis.

     O cenário político para administrar os Estados europeus na época era realizado através de uma aliança tácita entre patrões e organizações trabalhistas, bem como num consenso entre a direita e a esquerda política. Para administrar as diferenças de interesses, o Estado atuava presidindo as negociações institucionalizadas entre capital e trabalho, na época conhecidos como "parceiros sociais" (HOBSBAWM, 1995).

     Em 1973, os Estados Unidos tomaram uma série de medidas para dar maior dinamismo ao mercado internacional, como o abandono do padrão-ouro como base de sustentação cambial, provocando uma grande liberalização no controle de fluxo de capitais, agora praticamente livres de controle pelo Banco Central. Os acordos multilaterais que eram propostos pelo próprio Estado estadunidense, agora não mais interessavam, especialmente pela grande hegemonia que adquirida nos anos passados ao pós-guerra.

     A célebre frase "o consenso não é outra coisa que a falta de princípios" dita pela ex-primeira ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher, ilustra bem o exemplo do que representaria seu mandato após a eleição em 1979. Depois de viver cerca de 30 anos da "Era de ouro", o capitalismo passa a enfrentar reveses sucessivos, como altas taxas de desemprego, inflação, baixas taxas de crescimento econômico.

     O desamparo provocado por essas dificuldades fez ressurgir o pensamento liberal. A solução que antes era decidida na base do consenso entre sindicatos, empresariado e Estado, agora era a partir do confronto, da luta contra os sindicatos, o atraso da indústria e o gigantismo do Estado. A ortodoxia monetária substitui o Estado de Bem-Estar Social e o principal objetivo não é mais o pleno emprego, mas sim, o combate à inflação e o pagamento das dívidas com o capital financeiro.

     Para a implantação de seus princípios, o sistema capitalista dispunha de instituições financeiras criadas na trilha do pós-guerra. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial são dois exemplos. O Banco Mundial foi criado em 1944. Inicialmente, suas ações estavam voltadas à reconstrução dos países devastados pela 2a guerra mundial, passando em seguida a investimentos na infra-estrutura de países na América Latina, Ásia e África.

     Na década de 70, durante a gestão de Robert McNamara, o Banco Mundial passou a diversificar seus investimentos de forma a atender mais incisivamente suas demandas do ponto de vista político-ideológico. Assim, foram (e são) feitos empréstimos para restauração de monumentos históricos, programas de combate à miséria, além de projetos educacionais. A instituição aprimorou sua estratégia para ajustar a economia dos seus países devedores. Com a fixação de representantes em determinadas regiões, a instituição colhe os diagnósticos a partir de um monitoramento da política econômica e a fiscalização quanto ao bom uso do dinheiro emprestado. O banco tem justificado a necessidade de sua intervenção e liderança no combate ao atraso econômico e à pobreza ao fato de que as oligarquias conservadoras no poder atrapalham o desenvolvimento, as dificuldades do governo federal em planejar a educação, a abertura dos mercados para empresas multinacionais, privatização do ensino público, cultura empresarial nas escolas (SILVA, 2003).

     O Brasil foi um dos países que mais receberam a interferência de organismos financeiros, especialmente após o Consenso de Washington. Durante a década de 90, predominou a idéia de que o país deveria se tornar seguro para a entrada do capital estrangeiro e, para isso, ajustes deveriam acontecer. A desregulamentação das leis e uma elevação na taxa de juros serviriam para atrair o capital e que ele pudesse transitar livremente. E a privatização dos serviços públicos anularia de vez a possibilidade do Estado fazer uma política econômica e social autônoma.

     Sendo assim, esse período neoliberal está sendo caracterizado por um crescimento econômico lento e apenas em pequenos ciclos; cortes no estado de bem-estar social; o Estado parece ter menos força política; partidos políticos frágeis e substituídos por outras organizações; relações de trabalho fragilizadas; blocos econômicos regionais (MORAES, 2004).

     Um dos pontos-chave para se compreender a política educacional é a realização dos grandes eventos internacionais patrocinados por organizações como Banco Mundial e UNESCO. Em 1990 foi realizada na Tailândia, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos reunindo representantes de 155 governos que se comprometeram a oferecer educação básica de qualidade e o Brasil foi um dos principais signatários da proposta. Em 1995, o Banco Mundial publica o documento Prioridades y estratégias para la educación, onde reitera os objetivos de acabar com o analfabetismo e a reforma administrativa da educação, inclusive seu financiamento. Ainda recomenda o estreitamento dos laços entre a educação profissional e o setor produtivo, além de ressaltar grande atenção à avaliação institucional (CIAVATTA & FRIGOTTO, 2003).

     A condução de uma política educacional sob os parâmetros do Banco Mundial que priorize o ensino fundamental acima de tudo evidencia o papel periférico que o Brasil está fadado a desempenhar: formar mão-de-obra que o qualifique a ser um país de montador de peças como o México e os países asiáticos. A partir da tentativa de sua universalização, o processo pedagógico no ensino fundamental passou a utilizar-se de expedientes como a progressão continuada e o fim da repetência anual. O FUNDEF e o Bolsa-Escola foram outros instrumentos nessa mesma linha. O objetivo fundamental seria o de reduzir a evasão escolar. Já o ensino médio foi separado do ensino profissionalizante, o que impôs um caráter preparatório ao terceiro grau ao primeiro e técnico ao segundo. E o ensino superior absorveu as orientações do Banco Mundial como avaliação institucional (importante para a quantificação de resultados), criação de núcleos de excelência e produtivização da carreira, além de flexibilização dos cursos, especialmente com a criação dos cursos seqüenciais.

     Em meio a esse turbilhão de transformações, o trabalho docente é regido sob a lógica da certificação de competências, flexibilização da formação através da complementação pedagógica e retirada da formação de professores do âmbito da educação para um caráter técnico-profissional, fundada na epistemologia da prática (FREITAS, 2003).


O mundo do trabalho sob a lógica das competências

     Atuando de forma decisiva e incidente na educação, o sistema neoliberal encontrou no governo de Fernando Henrique Cardoso a chave-mestra para propagar um projeto educacional adequado às demandas do grande capital. Trata-se de ajustar a escola e a formação dos docentes às necessidades da ordem mundial do trabalho.

     Com a adoção do pensamento pedagógico empresarial e as diretrizes de organismos internacionais, percebe-se que a educação passa a ser tratada de uma forma individualista e fragmentária, sob a lógica do esforço e aquisição de competências adequadas a sua função. (CIAVATTA & FRIGOTTO, 2003).

     Questões como boa comunicação verbal, cálculos matemáticos, trabalho em equipe, são alguns dos parâmetros que a lógica empresarial no mundo do trabalho tem exigido e que os governos vem procurando atender por meio do sistema educacional.

     Ao mesmo tempo em que se observa uma retração no emprego industrial, estável e especializado, o trabalho no setor de serviços vem sendo incrementado. Se antes o que imperava na fábrica era o emprego formal, com vigência dos direitos trabalhistas, agora, o trabalho desregulamentado, temporário e free lancer vem se expandindo em escala global, inclusive no setor público. A reestruturação produtiva do capital extinguiu com boa parte das vagas no setor industrial, criando assim enormes parcelas de trabalhadores excluídos como os jovens e os "idosos para o capital" (aqueles com mais de 40 anos). Além disso, as mulheres prosseguem tendo vencimentos inferiores aos dos homens. (ALVES & ANTUNES, 2004).

     Os desdobramentos decorrentes da conjuntura no mundo do trabalho vêm desenvolvendo, assim, o chamado terceiro setor. Ele vem se caracterizando por absorver uma mão-de-obra que foi excluída do mercado formal, sendo um contraponto à situação de desemprego, ainda que, de maneira mais precarizada. O terceiro setor tem sido impulsionado por ONG´s ou associações para atuar justamente no âmbito onde o Estado e o sistema capitalista deixam lacunas. Por conseguinte, o que tem se observado é que o Estado vem atribuindo funções de prestação de serviços a essas organizações, desresponsabilizando-se da administração e participando apenas como financiador e regulador, papel bem condizente com o Estado moderno neoliberal.

    A busca pela adequação a essas novas relações de trabalho vem sendo guiada pela dimensão da empregabilidade e da polivalência, ou seja, manter-se plenamente apto a desenvolver suas funções e estar preparado para outras atribuições quando necessário. Por isso, parâmetros como motivação, liderança, resolução de problemas, ambição e comunicação verbal são alguns dos requisitos fundamentais para aquele que "tenha vontade de crescer".

    O setor educacional exerce um importante papel na manutenção desse status quo. Com uma intensa proliferação de cursos livres, extensão e pós-graduação, promete-se o oásis àqueles que se conscientizarem de que "não podem ficar inertes" e que, caso se qualifiquem ao trabalho, (man)terão seu emprego. Assim, o desemprego, o subemprego ou os baixos salários é forjado por uma situação que responsabiliza unicamente o trabalhador por seu fracasso.

    Através da ideologia da empregabilidade, um exército de reserva das vagas é criado. Se o desemprego no capitalismo atual já se tornou parte de seu sistema estrutural, então o capital triunfa sobre o trabalho já que os "recrutas da reserva" procurarão se manter empregáveis, pois estarão educados para o desemprego.

    Portanto, o que está em voga é a obtenção de certificados que irão comprovar uma suposta competência para o desenvolvimento de seu trabalho. Freitas (2003) sugere:

"a lógica das competências individuais passa a conformar as subjetividades, via formação de professores, e a educação das novas gerações, a fim de inseri-las desde a mais tenra idade na lógica da competitividade, da adaptação individual aos processos sociais e ao desenvolvimento de suas competências para a empregabilidade ou laboralidade" (p.1109).

     Vemos observando uma grande proliferação de cursos e encontros que pretendem qualificar os professores, disseminar o conhecimento e facilitar sua inserção (ou manutenção) no mercado de trabalho. O professor de Educação Física, ávido em se garantir no seu emprego, procura fazer tais cursos para se mostrar empenhado no seu trabalho, aprender novas técnicas e tornar sua aula mais atrativa e atual.

     Longe de discriminar e generalizar todos os cursos existentes, o que geralmente percebemos é a Educação Física veiculada sob uma perspectiva técnica, como uma cartilha de exercícios sistematizados. Quando apresentada sob um ideário mais crítico, este se baseia em questões mais ligadas ao conhecimento da Fisiologia do Exercício, do Treinamento Desportivo e áreas afins.

     Um filão que começa a ser explorado por cursos livres e algumas pós-graduações é o trabalho em projetos sociais. De um modo geral, são apresentados sob as noções de "responsabilidade social", "empresa cidadã", numa onda de solidariedade e altruísmo que parece ser uma das marcas nos dias de hoje (MELO, 2004).

     Portanto, a Educação Física, em tais espaços, orienta-se no compromisso de manutenção e adaptação às demandas do capitalismo. Todas as peças estão em seu lugar. Mantêm-se a lógica de certificação de competências e técnicas, a irrelevância na discussão de qual sociedade estamos inseridos e o conformismo frente ao mundo que nos é apresentado.


A regulamentação da profissão e o neoliberalismo

     Com a promulgação da Lei 9696/98, em 1o de setembro de 1998, a Educação Física foi regulamentada enquanto uma profissão. Seus defensores propagavam que o reconhecimento e a instauração de um conselho fiscalizador traria a redenção e o respeito aos professores de Educação Física. Após a criação do sistema CONFEF/CREF, disseminou de vez o imaginário de que aquele que trabalha com Educação Física, seja um professor escolar, seja professor de academia, seria um profissional de Educação Física.

    Desde a década de 70 observa-se uma movimentação no sentido de criar conselhos reguladores. Realizado em 1972, o III Encontro de Educação Física, organizado pela Associação dos Professores de Educação Física, tinha como um dos temas: "Conselhos Regionais e Federal dos titulados em Educação Física e Desportos". Estrategicamente, a palavra professores foi trocada por titulados, para conferir um grau de profissional liberal ao trabalhador, retirando seu caráter docente. No entanto, como explica Sartori apud Nozaki (2004) que "os esforços realizados na época esbarraram no argumento de que era impossível regulamentar a Educação Física, porque já existia a função do professor" (p. 181).

     A desvalorização do magistério e a proliferação de práticas corporais no setor não-formal nos anos 80 e 90 passaram a atrair cada vez mais professores, especialmente aqueles recém-formados. Portanto, assegurar que esse novo nicho seria exclusivamente do profissional de Educação Física foi o objetivo primordial dos defensores da regulamentação.

     A eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência do Brasil trouxe a concretização do projeto neoliberal para o país que, conseqüentemente, passou por uma série de reformas estruturais de ajuste às demandas do sistema capitalista. Um desses ajustes foi a reforma administrativa que trazia em seu bojo um caráter de redução das responsabilidades do Estado brasileiro. A relação com os conselhos profissionais sofreu mudanças, sendo a principal delas, a transformação destes em prestadores de serviço de fiscalização profissional, através de delegação do Estado. Os conselhos se transformariam em entidades privadas desde então (NOZAKI, 2004).

     Com a concretização da lei, o Estado passa a ser um mero regulador das atividades dos conselhos. Deve-se ressaltar que a transformação do Estado em regulador de operações não se aplicou apenas às atividades dos conselhos; pelo contrário, foi o eixo norteador do projeto neoliberal. A privatização das empresas estatais e a criação das agências reguladoras1 seguiram este mesmo paradigma político.

     Sob todos estes aspectos, a regulamentação da profissão se constituiu em uma estratégia coadunante com o projeto neoliberal. A defesa da regulamentação esteve somente calcada na demarcação de territórios no mercado fora da escola, investindo avidamente contra a figura do chamado leigo. O curioso é que o mesmo leigo, antes exorcizado, passou a ser um contribuinte para a manutenção do sistema CONFEF/CREF, na medida em que a abrangência das manifestações corporais que seriam reguladas pelo conselho abarcava as lutas, a capoeira, o yoga, a massoterapia, os circos, dentre muitas outras.

     Da mesma forma que tornam o mercado de trabalho como o novo deus a ser louvado, a Educação Física escolar passa por uma séria fase de desprestígio. Como já é amplamente conhecido, em outras épocas a Educação Física na escola foi levada à condição de primordial dentro do projeto da classe dominante (CASTELLANI FILHO, 1991).

     No entanto, como enfatiza Frigotto (2001) "as novas tecnologias de microeletrônica e informática exigem muito mais atributos intelectuais e psicossociais do trabalhador do que a força física (p.37)".

    Dentro de tal contexto, a Educação Física não parece ser prioritária no projeto dominante atual. A formação de um corpo disciplinado e adestrado não é mais central na formação do capital humano, já que este precisaria de um forte conteúdo cognitivo e interacional, tais como raciocínio lógico, capacidade de abstração, trabalho em equipe. Por essas razões, a Educação Física não se coloca em um papel imediatamente preponderante na escola através da formação de competências úteis ao mercado atual. (NOZAKI, 2004).

    A pesquisa de Jeber citada por Nozaki (2004) trata de como a disciplina tem sido sistematicamente desvalorizada e inferiorizada no âmbito escolar. Dentre alguns dos apontamentos da pesquisa, verificou-se o caráter facultativo da disciplina na rede municipal de Belo Horizonte (MG), a ausência na atribuição de notas e a postura diferenciada do professor de Educação Física em relação aos demais professores no Conselho de Classe. Sua participação era diminuta, por vezes fazendo a chamada, servindo água ou até promovendo atividades esportivas no momento do Conselho, enquanto os outros professores se reuniam.

    A Educação Física na escola, em tempos neoliberais, apresenta-se como um diferencial, que a partir de um corte de classe, diferencia a educação que os alunos receberão. A Educação Física é vendida como um artigo de luxo, tornando-se um diferencial no marketing das escolas particulares. A prática de esportes, a manutenção de quadras e piscinas, o incentivo à formação de equipes escolares, estimulam o imaginário dos pais de que seus filhos terão uma formação mais humana.

     Em substituição à Educação Física escolar, observa-se um grande número de escolinhas esportivas, clubes e, sobretudo, as academias. Parece que a idéia de privatização das práticas físico-esportivas já se tornou lugar-comum frente à Educação Física, chata para alguns, folgadora para outros. Oliveira (2000) nos indica que o mau preparo dos professores; a ausência de outros conteúdos, que não o desporto, formas repetitivas e a opção dos jogos eletrônicos seriam alguns dos fatores do desprestígio. Os cursos de graduação não estariam em sintonia com os anseios sociais e, mesmo assim, "ainda se sustentam e justificam suas práticas com a idéia de abastecer o mercado escolar, mesmo estando este mercado em rota de naufrágio" (p.3).

     O autor mencionado explicita bem o ideário privatista que vem se manifestando nos setores mais conservadores da Educação Física. Quando defendem o enriquecimento de conteúdos úteis ao mercado de trabalho não-formal, estão defendendo a lógica das competências e da prestação de serviços e, conseqüentemente, uma Educação Física excludente, diferenciadora de classe e que seja modelada "ao gosto da clientela". É a assumida defesa do professor de Educação Física enquanto profissional liberal e inserido no mundo da flexibilização do emprego (NOZAKI, 2004; GALANTINI, 2003).


O trabalho e a imagem do professor de educação física no atual contexto

     Representado atualmente enquanto um profissional liberal, o professor de Educação Física vem enfrentando mudanças significativas no contexto do mundo do trabalho e a sua função na sociedade. Sua imagem vem sendo atrelada a condição de bem-estar e saúde fora do âmbito escolar.

     Condizente com a perspectiva neoliberal de sociedade, entendemos que os professores têm sido guiados por uma ordem que promove a manutenção de sua imagem como um instrutor, um técnico2, um conhecedor de jogos; a aceitação da condição de flexibilização do trabalho; um consenso de que o importante para ser um bom profissional é a vivência prática3 e o estudo de matérias "úteis" a seu cotidiano profissional.

     Em uma pesquisa com professores em academias de ginástica na cidade de Campinas, Antunes (2003) verificou que metade dos profissionais empregados não possuía carteira de trabalho e apenas 10% dos profissionais trabalhavam em academias há mais de 10 anos, o que confirma a idéia de precariedade e volatilidade no serviço que esse ramo do mercado oferece. Outro dado interessante é que cerca de 65% dos entrevistados consideram que as disciplinas de cunho sócio-cultural tiveram pouca ou nenhuma importância para sua atuação na academia, ao contrário das disciplinas relacionadas à Biomecânica, treinamento desportivo, musculação, que obtiveram 93% de aprovação de importância ao seu trabalho.

     No atual contexto, especialmente pela criação dos cursos seqüenciais, observamos novas ressignificações que contribuem para nossa imagem de técnico em exercícios físicos. Especialmente fomentados nas universidades privadas, os cursos seqüenciais têm uma curta duração (geralmente dois anos) e se dirigem a um ramo específico dentro de alguma área de conhecimento. Podemos verificar cursos de "Educação Física com ênfase em fitness" ou "Treinador de esportes com bolas". Isso sem contar a criação do curso de Bacharelado em Educação Física e os aprofundamentos no curso de Licenciatura dentro das diretrizes curriculares de 1987.

     A expansão da área de atuação do professor de Educação Física vem sendo acompanhada por um processo de total precarização do trabalho. Coerente com o setor de serviços ao qual está inserido, o neoliberalismo trouxe ao trabalho a incerteza e a ordem dos contratos temporários, o emprego permanentemente vigiado pela avaliação de desempenho e produtividade pessoal e a competição entre equipe e setores internos da empresa. Segundo Bauman (1999) "o mundo darwinista da luta generalizada, o desempenho obediente das tarefas estabelecidas pelas empresas deve alicerçar-se nessa esmagadora sensação de incerteza paralisante, no medo, no estresse e na ansiedade nascidos da incerteza" (p.37).

     A fragmentação da formação na área abriu espaço para a consolidação do profissional liberal, desobrigando ainda mais o Estado de prover o pleno emprego, cabendo tal função ao profissional. O emprego para o bacharel não resulta mais em direito ao trabalho, mas sim em uma questão de competitividade e esforço pessoal.

     Portanto, restam duas opções ao bacharel: entrar na roda viva do mercado de trabalho ou acalentar o ideário de se transformar em um empresário do ramo, uma grande dificuldade que se transpõe à sua frente, visto que o neoliberalismo só favorece aos que dispõe de grande quantidade de capital para investir (FARIA JUNIOR, 1997).


Conclusão

     Este estudo teve como intuito realizar alguns apontamentos sobre o porquê do trabalho do professor de Educação Física estar tão atrelada a de um profissional liberal. Para chegar a esse fim, entendemos que era de suma importante contextualizar a Educação Física na conjuntura mundial, especialmente com a ascensão do neoliberalismo.

    A ideologia neoliberal disseminou a idéia de que era preciso reformar os Estados para controlar a inflação, déficit nas contas públicas e garantir uma eficiente administração pública. A Reforma Administrativa, implantada no governo Fernando Henrique Cardoso, transferia responsabilidades de gerenciamento e fomento público a entidades privadas, incluindo os conselhos profissionais. Então, em 1998 foram criados o Conselho Federal de Educação Física e os conselhos regionais.

    Atuando na expurgação do leigo no campo não-formal, a regulamentação não alterou a situação de extrema mais-valia do empregador frente a seus empregados. O lema era garantir o profissional "encarteirado" nas academias, clubes, circos, logradouros públicos etc. Por isso, acreditamos que a regulamentação da profissão da Educação Física consistiu em uma estratégia corporativista de reserva de mercado.

     O mundo do trabalho, sofrendo as conseqüências da reestruturação produtiva do capital, vem se pautando por uma lógica de competências que abarca a todos os trabalhadores numa avalanche de cursos e certificações. O ideário do sistema CONFEF/CREF é o do trabalhador com espírito empreendedor, ativo e flexível a possíveis mudanças em seus negócios. Como opina o representante do CONFEF/CREF Juarez Nascimento citado por Nozaki (2004):

"a dinamicidade e a complexidade do mercado de trabalho na área revelam a necessidade de este profissional assumir um novo papel na sociedade, deixando a cômoda posição estável de assalariado da administração pública. Neste sentido, visualiza-se um empreendedor em Educação Física, vendendo serviços e gerenciando o seu próprio desenvolvimento no mercado de trabalho" (p.269).

    Por isso, o sistema CONFEF/CREF serve à perspectiva unilateral da formação humana para a crise do capital.

    O lema é se manter empregado, pois o desemprego fatalmente ocorrerá! E se não estiver empregado no momento, qualifique-se, porque quando uma oferta aparecer, deve-se estar preparado para agarrá-la! A isso, Bauman (1999) entende que "os advogados e soldados da flexibilidade não buscam a liberdade de movimento para todos, mas a estimulante leveza do ser para alguns, que redunda em insuportável opressão do tempo para outros" (p.33).

    Assim, acredito que o resgate da imagem de uma função docente passa pelo fortalecimento do professor na escola, pela regulamentação do trabalho, mas, especialmente, pela luta contra o inimigo em comum: o neoliberalismo. Entendo que apenas com a superação desta reestruturação do capitalismo poderemos re-valorizar o sentido docente da profissão.


Notas

  1. ANP (Agência Nacional do Petróleo), ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), ANS (Agência Nacional de Saúde), ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), ANA (Agência Nacional de Água), ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), dentre outras.

  2. Recorrendo aos primórdios da criação da Escola Nacional de Educação Física e Desportos no Rio de Janeiro, percebemos que a imagem de "técnica" é um fardo carregado desde suas origens. Em 1939, quando foi instituída a ENEFD, criou-se uma estrutura de formação superior distante das demais licenciaturas. Enquanto a habilitação nas outras áreas era realizada por meio da Faculdade de Filosofia onde predominava a visão do professor, na EF, imperava a visão de um técnico. Exigia-se menos tanto na entrada (apenas o secundário fundamental) quanto na duração do curso (2 anos).

  3. Não por acaso a nova proposta curricular privilegia a epistemologia da prática, atribuindo um grande número de horas-aula dedicado a esse fim.


Referências

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revista digital · Año 10 · N° 86 | Buenos Aires, Julio 2005  
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