A aventura de ser mulher nas atividades físicas de aventura na natureza |
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*Profa. Ms. Centro de Educação Física e Desporto Depto. De Ginástica - UFES, Espírito Santo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos do Lazer (LEL) I.B./UNESP Rio Claro *Doutoranda do Dep. de Estudos do Lazer Faculdade de Educação Física - UNICAMP Campinas, São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos do Lazer (LEL) I.B./UNESP Rio Claro ***Livre Docente do Dep. de Educação Física Instituto de Biociências - UNESP Rio Claro, São Paulo. Coordenadora do Laboratório de Estudos do Lazer (LEL) I.B./UNESP Rio Claro |
Renata Laudares Silva* re.scarpa@uol.com.br Alcyane Marinho** alcyaneguilherme@vivax.com.br Gisele Maria Schwartz schwartz@rc.unesp.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 84 - Mayo de 2005 |
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Para se iniciar uma reflexão a respeito da situação relativa à participação feminina em práticas esportivas, especialmente nas atividades realizadas em contato com a natureza que carreguem algum tipo de aventura, faz-se necessário uma breve incursão sobre a posição feminina no contexto sociocultural atual. Contexto este que, muitas vezes propicia estereótipos sociais, levando homens e mulheres a aceitarem papéis sociais previamente determinados pelo seu sexo, imprimindo os conteúdos discriminatórios ainda tão evidenciados.
Os seres humanos, desde muito cedo, carregam distinções de cunho biológico, as quais, quando estão em referência à questão de Gênero, os classificam como sendo feminino ou masculino. Este fato, segundo Scott (1995, p.75), "[...] trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres".
Mas, esta relação de gênero, homem/mulher, não tem seu fim nessa construção sociocultural. Com o passar do tempo, segundo Lauretis (1987) e Parker (1991), em sua manifestação de gênero, o homem ficou concebido na trilogia mente, razão, objetividade, nos âmbitos socioeconômico e político, e a mulher como corpo, emoção, subjetividade, limitada aos afazeres domésticos e cuidados com a família.
Sob a mesma ótica, Abreu (in VOTRE, 1993) relata que os papéis feminino e masculino são construções culturais e que, através do processo de socialização, são incutidas nestes comportamentos as funções sociais diferentes e direcionadas a cada sexo.
Segundo Simões et al. (1996), a sociedade brasileira tende a caminhar segundo preceitos do regime patriaRcal, onde os valores dados à população feminina são inferiores aoS da população masculina.
Focalizando especificamente a mulher, Rago (in DEL PRIORE, 1997), além, de Arrazola e Rocha (in RABAY, 1996) relatam que esta, desde tempos atrás, sempre foi vista à sombra do ser masculino, quer seja na esfera pública ou no seio familiar, deixando claro as atribuições de valores entre os papéis femininos e masculinos.
Belotti (1975) salientava que costumes e crenças projetados pela sociedade são passados, mesmo antes do nascimento, predeterminando estereótipos sexuais masculinos, os quais são direcionados à atividade e agressividade e estereótipos femininos, em que as mulheres são encaminhadas para a passividade e submissão.
Neste mesmo sentido, Bernardes (1992) tece suas considerações e relata que os valores morais, sexuais e comportamentais de uma dada sociedade poderão, em um tempo futuro, modificar-se e solidificar-se em estereótipos e, até mesmo, em preconceitos, no que se refere às condutas de homens e mulheres, vindo a contribuir para futuros conflitos nas distintas fases da vida do ser humano.
Mediante essa discussão acerca das características e do papel social feminino, juntamente com as questões permeadas de valores e normas, os estereótipos e preconceitos a elas dirigidos, suas reivindicações e conquistas e as questões de gênero, percebeu-se uma luta cada vez mais constante e fortalecida da mulher, fomentando quatro momentos distintos, que contribuíram para a reafirmação de seus valores.
O primeiro se concentra na mudança econômica no âmbito do trabalho, integrada à abertura de oportunidades para as mulheres no campo da educação. O segundo fator evidencia as mudanças tecnológicas advindas da biologia, da farmacologia e da medicina, que contribuíram para o controle da gravidez e da reprodução humanas. O terceiro faz referência ao patriarcalismo, onde este se encontra abalado pelo desenvolvimento do movimento feminista, decorrência dos movimentos sociais da década de 60. O quarto elemento a induzir o desafio ao patriarcalismo é a acelerada propagação de idéias em uma cultura globalizada, em um mundo interligado, por onde pessoas e experiências se cruzam e se combinam, tecendo velozmente uma enorme colcha de retalhos composta por vozes femininas (Castells, 1999).
Contudo, o papel social feminino sofreu expressivas modificações de uns tempos para cá, como também, grandes mudanças comportamentais e atitudinais. Essas transformações também podem ser apreciadas em grande parte da população masculina, visto que os homens estão modificando seus conceitos acerca das capacidades femininas, estão aprendendo a ser mais complacentes e a ter maior nível de aceitação.
Lipovetsky (2000) relata em suas pesquisas que a possibilidade de demonstração de suas capacidades e de sua força interior, como também da sua determinação, vem contribuindo na mudança desses comportamentos e de valores no universo da mulher. Sua escolarização e profissionalização crescentes, sua inserção maciça no mercado de trabalho, sua participação política cada vez mais consciente e sua entrada efetiva na diversidade dos campos de atuação, tanto no plano de produção econômica, como intelectual, fazem com que, sem abdicar do seu papel maternal e doméstico (daí a expressão, dupla jornada), a mulher venha se destacando cada vez mais nos cenários sociais.
Por meio do acesso à educação, aos conteúdos que formam o caráter social, cultural e político do cidadão, o ser humano se vê na luta por conquistas e objetivos traçados. De posse de um instrumento capaz de abrir portas e espaços, houve a assimilação de formas corretas e sem juízos de valor, sobre os princípios e normas de conduta que o dignificarão como pessoa de bem e sem preconceitos, quer seja ligado a sexo, raça, gênero ou etnia.
Estes valores acabam influenciando toda a gama de instituições, incluindo o que tange à participação feminina nos esportes em geral.
O esporte moderno é considerado um fenômeno social e, como tal, mesmo que isto esteja em mudança na atualidade, ainda há uma predominância de valores masculinos, devido ao fato deste prever a existência de um modelo esportivo carregado de crenças e valores discriminatórios
Pode-se notar, dessa maneira, a pouca participação feminina no meio esportivo, apesar de um avanço na atualidade, devido a prevalecer a masculinidade e pelo fato de, na sua maioria, as atividades esportivas possibilitarem momentos ditos nitidamente agressivos, incompatibilizando com os estereótipos dados à mulher pela sociedade.
Muitas mulheres praticantes de esportes chegam a entrar em conflito com seu próprio papel, ou seja, enfrentam as suas concepções de feminilidade - fragilidade, passividade, dependência - com seus comportamentos ligados à prática esportiva, que tende a levar em consideração, principalmente a agressividade e a independência.
Mas, segundo Goellner (2000/2), frente às novas indagações e possibilidades de práticas esportivas, a população feminina vem afirmando sua posição e a existência de uma nova mulher: ágil, segura, confiante e possuidora da capacidade de enfrentar os desafios dos novos tempos, não perdendo a sua feminilidade, deixando de lado o medo, que há muito tempo a afligia, de se masculinizar, ou mesmo fraquejar, buscando, inclusive a inserção em novas modalidades desportivas, como é o caso das atividades vivenciadas em contato com a natureza.
A inserção da mulher, tanto na vida pública como no esporte especificamente, se deu de maneira lenta e não linearmente. No entanto, hoje, pode-se perceber a camada feminina praticando os mais diversos tipos de atividades, quer seja em meio natural ou não. Talvez pelo fato de o esporte em si, contribuir na passagem e mudanças de valores opostos ao que a sociedade tenta incutir no ser humano.
Segundo Lacruz e Perich (2000), com toda a transformação que vem ocorrendo em nível global, as mulheres, sob este processo de transformação, têm visto na natureza um lugar onde podem encontrar seu verdadeiro "eu" e na prática das atividades físicas de aventura na natureza (AFAN, termo cunhado por BETRÁN, 1995), uma maneira de manifestar seus desejos e inquietações.
Em um estudo realizado por Lacruz e Perich (2000) constatou-se que a prática destas atividades pode proporcionar relaxamento e liberação das tensões causadas pela rotina do trabalho e, estando junto ao meio natural, os adeptos conseguem revitalizar suas fontes de energia como também despertar a sensibilidade e a percepção de sensações que provocam bem-estar e prazer. Mesmo após as dificuldades e sofrimentos enfrentados ao término de uma destas práticas, as entrevistadas relataram que estariam dispostas a passar por tudo novamente, simplesmente pelo processo de experimentação de sensações nunca antes percebidas.
Desta maneira, pode-se evidenciar que a participação do público feminino em AFAN traz à tona inúmeros elementos voltados a vivências de sensações e sentidos percebidos, extraindo de seus praticantes a inibição relacionada aos aspectos de força, um pouco de agressividade e uma dose de coragem, valores estes antigamente remetidos apenas ao público masculino, pois, no contexto dessas atividades, estas qualidades exigidas parecem se manifestar de maneira igual para ambos os sexos, o tempo todo
A relação comportamental e as funções de ambos os sexos, masculino e feminino, em relação as AFAN, necessitam ser redimensionadas complementarmente, tendo em vista que nestas experiências existe a possibilidade de manifestações de expressões tidas como masculinas e femininas concomitantemente. Neste sentido, especificamente, as AFAN são destacadas no contexto desta reflexão, pelo fato de representarem, no âmbito do lazer, na atualidade, um fator de interesse crescente, tanto por parte do público masculino como pelo feminino, justamente por suas características possibilitarem vivências significativas em relação ao distanciamento temporário dos padrões cotidianos, de reelaborar os níveis emocionais envolvidos e de propiciar novos arranjos e respostas às situações simuladas de enfrentamento de risco.
Estes elementos apontados já são catalisadores de aderência as AFAN e, conforme evidencia Machado (2004), representam motivos suficientemente fortes para imprimir mudanças axiológicas para além da esfera do lazer.
Bento (1991, p.129) aponta outra importante consideração acerca dos valores disseminados por esses novos esportes, os quais têm contribuído de maneira efetiva para a modificação de diversas atitudes do ser humano. De acordo com os estudos do autor, o esporte nos dias atuais,
[...] expressa uma simbiose de sentidos e significados. A sua estrutura tradicional de valores, caracterizada em primeiro lugar por treino, competição e rendimento, vê-se progressivamente invadida e acrescentada por outros valores ligados a uma forte acentuação de comportamentos hedonistas, de contactos com o envolvimento natural, de prática do risco, do excesso, da transgressão, da transcendência, da aventura, de prática mais activa e sentida da corporalidade.
Atualmente, homens e mulheres têm vivenciado os diferentes tipos de esportes com a finalidade de redescobrir os valores subjetivos que esses denotam. De acordo com o autor acima citado, os diversos grupos que buscam essas novas experiências junto à prática esportiva possuem desejos, necessidades e exigências específicas.
Em estudo realizado com mulheres participantes de AFAN, Silva (2002) aponta que as mudanças de valores em relação à participação do público feminino nestas atividades revelam inúmeros pontos interessantes, como a possibilidade de ressignificação dos valores femininos se dar em uma via de mão dupla, em que tanto a sociedade pode auxiliar nesta mudança, mostrando novas possibilidades de participação, especialmente por meio da mídia, quanto esta participação implementar mudanças axiológicas importantes, principalmente no próprio indivíduo, depois ampliando para outras esferas sociais.
A noção de aventura, diretamente associada a estas práticas, representa o que (In BURGOS E PINTO, 2002) evidencia como a própria identidade social na atualidade, sendo que esta representação feita nas AFAN apresenta-se como um espaço moderador de atitudes positivas, potencial gerador de comportamentos não discriminatórios e outros elementos de valorização social.
Com a perspectiva de levar a pessoa praticante a defrontar-se e enfrentar seus próprios limites, a reconhecer medos e sensações inusitadas, as AFAN são tidas por Costa (2001) como elementos desafiadores de crenças e sentidos, em que se tem a oportunidade de sair refeito e com satisfação ampliada.
Os elementos acima, expostos pela autora, aproximam-se dos motivos sociais que influenciam e dominam a maior parte do comportamento humano. De acordo com os estudos de Murray (1964), a realização pessoal pode ser apontada como um desses motivos. Esta, muitas vezes, se dá mediante a superação de determinadas barreiras e obstáculos, como também, a superação de certos desafios, como os que perpassam a prática das AFAN.
O ser humano, ao desejar alcançar sucesso nas metas traçadas, sejam elas no esporte ou na vida profissional, se predispõe a executar tarefas que, muitas vezes, dependem da capacidade intelectual e da junção de alguns elementos, como a força interior, a coragem e a determinação e, mediante uma resposta positiva, são aplicadas em diversas situações do cotidiano.
Para Cratty (1984), o sujeito, ao demonstrar esforço, habilidade e competência em qualquer tarefa, se apodera dos resultados positivos e os transfere para a realidade cotidiana e, ao conseguir reconhecimento por suas ações, há um aumento da motivação, da vontade de superar-se cada vez mais.
No que concerne ao público feminino, esta oportunidade se torna inigualável, pelo fato de que as mulheres entram em dissonância com os apelos sociais e buscam a auto-superação de estigmas, vinculando-se à natureza como elemento chave para tal mudança.
Neste sentido, este texto partilha das idéias de Bruhns (in ROMERO, 1995) ao afirmar que o fator biológico do sexo é dotado de sentido em determinados momentos, devendo, portanto, serem contestados os predeterminismos. A dinâmica cultural, na dialética entre significado e ação social, configura a identidade feminina (ou masculina) permitindo, assim, uma pluralidade de realizações.
Referências
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digital · Año 10 · N° 84 | Buenos Aires, Mayo 2005 |