Sistematização epistemológica da Educação Física brasileira: concepções Pedagógicas Crítico-Superadora e Crítico-Emancipatória
Epistemological systematization of the brazilian Physical Education: Pedagogical Conceptions Crítico-Superadora and Crítico-Emancipatória Sistematización Epistemológica de la Educación Física Brasileña: los Conceptos Pedagógicos Crítico-Superadora y Crítico-Emancipatória |
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* Bacharel e Licenciando em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador em Educação Física Escolar ** Bacharel e Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista CNPq-2004. Mestrando em Pedagogia do Movimento pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador em Educação Física Escolar |
Gilberto Leandro Busso* beto99n@yahoo.com.br Rubens Venditti Júnior** rubensjrv@yahoo.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 83 - Abril de 2005 |
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Aos que desprezam o corpo, quero dar meu parecer. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos. [...] Tudo é corpo e nada mais; a alma é simplesmente o nome de qualquer coisa do corpo. O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. [...] Quero dizer uma coisa aos que menosprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima (NIETZSCHE, 2000, p. 51).
Obras analisadas e discutidas neste estudo: 'Metodologia do Ensino de Educação Física'
(1992) e Transformação Didático-Pedagógica do Esporte' (1994).
ApresentaçãoA Educação Física (EF) no Brasil tem sua história baseada em contextos de transformações educacionais sempre imbricadas com mudanças políticas e sociais. Desde a década de 1980, a EF tem passado por uma renovação nos seus conhecimentos científicos, produzidos por referenciais das ciências naturais e das ciências humanas, o que proporcionou novos significados para o âmbito escolar e acadêmico da área. As Concepções Pedagógicas da EF1 são frutos desta re-significação.
No decorrer deste período, a EF sofre críticas e denúncias a respeito do modelo hegemônico dos esportes: é a "esportivização" da EF (PAES, 2002, p.93). Esse modelo é caracterizado pela soberania absoluta do esporte perante todas as outras formas de expressão corporal contidas no conteúdo da EF, principalmente nas padronizações pedagógicas e sistematizações no contexto educacional, que mantinha a supremacia das práticas esportivas como conteúdo principal a ser transmitido nas aulas escolares, desprovida de objetivos, planejamento e relação com o contexto escolar.
As obras 'Metodologia do Ensino de Educação Física', de 1992; e 'Transformação Didático-Pedagógica do Esporte', de 1994; representam, respectivamente, as Concepções Pedagógicas Crítico-Superadora (CPCS) e Crítico-Emancipatória (CPCE) da EF.
O Coletivo de Autores (1992) propõe uma teorização crítica e inicia sua obra com a problematização do projeto político-pedagógico e do papel da EF no contexto educacional do Brasil.
Kunz (1994), assim como o autor descrito acima, pertence à concepção progressista de EF e inicia a obra com a contextualização da EF e com a retomada dos principais acontecimentos históricos que influenciaram e influenciam seu movimento intelectual. Ao considerar este eixo histórico-social, já podemos aqui detectar a concepção do autor como uma concepção crítica e arrojada.
A análise das obras aqui proposta considera questões que não foram tratadas anteriormente. A pesquisa bibliográfica foi essencial para o estudo, uma vez que "não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras" (LAKATOS E MARCONI, 2001, p. 183).
A concepção pedagógica do Coletivo de Autores (1992)O Coletivo de Autores, composto por Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Maria Elizabeth Medicis Pinto Vargal, Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht, é responsável pela obra 'Metodologia do Ensino de Educação Física' publicada em 1992 sob a denominação de CPCS para o ensino infantil, fundamental e médio de EF brasileira.
Para o Coletivo de Autores (1992), o currículo escolar é vinculado a um projeto político-pedagógico, pois a escola é entendida como parte constituinte das condições dignas da existência humana em sociedade. As pedagogias surgem da crise originada do conflito entre os interesses antagônicos e diferentes das classes proprietária e proletária, e são entendidas como disciplinas capazes de suprir a complexidade, globalidade, conflitividade e especificidade da educação.
A CPCS apresenta características específicas de reflexão pedagógica:
é diagnóstica, porque remete à constatação e leitura dos dados da realidade; ... é judicativa porque julga a partir de uma ética que representa os interesses de determinada classe social; é também teleológica, porque determina um alvo onde se quer chegar, busca uma direção (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.25).
Assim, o projeto político-pedagógico representa uma intenção, ação deliberada e estratégica. É político porque expressa intervenção em determinada direção e é pedagógico porque realiza a reflexão sobre a ação dos homens na realidade, explicando suas determinações. O projeto se realiza na escola e se manifesta no currículo.
O currículo é um percurso que tem como função social ordenar a reflexão pedagógica de forma que o aluno pense a realidade social, desenvolvendo determinada lógica, apropriando-se do conhecimento científico, confrontando-o com o saber que o aluno já traz de seu cotidiano e de outras referências do pensamento humano, como as ideologias e as relações sociais.
O ensino trata o currículo na escola, sistematizando as explicações pedagógicas a partir do desenvolvimento simultâneo de uma lógica, de uma pedagogia e da apresentação de um conhecimento científico. Esta lógica deve ser capaz de conduzir o aluno à leitura da realidade, deve estar comprometida com os interesses das camadas populares, além de ter como eixo a constatação, a interpretação, a compreensão e a explicação da realidade social complexa e contraditória.
A relação entre as disciplinas como parte e o currículo como o todo é denominada dinâmica curricular. Nesta, o conhecimento é tratado de forma a criar condições para que se dêem a assimilação e a transmissão do saber escolar, pois:
reflete a sua direção epistemológica e informa os requisitos para selecionar, organizar e sistematizar os conteúdos de ensino ... que emergem de conteúdos culturais universais ... ainda que bem ensinados, é preciso que se liguem de forma indissociável a sua significação humana e social (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 30-31).
O conteúdo deve possuir princípios metodológicos, da lógica dialética, que devem ser organizados, sistematizados e fundamentados e assim serem selecionados como constituinte curricular. São princípios: a relevância, a contemporaneidade, a adequação às possibilidades sócio-cognoscitivas do aluno e a provisoriedade do conhecimento.
Os princípios da lógica dialética são constituídos pelo movimento, pela totalidade, pelas mudanças qualitativas e pela contradição, que são confrontados com os princípios da lógica formal, a fragmentação e a terminalidade. Estes não favorecem, como os princípios iniciais, a formação do sujeito histórico à medida que lhe permite construir, por aproximações sucessivas, novas e diferentes referências sobre o real no seu pensamento.
Para o trabalho com a dinâmica curricular sob a perspectiva dialética há a necessidade de rever o sistema de seriação e criar os ciclos, que são organizados por etapas nas quais os conteúdos de ensino são tratados com os princípios da lógica dialética.
Há quatro ciclos que abordam o ensino da EF no Coletivo de Autores (1992):
da pré-escola a 3ª série do fundamental - 'Ciclo de organização da identidade dos dados';
da 4ª a 6ª série do fundamental - 'Ciclo de iniciação à sistematização do conhecimento';
da 7ª a 8ª série do fundamental - 'Ciclo de ampliação da sistematização do conhecimento';
da 1ª a 3ª série do ensino médio - 'Ciclo de aprofundamento da sistematização do conhecimento'.
Para os autores, a EF trata do conhecimento de uma área denominada cultura corporal configurada em temas corporais como o jogo, o esporte, a ginástica e a dança, e que expressa um sentido/significado nos quais se interpenetram, dialeticamente, a intencionalidade/objetivos do homem e as intenções/objetivos da sociedade.
A metodologia implica em um processo que acentue, na dinâmica da sala de aula, a intenção prática do aluno para apreender a realidade e o conhecimento específico da EF e os diversos aspectos das suas práticas na realidade social em que está inserido o aluno.
A aula, que pode ser tematizada, aproxima o aluno da percepção da totalidade das suas atividades, pois articula ação (o que faz), com o pensamento (o que pensa), com o sentido (o que sente).
Esta aula pode ser organizada em três fases: a) primeira, na qual há discussão com os alunos sobre os conteúdos e objetivos da unidade buscando as melhores formas para eles se organizarem para a execução das atividades propostas; b) segunda, refere-se à apreensão do conhecimento; e c) terceira, na qual amarram-se conclusões, avalia-se o realizado e levantam-se perspectivas para as aulas seguintes.
A avaliação é determinada pelo processo de trabalho pedagógico relacionado dialeticamente com tudo o que a escola assume, corporifica, modifica e reproduz e que é próprio do modo de produção da vida em sociedades capitalistas dependentes e periféricas.
Para as finalidades, conteúdos e formas de uma proposta de avaliação, devem ser considerados aspectos como o projeto histórico, as condutas humanas, as práticas avaliativas, as decisões em conjunto, o tempo pedagogicamente necessário para a aprendizagem, o privilégio da ludicidade e da criatividade, bem como a re-interpretação e a re-definição de valores e normas, dentre outros, que, conseqüentemente, implicam: no fazer coletivo; nos conteúdos e metodologias; nas normas e critérios; nos níveis de desenvolvimento dos alunos; na emissão do conceito; e na interpretação do insucesso e do erro.
Por fim, o sentido que se busca é a concretização de um projeto político-pedagógico que tem como eixo curricular a apreensão e interferência crítica e autônoma na realidade, articulado com um projeto histórico de interesse da classe trabalhadora. As finalidades são a organização, identificação, compreensão e explicação da realidade mediada pelo conhecimento cientificamente elaborado e pela lógica dialética materialista do pensamento.
O conteúdo advém da cultura corporal e é selecionado em função de sua contemporaneidade. A forma de trabalho e intervenção é dialógica, comunicativa, produtivo-criativa, reiterativa e participativa. A avaliação do eixo curricular é o fundamental norteador do projeto pedagógico que se materializa nas aprendizagens dos alunos.
A concepção pedagógica de Kunz (1994)A obra de Elenor Kunz (1994), denominada 'Transformação Didático-Pedagógica do Esporte' apresenta a CPCE, para anunciar e estimular mudanças reais e concretas na concepção de ensino da EF, bem como no conteúdo, no método e nas condições das possibilidades na prática pedagógica.
Para Kunz (1994), o esporte é realizado predominantemente de forma cada vez mais normatizada e padronizada visando atender o rendimento cobrado pelas sociedades industriais. Para que o esporte possa ser praticado na escola, é preciso analisar quais os interesses, desejos e necessidades que formam a instituição.
O fenômeno social do esporte deve ter a capacidade de colocar o praticante na situação dos outros participantes no esporte; ser capaz de propiciar a visualização dos componentes sociais que influenciam todas as ações sócio-culturais no campo esportivo; além de poder desenvolver as competências da autonomia, interação social, bem como da competência objetiva.
A estrutura básica deve estar apoiada em pressupostos teóricos com base em critérios de uma ciência humana e social, formando alicerces do conhecimento para um agir racional-comunicativo; e na teoria instrumental, que deve fornecer os elementos específicos de uma pedagogia crítico-emancipatória nas suas seqüências e nos seus procedimentos regrados.
A didática comunicativa fundamenta a função do esclarecimento e da prevalência de racionalidade comunicativa, na qual se desenvolvem ações comunicativas, ou intenções simbolicamente mediadas.
A emancipação é entendida como o processo que media o uso da razão crítica e todo o seu agir social, cultural e esportivo, desenvolvidos pela educação. Ao induzir à auto-reflexão, a CPCE deverá possibilitar aos alunos um estado de maior liberdade e conhecimento de seus verdadeiros interesses, ou esclarecimento e emancipação.
Em vez de ensinar os esportes na EF pelo simples desenvolvimento de habilidades e técnicas do esporte, deverão ser incluídos conteúdos de caráter teórico-prático que tornam o fenômeno esportivo transparente, permitindo aos alunos a melhor organização da realidade do esporte, dos movimentos e dos jogos de acordo com as suas possibilidades e necessidades; a interação solidária e social em princípios de co e autodeterminação; e se expressar como ser corporal no diálogo com o mundo. Para o autor, o homem conhece o mundo através do se-movimentar, o que estabelece a relação homem-mundo no mundo vivido e enquanto sistema2.
O conteúdo para o ensino dos esportes na EF não pode ser apenas prático, deve ser também problematizado. Além das análises críticas do esporte, deve ser oferecida a oportunidade de tematizar o esporte de diferentes formas e perspectivas, através de programas ou cursos específicos.
As encenações do esporte são constituídas de regras a serem seguidas e nas quais o desempenho dos papéis depende de um texto em que a abordagem e as ações são rigidamente estabelecidas. Poderiam também auxiliar na melhor compreensão do fenômeno esportivo, na avaliação e no entendimento das mudanças históricas do homem, na possibilidade de desenvolvimento de diferentes encenações do esporte e a interpretação de diferentes papéis (espectador, atleta, amadores, praticantes, torcidas, fãs, sucesso, vitórias, derrotas, superação e ideais esportivos).
Pela encenação do esporte podem ser destacadas manifestações pedagógicas do ensino, como o trabalho, a interação e a linguagem. Para tanto, há de se partir dos elementos determinantes do sentido/significado da encenação do esporte para os diferentes contextos, considerando: o sujeito, ator ou atores, da encenação esportiva de acordo com suas vivências e experiências de corpo e de movimento; o mundo do movimento e dos esportes que precisa ser criticamente compreendido pela encenação; as diferentes modalidades de encenações do esporte no sentido histórico e sócio-cultural, o sentido/significado como determinação normativa que indica as pretensões de validade para cada encenação esportiva.
Uma concepção de ensino que se orienta nos pressupostos desta perspectiva estabelecida e que se explica na prática pela didática comunicativa, privilegia para esta interação e para a linguagem: o saber-fazer, o saber-pensar e o saber-sentir.
A subjetividade tem relevância pedagógica fundamental, pois é social, assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares, é 'nossa' forma de conhecer o mundo no qual se incluem objetos, a natureza, os outros e nós mesmos.
É o processo por meio do qual o homem se desenvolve no contexto social concreto, numa relação tensa entre um 'ser social' e um 'ser individual', e neste desenvolvimento os indivíduos se encontram e confrontam com mecanismos hegemônicos que desafiam e pressionam o indivíduo para uma forma de desenvolvimento estereotipado.
A relação de se-movimentar com a subjetividade humana é fundamentalmente uma relação de sensibilidade, pois a prática de exercícios repetitivos retira significados individuais nas realizações humanas: na EF, o sentido da aula deve ser o de um ensino de libertação das falsas ilusões, através da concepção crítica e pelo questionamento crítico dos alunos.
O professor deverá promover o 'agir comunicativo' entre seus alunos, para expressar entendimentos do mundo social, subjetivo e objetivo; a interação nas tomadas de decisão; formulação de interesses e problematização do esporte.
Em situação concreta de ensino, o esporte é uma das objetivações culturais expressas pelo movimento humano com hegemonia universal, com valor educacional no sentido crítico-emancipatório, desde que exercido responsavelmente pelo professor, e a transformação didático-pedagógica se dá pela identificação do significado central do se-movimentar de cada modalidade esportiva.
Enquanto permanece o significado dos movimentos esportivos, muda o sentido individual e coletivo, no caso de um grupo de aula. O ponto de referência central na transformação didática dos esportes é o aluno e o ensino escolar. Assim, devem ser consideradas as condições e situações do se-movimentar do aluno e do contexto escolar em que ele está inserido.
Uma aula segue um plano de desenvolvimento que está inserido em um programa de ensino para cursos (de dança, ginástica e atividades lúdicas) que são elaborados pelo professor e apresentados, discutidos e reformulados com os alunos. Cada aula tem uma essência que apresenta um conteúdo a ser desenvolvido, um objetivo a ser atingido, uma metodologia que orienta a ação e um prazo ou tempo total em meses a ser cumprido.
Além disso, é interessante trabalhar com 'arranjos materiais' para facilitar e compensar deficiências na execução de movimentos mais complexos ou que necessitem de maior força e velocidade, fazendo com os alunos vivenciem, elaborem arranjos, signifiquem e dêem sentido às atividades de acordo com a sua subjetividade.
Os profissionais que atuam cotidianamente na EF podem garantir uma mudança efetiva ou propor um 'programa mínimo' de conteúdos e métodos para cada série escolar, que por sua vez, abra espaço para a luta pela melhoria das condições locais e materiais da sua escola, bem como melhoria da 'bagunça interna' da EF, enquanto disciplina/atividade.
Redimensionar os programas, objetivos e metodologias em função da carga de exigências sociais que incide sobre as disciplinas escolares, inclusive a EF, trará a formação crítico-emancipatória da escola, e não de uma disciplina.
Análise das concepções pedagógicasOs dois livros propõem uma EF que possibilite a formação de indivíduos autônomos e críticos da realidade em que vivem.
O Coletivo de Autores (1992) tem uma preocupação mais abrangente dos conteúdos da EF, pois estes permitem a aquisição pedagógica dos elementos dentro de cada conteúdo. O livro deixa claro que a cultura corporal na EF deve tratar dos temas clássicos: esportes, dança, ginástica e jogos.
Uma proposta, porém, difere da outra, já a começar pelo título. Kunz (1994) se preocupa muito mais com o tratamento pedagógico que a EF deve dar para o esporte como conteúdo nesta disciplina escolar. Ele propõe que o esporte seja "transformado" pela CPCE e diferenciado do esporte que acontece na realidade social, ou em outros ambientes que não o da escola formal.
Kunz (1994) ressalta que a visão de "cultura corporal" possibilita as fragmentações e uma possível forma de retorno a dicotomias entre corpo e mente, pois uma vez que exista a cultura corporal, do corpo, seus gestos e significados; poderá haver então novas e tantas quantas forem possíveis as áreas de expressão cultural (KUNZ, 1994, p.18-20).
Foi elaborado um quadro expositivo das duas obras, que se encontra adiante, ilustrando as discussões e análises desses trabalhos, para visualizar e resumir alguns dos aspectos e tópicos importantes que estão sendo tratados por este estudo.
Pressupostos teóricosO pressuposto teórico ou a teoria do conhecimento que serve como inspiração para a CPCS, é o materialismo histórico e dialético.
O materialismo dialético não só tem como base de seus princípios a matéria, a dialética e a prática social, mas também aspira ser a teoria orientadora da revolução do proletariado. O materialismo histórico ressalta a força das idéias, capaz de introduzir mudanças nas bases econômicas que as originou, por isso, destaca a ação dos partidos políticos e dos agrupamentos humanos, cuja prática social pode produzir transformações importantes nos fundamentos materiais dos grupos sociais (MARX, 1988).
A possibilidade de mudança advém da consciência crítica mediante o questionamento das práticas quotidianas (da EF inclusive) quanto às propostas e aos interesses a que servem, logo, o indivíduo é incentivado a problematizar as relações sociais em que se insere, ao invés de aceitá-las passivamente como modelos de conduta, de metas ou de corpo, e esta problematização se faz primordialmente sobre as estruturas de dominação social, enfatizando as relações sociais de classe (OLIVIER, 1999).
Na CPCE, as teorias do conhecimento que embasam a obra são a sociologia racional-comunicativa (GRESPAN, 2002) e a fenomenologia (DAOLIO, 2004). O entendimento desta concepção não se realiza de forma simples em decorrência da ausência dos méritos de clareza textual que a obra apresenta. Isto se deve ao fato de o autor referenciar autores de diferentes correntes teóricas clássicas, como a Fenomenologia, autores da escola de Frankfurt, teoria antropológica de Tamboer, dentre outros, ainda que numa amplitude exagerada para os limites de sua obra (DAOLIO, 2004).
O conhecimento é produto da relação entre sujeito e mundo, e o ato de conhecer pertence ao ser-no-mundo, pois na fenomenologia não há nem ser (idealismo), nem mundo (materialismo), mas ser-no-mundo. Na prática da EF o sujeito é livre porque é livre na sua relação com o mundo. Tudo o que o sujeito sabe sobre o mundo, mesmo devido à ciência, é sabido a partir da visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e, ao se pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, convém despertar primeiramente esta experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda (MERLEAU-PONTY, 1971).
Conceituação de Educação FísicaO Coletivo de Autores (1992, p.50) conceitua a EF como:
[...] uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: o jogo, esporte, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal.
Kunz (1994, p.107) traz uma CPCE da EF, que:
[...] busca alcançar, objetivos primordiais do ensino, e através das atividades com o movimento humano, o desenvolvimento de competências como a autonomia, a competência social e a competência objetiva.
ConteúdosOs conteúdos, na perspectiva da CPCS, são selecionados seguindo os princípios de relevância, contemporaneidade, adequações pedagógicas, simultaneidade e provisoriedade; que permitem o conhecimento sobre o jogo, o esporte, a dança e a ginástica, organizados em ciclos e tratados com os princípios da lógica dialética numa evolução espiralada.
Com relação ao esporte, há o esporte da escola, privilegiando o coletivo sobre o individual, defendendo o compromisso da solidariedade e respeito humano, e não o esporte na escola.
Na perspectiva da CPCE, os conteúdos do trabalho pedagógico da EF têm caráter teórico-prático, permitindo aos alunos a melhor organização da realidade do esporte, movimento e jogos com as suas possibilidades e necessidades.
Giram em torno de um objeto central que é o movimento humano por meio das atividades lúdicas, da dança e principalmente através do esporte, que para serem trabalhados na escola, necessitam priorizar menos o rendimento, a competição e o treinamento precoce, do que os significados dos movimentos esportivos para cada aluno/a.
Os conteúdos são apresentados com o mesmo significado em ambas as obras, apesar de serem tratados por perspectivas distintas pelos autores, ou seja, a importância do esporte como conteúdo da EF escolar no processo de ensino-aprendizagem do aluno.
Há concordância entre os autores com relação à valorização das técnicas, eficiência biomecânica, à competição e esportivização da EF escolar; que não devem ser priorizados e objetivados neste tipo de ensino.
A crítica, a superação e a emancipaçãoA crítica na CPCS se realiza ao constatar a leitura dos dados da realidade escolar, através de julgamentos a partir de uma ética que representa os interesses de determinada classe social e determinar um alvo no qual se quer chegar, buscando uma direção.
Na CPCE, a crítica se refere ao esporte e suas transformações sociais, para refuncionalizar o movimento humano, libertando-o de estruturas coercitivas e repressoras.
A superação na CPCS ocorre quando o trato com o conhecimento reflete a sua direção epistemológica e informa os requisitos para selecionar, organizar e sistematizar os conteúdos de ensino que emergem dos conteúdos culturais universais, que são indissociáveis e significados humana e socialmente. Assim, os alunos podem compreender a realidade dentro de uma visão de totalidade, como algo dinâmico e carente de transformações, se opondo, enfim, à perspectiva tradicional de EF.
Na CPCE, a emancipação é entendida como o processo de libertar o jovem das condições que limitam o uso da razão crítica e todo o seu agir social, cultural e esportivo que se desenvolve pela educação. A emancipação só é possível quando os agentes sociais, pelo esclarecimento, reconhecerem a origem e os determinantes da dominação e da alienação.
ProposiçõesAs duas concepções pedagógicas da EF abordadas neste trabalho tratam de aspectos relacionados com a escola, com o processo de ensino-aprendizagem de EF e a sociedade brasileira, dentre outras questões.
Ambas têm a concepção da EF como disciplina escolar e realizam a crítica à perspectiva tradicional da EF brasileira. Nas obras também são tratados os termos superação e emancipação com o sentido de se propor cada qual uma nova perspectiva para o âmbito da EF escolar. Há também teorias do conhecimento que fundamentam ambas as idéias das obras, legitimando a sistematização epistemológica para a EF brasileira, fundamentada com teorias de outras áreas do conhecimento.
A importância destas obras é inquestionável, considerado o contexto histórico brasileiro e o contexto de vida dos autores, pelos quais elas foram elaboradas, destacando a contemporaneidade das obras, que ainda hoje são referenciais para a formação acadêmica e para a atuação profissional dos elementos envolvidos no processo educacional brasileiro e na EF escolar.
O surgimento destas propostas metodológicas apresenta-se fundamental para o desenvolvimento da EF, pois aparecem como orientação para a atuação de professores da área, através da sistematização dos conhecimentos científicos da EF brasileira em um período em que a área era debatida e se discutiam os paradigmas que alicerçavam seu o campo epistemológico.
As concepções pedagógicas trazem a transformação de questões essenciais para o trabalho escolar da EF e isto somente enfatiza a constatação da vanguarda teórica destes autores e suas obras para o processo de contestação e re-construção da EF brasileira.
Nas concepções pedagógicas apresentadas, o papel do professor de EF é fundamental, assim como a consideração com o conhecimento, histórica e culturalmente produzido, e aquele vivenciado pelos participantes do processo. Os conteúdos e ações metodológicas exigem competência e responsabilidade de todos os que se envolvem no processo de ensino, sendo o/a professor/a o principal efetor destas ações.
Outra questão que trouxe ampliação para o campo epistemológico da área foi idéia da 'cultura corporal' e 'cultura de movimento humano' até então inexistentes como constituintes de abordagens pedagógicas sistematizadas para a EF. Esta ampliação ocorre no sentido de considerar a EF como "um fenômeno sócio-cultural; cujo objeto de estudo é a cultura de movimento, que considera, além da eficiência, a eficácia simbólica dos movimentos; seus conteúdos constituem o patrimônio cultural corporal da humanidade" (DAOLIO, 2003, p. 13).
Analisando estas duas obras, pode-se perceber que a EF possui um saber que é próprio, original e autêntico dela, adquire lugar dentro da escola, partilhando experiências e equiparada às outras disciplinas curriculares, não sendo apenas uma ferramenta multidisciplinar ou instrumento de desenvolvimento ou desempenho fora de si mesma, servindo apenas como tempo e espaço para o lazer e/ou divertimento, alienação ou então vista nas possibilidades de integração, socialização, decorrentes de suas práticas.
A EF, juntamente com as outras disciplinas curriculares, deve então cooperar com a transformação e formação de cidadãos críticos, conscientes e autônomos, ativos e participativos de seu tempo, espaço e sociedade.
Esta transformação deve começar pela organização interna, estruturação do conhecimento, conteúdo da disciplina e posicionamento do profissional da área e dos colegas educadores. O professor de EF precisa saber se colocar na formulação do projeto pedagógico de uma escola. Isto demonstra iniciativa, empenho e capacidade para a tarefa pedagógica, no trato com os alunos: seres humanos em seus corpos.
O primeiro passo já foi dado... Que tal agora construirmos nossa história em nosso tempo e espaço social? Só nos resta seguir o caminho, tomando as decisões, analisando o percurso e resgatando o passado para tentar entender e melhor transpor os erros do presente. Seria isso superação?(alusão à teoria crítico-superadora)... Emancipação?(teoria crítico-emancipatória)... Enfim, vamos deixar estas inculcações um pouco em nós mesmos. Deixemo-nos em nossos corpos... E conflitos epistemológicos...
Tabela 01. Análise comparativa entre as obras do Coletivo de Autores (1992) e de Elenor Kunz (1994). Quadro explicativo-expositivo sobre as características e diferenciais entre as correntes progressistas em análise neste trabalho. O item 'teorias de base' foi adaptado de Grespan (2002).
Notas
Hildebrandt e Laging (1986) - Concepção Aberta; Tani et al (1988) - Concepção Desenvolvimentista; Freire (1989) - Concepção Construtivista; Betti (1991) - Concepção Sistêmica; Coletivo de Autores (1992) - Concepção Crítico-Superadora; e Kunz (1994) - Concepção Crítico-Emancipatória.
O objeto da pedagogia da EF e dos desportos, assim, se estende ao se-movimentar do homem, o que não implica num sentido abstrato, mas no homem que tem história, contexto, vida, classe social, enfim, um homem com inerente necessidade de se-movimentar (KUNZ, 1994, p. 67).
Referências Bibliográficas
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FREIRE, João Batista (1989). Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione.
GEERTZ, Clifford (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.
GRESPAN, Márcia Regina (2002). Educação física no ensino fundamental: primeiro ciclo. Campinas: Papirus.
HILDEBRANDT, Reiner & LAGING, Ralf (1986). Concepções abertas no ensino de educação física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.
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OLIVIER, Giovanina Gomes de Freitas (1999). Do ponto de vista das práticas quotidianas da Educação Física, quais as metodologias predominantes e os seus pressupostos teóricos subjacentes? Revista Motrivivência, n.13, p.165-174.
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digital · Año 10 · N° 83 | Buenos Aires, Abril 2005 |