Formação esportiva: privilégio de alguns ou oportunidade para todos |
|||
Mestre em Ciência da Motricidade Humana Faculdade Assis Gurgacz - Cascavel-PR |
Alfredo Cesar Antunes alfredo.cesar@ig.com.br (Brasil) |
|
|
|
|||
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 83 - Abril de 2005 |
1 / 1
1. IntroduçãoÉ importante enfatizar e entender que a criança não é um adulto em menores proporções e, o esporte e todo o seu processo e fatores devem ser organizados para ela e não para satisfazer as vontades e anseios dos adultos.
Nesse sentido, Priszkulnik (2002) citando Freud diz que os pais acham-se na obrigação de atribuir todas as perfeições ao filho e de omitir todas as suas deficiências, e ainda, fazer com que a criança realize os "sonhos" que eles não conseguiram.
Essa idéia se aplica não apenas aos pais ou responsáveis, mas também aos professores. Assim, a idéia que se tem é o padrão de adulto a ser atingido. É preciso entender a criança como ser humano que não é pior nem melhor que o adulto, mas quantitativa e qualitativamente diferente.
Entende-se que o processo de formação esportiva, principalmente o treinamento com crianças e adolescentes, não deve visar apenas o alto rendimento, mas um processo de ensino-aprendizagem, ou seja, um processo pedagógico.
O processo de formação esportiva consiste em uma fase onde se pode optar pelo direcionamento da vida esportiva do indivíduo. O principal objetivo é a orientação com os processos, os meios a serem seguidos para contribuir na delimitação, conformação da personalidade do indivíduo e na busca de um referencial da cultura de movimento (GRECO, 2000).
Independentemente de seu potencial, os indivíduos devem percorrer determinadas fases no processo de formação esportiva. Segundo a literatura (BOMPA, 2001; GRECO, 2000; WEINECK, 1999; ZAKHAROV, 1992) o processo de formação esportiva deve se preocupar com uma iniciação básica geral que procure desenvolver todas as capacidades e habilidades motoras básicas, priorizando um trabalho multilateral e variado até aproximadamente 11/12 anos de idade (início da primeira fase puberal - pubescência). A fase seguinte seria a especialização ou formação específica que consiste em treinamento físico, técnico e tático específico para a modalidade escolhida, a partir dos 13 anos de idade aproximadamente (segunda fase puberal). A fase de alto rendimento seria a estabilização e aprimoramento dos aspectos desenvolvidos na fase anterior com o objetivo de performance, recomendado para a fase final da adolescência.
Greco (2000) acrescenta a fase de orientação que sob a base da iniciação básica geral, pode-se começar com a orientação técnica de duas modalidades esportivas, de preferência complementares. Na fase de direção as crianças e adolescentes que não têm potencial para o esporte de alto rendimento devem ser orientadas para que o utilizem como forma de lazer e saúde. Também, deve existir a readaptação do atleta após encerrar sua carreira esportiva para que ele utilize o esporte como lazer e saúde. Abaixo, a proposta de formação esportiva baseada em Greco (2000).
Figura 1. Fases da formação esportiva (Adaptado de GRECO, 2000)
2. ProntidãoPara se analisar o momento que a criança está preparada para a competição esportiva deve-se considerar o conceito de prontidão. Prontidão seriam os pré- requisitos necessários para um novo aprendizado ou novas experiências (FERRAZ, 2002).
O conceito de prontidão está relacionado com o período ótimo de aprendizagem, ou seja, antes disso a aprendizagem é prejudicada e, após, perde-se a oportunidade de explorar o melhor potencial do indivíduo. Não existe um período ótimo para todos os domínios, pois cada um tem suas especificidades.
Com relação à prontidão cognitiva e moral, segundo Ferraz (2002), as crianças pequenas julgam os atos pelas conseqüências das ações sem levar em consideração as intenções ou os motivos (causa e efeito), portanto devem ter orientações diferentes dos adolescentes e adultos.
Até o período da segunda infância e início da adolescência é necessário que se considere o aspecto cognitivo moral complexo demais para essa fase de desenvolvimento, deve-se enfatizar a prática esportiva lúdica (FERRAZ, 2002).
Quadro 1. Desenvolvimento da prática e da consciência das regras (FERRAZ, 2002- baseado em PIAGET)
Reconhecer que a competição é um processo de comparação social requer estruturas cognitivas complexas, ou seja, prontidão social e psicológica.
Até aproximadamente os 10 anos persiste a dificuldade em perceber a complexa relação causal entre os vários fatores que regulam seu desempenho: habilidade, esforço, dificuldade, condições, etc. Assim, atribuir aos resultados causas incorretas pode gerar sentimentos de incompetência ou impotência levando à desmotivação e abandono (FERRAZ, 2002; NASCIMENTO, 2000).
O sentimento de onipotência pode ser também prejudicial para o desenvolvimento da personalidade. A ênfase na vitória se transforma em pressão geradora de ansiedade.
Deve-se priorizar a oportunidade de jogar (participação), o jogar bem , divertir-se, fazer o melhor que se pode. A referência para a melhora deve ser o próprio jogador. O desenvolvimento moral depende da demonstração, da explicitação do modo de produção das regras para que se possa apreciar verdadeiramente o seu real valor.
A prontidão motora está relacionada com o processo de desenvolvimento motor. Diz respeito ao desenvolvimento, combinação, refinamento e especialização de habilidades motoras básicas (locomoção, manipulação e estabilização).
As modalidades esportivas, freqüentemente, utilizam apenas algumas dessas habilidades gerando diminuição do repertório motor, quando trabalhadas precocemente. As técnicas devem ser o ponto de chegada do processo de aprendizagem e não o seu ponto de partida.
Quadro 2. desenvolvimento motor humano e relação com as fases da formação esportiva (Baseado em GALLAHUE, 2002 e GRECO, 2000).
Entende-se que a falta de critérios e procedimentos adequados, como os mostrados anteriormente podem levar à especialização precoce. Pode-se citar como principais causas da especialização precoce a ausência de profissionais preparados; ex-atletas sem qualificação e leigos atuando como professores; e pressão dos pais, dirigentes e responsáveis. Como conseqüência essas crianças e adolescentes podem não chegar às etapas das elevadas prestações esportivas acabando a carreira mais cedo, reduzir o tempo de atividade esportiva de alto nível ou não atingir os rendimentos esperados (BOMPA, 1999; WEINECK, 1999; MARQUES, 1991).
O fracasso por falta de talento faz com que a criança e o adolescente sintam-se excluídos do meio esportivo. As crianças menores só entendem as emoções simples como alegria e tristeza. As emoções complexas como orgulho, vergonha e culpa dependem da maturidade para compreendê-las. Se uma criança imatura não atinge o resultado esperado e existe uma cobrança para a vitória esse fato pode causar uma frustração e possível abandono (sentimento de derrota), a ênfase na vitória se transforma em pressão geradora de ansiedade (ARENA, 2000). De acordo com o que foi abordado, entende-se que a observância desses procedimentos pode evitar a especialização precoce, incentivar o uso ativo das horas de lazer e valorizar a cultura esportiva e auxiliar para a formação de um indivíduo consciente de seu papel na sociedade.
3. Aspectos socioculturais para a formação esportiva: considerações finaisNo processo histórico do esporte o aspecto social sempre esteve presente, porém com objetivos e interesses diversos. Estes diferentes enfoques decorrem de diferentes visões de sociedade ou teorias sociais. As correntes sociológicas como funcionalismo, marxismo, neomarxismo e multiculturalismo tem relações, aproximações e influências diretas com o esporte.
Segundo Cunha Jr. (2000) a teoria funcionalista vê a sociedade como um sistema formado por diversas partes independentes que acabam por formar um todo onde existe uma estratificação social, definida como a valorização diferencial dos indivíduos e seu tratamento como superiores e inferiores em relação a aspectos socialmente relevantes. Predomina nesse modelo uma visão instrumental do esporte que assume funções: compensatória (compensar o trabalho intelectual), utilitarista (preparar o corpo para o trabalho) e moralista (suportar a disciplina e imposições da vida social).
A idéia de que a criança e adolescente através do esporte aprende a convivência social, obediência às regras, esforço pessoal, conviver com vitórias e derrotas, independência, confiança, responsabilidade, tem um papel positivo-funcional camuflando os disfuncionais e colaborando para o perfeito funcionamento e harmonia da sociedade na qual se inserem, sem relacionar o esporte com o contexto sócio-econômico-político e cultural que se objetivam (BRACHT, 1992).
A teoria marxista vem denunciar que o esporte tem servido historicamente aos interesses hegemônicos da classe dominante moldado pelos que detêm o poder e os meios de produção. No capitalismo os trabalhadores são manipulados e coagidos a buscar satisfação pelo consumismo e espetáculos de massa, como o esporte, que está ligado ao consumo através de propagandas, vendas de equipamentos e artigos, entradas, concorrência, disciplina, competição, superação, etc (CUNHA JR, 2000).
As análises que criticam a função socializadora que o esporte e educação física cumpre parte de uma teoria que pode-se chamar de abordagem ou ótica do conflito. Segundo essa teoria é mais correto ver a sociedade do ponto de vista de suas contradições históricas, ou seja, não são harmônicas e funcionais, mas tem contradições fundamentais (BRACHT, 1992).
Bracht (1992) diz que: "Precisamos entender que as atitudes, normas e valores que o indivíduo assume através do processo de socialização no esporte, estão relacionados com sistemas de significados e valores mais amplos, que se estendem para além da situação imediata do esporte" (BRACHT, 1992, p. 183).
Para Coakley (apud CUNHA JR, 2000) a teoria marxista, com relação ao esporte, não considera que as pessoas têm a capacidade de redimensioná-lo de acordo com seus próprios interesses, não defende o esporte regional e recreativo e não entende a participação esportiva como uma experiência criativa, expressiva e libertadora.
O pensamento neomarxista, segundo CUNHA JR (2000), defende que a educação física e o esporte devem ser progressistas e transformadores onde o professor de educação física atue como intelectual construtor de uma nova direção política, de uma nova hegemonia e de uma nova concepção de mundo, superior e democrático indo além da pura e simples transmissão de técnicas de ginástica e esporte.
O referencial do multiculturalismo focaliza as questões pertinentes aos grupos sociais minoritários, no que diz respeito as desigualdades, injustiças, preconceitos sofridos na sociedade. No referencial multiculturalista a educação física e o esporte devem dar atenção à diversidade e ao pluralismo cultural denunciando a ocorrência de discriminação e opressão que tem sido experimentada por alguns segmentos da sociedade (CUNHA JR, 2000).
No ser humano existe a relação triádica indivíduo/sociedade/espécie onde nenhum dos termos deve subordinar-se ou reduzir-se ao outro, pois:
"… a complexidade humana não poderia ser compreendida dissociada dos elementos que a constituem: todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer a espécie humana" (MORIN, 2001, p. 55).
Segundo Garcia (2002), o homem deve ser entendido como um fim e nunca como um meio e o esporte (desporto) deve estar a serviço deste e nunca o contrário. Completa dizendo que uma teoria do esporte deve levar em consideração a diversidade humana e qualquer tentativa de compreensão deve passar por uma reflexão do tipo antropológica.
O movimento não é a essência do antropologia do esporte, mas o movimento processado pela cultura. Tão importante quanto estudar a ação motora é estudar o ser humano que executa essa ação. Assim, o ponto central do esporte passa a ser o praticante e suas representações, não se limitando ao executado (GARCIA, 2002).
Enfim, o esporte não deve(ria) ser pensado, praticado e ensinado com vantagens e privilégios concedidos a poucos e exclusão de outros, ou seja, contra o direito comum de todos terem uma formação esportiva digna e legítima.
Bibliografia
ARENA, S.S. Programas de iniciação e especialização esportiva na grande São Paulo. Revista Paulista de Educação Física. 14 (2), 184-95, 2000.
BRACHT, V. A educação física escolar como campo de vivência social. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 9(3), 23-29, 1988.
BRACHT, V. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992
BOMPA, T. Periodização: teoria e metodologia do treinamento. São Paulo: Editora Phorte, 2002.
CUNHA JR. Sociologia e educação física. In: A.G. Faria JR., C.F.F. Cunha Jr., H.T. Nozaki e C.P. Rocha Jr. (Orgs), Uma introdução à educação física (179-202). Niterói, RJ: Corpus, 1999.
DANTE DE ROSE JR. Esporte e atividade física na infância e na adolescência: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
GARCIA, R.P. Contributo para uma compreensão do desporto: uma perspectiva cultural. Em V.J. Barbanti, A.C. Amadio, J.O.Bento e A.T..Marques (Orgs.), Esporte e atividade física: interação entre rendimento e qualidade de vida (321-38). Barueri: Manole, 2002.
GRECO, P.J. O sistema de formação e treinamento esportivo. In: P.J. Greco (Org.), Caderno de rendimento do atleta de handebol. Belo Horizonte: Editora Health, 2000.
MARQUES, A. A especialização precoce na preparação desportiva. Revista Treino Desportivo. n.19, p.9-15, 1991.
MARQUES, A.T., OLIVEIRA, J. O treino e a competição dos mais jovens: rendimento versus saúde. In: V.J. BARBANTI, A.C. AMADIO, J.O.BENTO e A.T..MARQUES (Orgs.), Esporte e atividade física: interação entre rendimento e Qualidade de vida (51-80). Barueri: Manole, 2002.
NASCIMENTO, A.C.S.L. Pedagogia do esporte e do atletismo: considerações acerca da iniciação e da especialização esportiva precoce. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas, 2000.
MORIN. E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001.
WEINECK, J. Biologia do esporte. São Paulo: Manole, 1991.
WEINECK, J. Treinamento Ideal. São Paulo: Manole, 1999.
revista
digital · Año 10 · N° 83 | Buenos Aires, Abril 2005 |