efdeportes.com
Bola na rede: o ciberespaço, as torcidas
virtuais ea cultura do futebol no século XXI

   
Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP)
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP)
 
 
Ary José Rocco Junior
aryrocco@terra.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    As comunidades virtuais constituem verdadeiros agrupamentos de indivíduos usuários de redes de computadores que determinam fontes de valores que moldam comportamentos e organizações sociais na Internet. O objetivo deste trabalho é investigar as modificações que essas comunidades inserem na cultura que envolve o futebol enquanto forma de entretenimento e consumo. A importância desse esporte como elemento de afirmação da identidade nacional vai, paulatinamente, perdendo espaço para os clubes de futebol supranacionais. Isso se deve, em grande parte, às transformações provocadas pelo surgimento e expansão das tecnologias comunicacionais, sendo a Internet e a TV Digital os melhores exemplos. Surge assim, no seio dessa cibercultura, a torcida virtual, verdadeira forma de inteligência coletiva em torno do futebol, que ultrapassa as relações locais em função de uma dinâmica de comunicação planetária.
    Unitermos: Cibercultura. Comunidades virtuais. Futebol. Torcidas organizadas.

Trabalho (ponência) apresentado no VII Congresso Latinoamericano de Investigadores de
la Comunicación, ALAIC, que aconteceu em outubro de 2004, na cidade de La Plata
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 82 - Marzo de 2005

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Introdução

    Fenômenos relevantes têm marcado a emergência de uma sociedade global derivada de transformações ocorridas no mundo durante as três últimas décadas. Por se tratar de um processo ainda em andamento, o impacto da globalização ainda não pode ser apurado; no entanto, isso não nos impossibilita de procurar traçar uma compreensão relativa deste fenômeno, na medida em que nele podemos enxergar mudanças estruturais que incidem sobre nossos comportamentos, valores, hábitos, em suma, nossa própria existência.

    Diante de um mundo cuja tecnologia se torna força motriz, organizando a vida dos homens; quando ocorre a passagem de uma economia "high volume, para uma economia high value; a sociedade globalizada mostra com toda força seus tentáculos, conferindo sentidos outros para a problemática nacional e cultural" (Santos, 1998 : 54).

    As redes comunicacionais, condicionadas pelos intensos desenvolvimentos técnico e tecnológico presentes na segunda metade do século passado e início desse, são fenômenos de extrema importância no que se refere às transformações ocorridas nas sociedades contemporâneas. Em menos de meio século, elas contribuíram, entre outras coisas, grandemente na remodelagem das culturas, na terceirização da economia e na rearticulação política.

    Ao falar-se em redes comunicacionais, considera-se seu alinhamento em duas grandes matrizes: as redes convencionais e as redes avançadas.

"Aquelas são, em geral, possibilitadas pelo encadeamento dos media eletrônicos anteriores ao advento dos computadores, tais como, imprensa, telefonia, rádio e TV; estas, por sua vez, referem-se aos media informáticos, como o ciberespaço, e a Internet é o exemplo mais conhecido e acabado" (Coletivo NTC, 1996 : 264).

    Alguns autores consideram que as redes comunicacionais fundamentam a conceituação da sociedade atual como sociedade da comunicação. Isso porque não apenas a circularidade e saturação de informações, imagens e dados lhes são característicos, como também elas estão na base das profundas mudanças no metabolismo do imaginário social e na percepção cotidiana do tempo e do espaço.

    Pierre Lévy (1995 : 67), por exemplo, defende a idéia de que

"os novos meios de comunicação permitem aos grupos humanos pôr em comum seu saber e seu imaginário. Forma social inédita, o coletivo inteligente pode inventar uma 'nova democracia em tempo real', uma ética da hospitalidade, uma estética da invenção, uma economia das qualidades humanas".

    Nesse sentido, surge o conceito de comunidades virtuais. No entender de autores como Pierre Lévy (1995) e Howard Rheingold (1993), "esses agrupamentos podem ser entendidos como uma comunidade entre iguais, nas quais haveria um sentimento de homogeneidade e a ausência de hierarquias sociais". (Corrêa, 2002 : 10). Outras características dessas comunidades virtuais seriam a liberdade de expressão e a constituição de uma inteligência coletiva, nos quais se valorizariam a enorme heterogeneidade sócio-cultural dos seus participantes.

    O futebol, como fenômeno cultural, não poderia ficar de fora desse universo. Rapidamente, entidades ligadas ao esporte, como clubes e federações, invadiram a internet. "É quase impossível achar um grande clube europeu que não ponha em seu site, no mínimo, as principais notícias do time e as fichas completas de todos os jogadores. Esse é o básico, mas, em geral, os clubes oferecem muito mais" (Revista Placar, Setembro 2003 : 80).

    Esse trabalho procura demonstrar que as ditas comunidades virtuais, enquanto formadoras de uma consciência coletiva e de tudo aquilo que não é considerado presencial, não são um fenômeno recente, sempre existindo na formação e identificação dos torcedores de futebol. O que mudou, durante todo o século XX, foi a dimensão que os meios de comunicação deram a esses agrupamentos de seguidores do esporte mais popular do planeta. Diversos fatores de identificação, criados e disseminados pelas diferentes mídias em seu tempo, permitiram o desenvolvimentos de distintos elementos de pertencimento, com alcance territorial definido por esses meios de comunicação de massa.

    É nossa intenção identificar as comunidades virtuais, ou como chama Lévy, uma inteligência coletiva ligada aos clubes de futebol e sua contribuição para aquilo que poderíamos chamar de "torcida virtual", estabelecendo uma relação entre a formação dessas "torcidas virtuais" e seu relacionamento com a ideologia da globalização, especialmente no que diz respeito à cultura mundial - o relacionamento clube local x clube global -, e a substituição das violentas torcidas organizadas pelas controladas "torcidas virtuais", uma vez que essas últimas interessam à sociedade capitalista, pois facilitam o controle, estimulam o consumo e incentivam a indústria de entretenimento. Além disso, pretendemos mostrar que sempre houve uma relação entre as comunidades virtuais, os meios de comunicação de massa e os torcedores de futebol, buscando esclarecer como a mídia sempre influenciou na formação desses agrupamentos de torcedores, criando uma "inteligência coletiva".


1. O conceito de comunidade e sua virtualização

    A noção de comunidade, que sempre permeou a vida em sociedade, está ligada à idéia de um espaço de partilha, a uma sensação de pertencer a um grupo, de inter-relacionamento íntimo a determinado agrupamento social. Para André Lemos (2002:152), "sociologicamente, a idéia de comunidade é uma invenção dos primeiros expoentes dos estudos sociais (...) que partiram de uma perspectiva evolucionista que consiste em marcar a passagem de sociedade tradicional (a comunidade) para a sociedade moderna (a sociedade)".

    Zygmunt Bauman (2001 : 196-197), ao analisar o conceito de comunidade, escreve:

"Como observou amargamente Eric Hobsbawn, 'a palavra comunidade nunca foi utilizada tão indiscriminadamente quanto nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico se tornaram difíceis de encontrar na vida real. Homens e mulheres procuram grupos de que possam fazer parte, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo o mais se desloca e muda, em que nada mais é certo'. Jock Young faz um sumário sucinto da observação de Hobsbawn: 'Exatamente quando a comunidade entra em colapso, inventa-se a identidade'. (...) E como observou Orlando Petterson (citado por Eric Hobsbawn), 'embora as pessoas tenham que escolher entre diferentes grupos de referência de identidade, sua escolha implica a forte crença de que quem escolhe não tem opção a não ser o grupo específico a que 'pertence'".

    Penso que todas as noções de comunidade, apresentadas acima, apontam para um único desejo do ser humano: o de pertencer a um grupo de indivíduos onde possa, em algum momento, partilhar sentimentos comuns. O amor a um clube de futebol, por exemplo, torna-se marca de identificação do indivíduo. Manifestações de fidelidade e paixão por uma mesma agremiação criam fortes laços de união entre pessoas de diferentes classes sociais, etnias ou religião. Historicamente, esses agrupamentos, ou torcidas, já partilhavam, na expressão do seu amor ao clube do coração, um sentimento de homogeneidade e de ausência de hierarquia.

    A evolução das novas tecnologias permitiu o surgimento de uma nova dimensão social - o ciberespaço, com sua face mais visível que é a Internet, a rede mundial de computadores.

    Esta nova dimensão não elimina as demais preexistentes. Relaciona-se com elas, é condicionada, mas também altera as demais. Portanto, não se pode esperar uma nova dimensão alheia aos problemas e conflitos existentes na sociedade, pois é daí que ela será construída. Sua característica mais importante é a possibilidade de interatividade, do diálogo entre os milhões de terminais espalhados pelo mundo inteiro. Ele se revela como dimensão de convivência e convergência de qualidades humanas, apesar da ausência física dos interlocutores.

    A fragmentação social, fruto de um longo percurso de desenvolvimento contraditório, estabeleceu grupos que se caracterizavam como coletivos inteligentes. Enfrentando especificidades temáticas e por áreas, estes grupos, separados entre si, empreendiam muitas vezes esforços numa mesma direção, sem, no entanto, se alimentarem ou se conectarem para a troca, para o pensar junto.

    Com o ciberespaço abre-se a possibilidade de um passo à frente neste sentido. Possibilita-se o surgimento, no lugar de coletivos inteligentes, de inteligências coletivas, ou de produção intelectual e simbólica de maneira amplamente compartilhada, potencializando capacidades individuais, de grupos e setores numa mesma direção.

    Os coletivos inteligentes seriam espaços de debate racional e argumentado, visando ao convencimento e à unificação de propósitos.

"Esse projeto convoca um novo humanismo que inclui e amplia o 'conhece-te a ti mesmo' para um 'aprendamos a nos conhecer para pensar juntos', e que generaliza o 'penso, logo existo' em um 'formamos uma inteligência coletiva, logo existimos eminentemente como comunidade" (Lévy, 1995 : 23).

    O global pode encontrar nesta dimensão espaço de sua articulação, principalmente no que tange aos movimentos sociais e culturais, já que os setores dominantes já dispõem em abundância de instrumentos para sua articulação. Lemos (2002:154), ao identificar essa tendência, conclui que "atualmente, as novas tecnologias servem para constituir e, permanentemente, destruir a dimensão agregadora. Este é um dos paradoxos da cibercultura. A tecnologia moderna passa a ser apropriada pela socialidade, vetor de reliance".

    A forma de associação de pessoas em grupos com interesses e afinidades comuns, as comunidades virtuais (Rheingold, 1993), são típicas do ciberespaço. Porém, não constituem nenhuma novidade. Stone (1991:81-112) pensa essa idéia em quatro fases:

1a) no século XVII, em 1669, Robert Boyle inventou um método chamado testemunho virtual que permite formar uma comunidade de cientistas pelo testemunho à distância para a validação do trabalho de seus pares;

2a) nas comunicações elétricas (1900), fase em que surgiram o telégrafo, o telefone, o fonógrafo, o rádio e a televisão, todos eles formas de compartilhamento que criam vínculos virtuais na formação de comunidades de espectadores, ouvintes e telespectadores;

3a) na informática (1960), com o primeiro computador e os primeiros BBSs apareceu a primeira comunidade virtual com base na tecnologia da informação e, finalmente;

4a) na fase do ciberespaço e realidade virtual, com a emergência do ciberespaço, da comunicação mediada por computador, surgiram as comunidades virtuais das redes telemáticas.

    As etapas propostas por Stone, que também foram aceitas por Santaella (2003:122) e Lemos (2002:155), serão fundamentais quando estudarmos as formas de organização coletivas que envolvem o ato de torcer na cultura do futebol, uma vez que é impossível dissociar a atitude do torcedor e a relação que os meios de comunicação travam com o futebol e a cultura que o envolve.


2. O ato de torcer, os meios de comunicação e a massa

    A constituição do futebol - como esporte - esteve estreitamente ligada, tanto no Brasil quanto na Europa, à industrialização e ao surgimento das grandes cidades. O futebol, como uma necessidade de aproveitamento esportivo nas horas livres, não pode ser desvinculado das condições históricas que marcaram o fim do século XIX e o início do século XX. É somente nas primeiras décadas do século XX que começa a popularização do esporte. Sua democratização e consagração como elemento da cultura nacional dá-se nos anos de 1930, quando ocorre a profissionalização em 1933 (Moura 1998:19).

    Quando o esporte tornou-se um fenômeno de massas, atingindo as diferentes classes sociais do Brasil, nos anos 30, surgiram as primeiras torcidas uniformizadas de futebol, principalmente, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Durante as primeiras décadas do século XX, alguns clubes contavam com indivíduos que representavam toda a torcida de um determinado time e tinham certo prestígio com a imprensa da época. Tratava-se, pois, de torcedores símbolos, cuja liderança era tão intensa, que mantinham seus comandados sob uma disciplina quase severa.

    Segundo consta, o primeiro desses torcedores a equipar seus seguidores com uniformes e música, no Rio de Janeiro, foi um funcionário público chamado Jaime Rodrigues de Carvalho, fanático pelo Flamengo. Ele fundou uma charanga1 que animava os jogos do time.

    Em 1939, foi inaugurada por Manoel Raymundo Paes de Almeida, a primeira torcida organizada do estado de São Paulo, chamada Grêmio São-Paulino. Muitos a consideram a torcida mais antiga do Brasil, transformando-se depois, na TUSP - Torcida Uniformizada do São Paulo, fundada por Manoel Porfírio da Paz e Laudo Natel em 1940.

    Até a década de 60, associava-se a torcida uniformizada aos torcedores símbolos. Naquela época, as torcidas não apenas eram vinculadas aos clubes, como na maioria das vezes, a alguém envolvido na organização institucional do futebol (político, funcionários de ligas, federações de futebol, dirigente).

     Os torcedores que faziam parte das uniformizadas, antes dos anos 70, participavam da vida social dos clubes, de forma que alguns eram até levados para suas diretorias.

    A mudança na relação entre o torcedor e o futebol ocorre a partir da década de 70. O advento da televisão, o sucesso internacional do futebol brasileiro e os interesses políticos da ditadura militar em tirar proveito desse sucesso, fizeram surgir no imaginário popular uma identidade nacional em torno do esporte. "A participação dos torcedores no futebol tornou-se mais problemática em razão de um contexto mais complexo e dinâmico que aquele vivido pelos torcedores símbolos desde a década de 40" (Toledo, 1996:30). Além de todos os elementos citados, Santos (1998:62) aponta "o aumento no mercado de bens culturais, com os torcedores como consumidores em potenciais", como outra causa para essa nova relação que se estabelece entre o torcedor e o futebol.

    As torcidas organizadas consolidam-se na década de 80, tornando-se organizações burocratizadas, com estatutos e normas próprias, aprovados pelos seus membros. A partir de então passam a ser apontadas, fundamentalmente, como as principais responsáveis pela violência nos estádios de futebol.

    Para Lopes & Maresca (1992:132), as organizadas seriam um dos sinalizadores da autonomização crescente no futebol profissional, cada vez mais bem estabelecido como um mundo à parte, com regras próprias e tropas especializadas. Nessa perspectiva, aponta-se, igualmente, para o fato de que o fim do futebol-arte (praticado anteriormente) e o cultivo do futebol-força (de força física e resultados, através da crescente profissionalização deste esporte). Além do advento da televisão, "para quem o artista importa mais que a sua arte" , acabaram deslocando também o espetáculo em direção aos torcedores, cada vez mais conscientes de seu papel.

    A última década do século XX e os primeiros anos do século XXI têm como característica o aparecimento de grupos ou tribos urbanas que, apesar de diferenças internas, buscam identidades a fim de se diferenciarem da massa, tida como anônima, indefinida e dispersa. Os membros desses grupos constróem signos que os representam socialmente, distinguindo-se dos outros. O caso das torcidas de futebol, especialmente as organizadas é emblemático na medida em que, ao andar em bando, vestindo a camisa do seu time, eles acabam diferenciando-se do todo.

    Diante de um espaço e tempos urbanos deteriorados, a sociabilidade clássica, "marcada pelas relações face a face, outrora definidas pelas relações de vizinhança e enraizamento no meio social, não desaparece por completo" (Coletivo NTC, 1996:97). No entanto, suas novas modulações ressurgem e submetem-se a um redimensionamento dos lugares. Hoje, como palco onde as novas sociabilidades se agregam estão basicamente os shopping centers, os estádios de futebol e shows de rock.

    Os membros dos grupos, que fazem parte do cenário urbano, como é o caso das torcidas organizadas, não apenas constróem para si uma nova forma de sociabilidade e de identidade, como também a desdobram na violência e na negação do outro. Além disso, conforme mostrou Baudrillard (1992), a violência coletiva praticada por esses grupos de jovens, em sua espetacularização, também parece indicar o êxtase de pertencimento, principalmente, quando a violência é televisionada e mostrada através dos meios de comunicação. Nas palavras do autor, "existe sempre perigo que esta classe de transição possa ocorrer, que os espectadores possam cessar de ser espectadores e se tornem vítimas ou assassinos, que o esporte possa deixar de ser esporte e passe a ser transformado em terrorismo" (Baudrillard, 1992 : 88).

    Os estádios de futebol, em dias em que ocorrem os jogos, apresentam uma característica comum: uma intensa reunião de pessoas fazendo com que estes espetáculos de massa atuem como fenômenos coletivos e provoquem momentos tanto de violência quanto de união entre seus participantes. A participação concreta do ser humano em fenômenos coletivos, como os aqui investigados, talvez seja uma prova de que ele não apenas deseja, como também necessita se dissolver na massa.

    Para Elias Canetti (1995), o homem e a sociedade são produtos de um conflito; ou seja, ele teme o contato com os seus semelhantes (sentimento que faz surgir a ordem, a hierarquia e as distâncias individuais), mas este medo só é superado quando ele se dissolve na massa. Nela o homem sente o desejo de ser tocado, perdendo sua individualidade:

"Somente na massa é possível libertar-se de temor do contato (...) tão logo nos entregamos à massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais, tudo se passa como que no interior de um único corpo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa busca concentrar-se de maneira tão densa: ela deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor individual do contato. Quanto mais energicamente os homens se apertam uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da massa" (Idem, 1995:14).

    Canetti afirma, ainda, que a massa é marcada por um fenômeno chamado "descarga", que seria o momento onde os indivíduos se sentem iguais, sendo acompanhado de um "alívio impressionante".

    Nos esportes, de uma maneira geral, e no futebol, especificamente, os espectadores se comportam de modo diverso de outros contextos. Trata-se de uma vibração que vem conjugada a um contato corporal intenso e, por isso, violento, pelo menos em relação aqueles que estão pouco familiarizados com o ambiente do jogo. Para os torcedores, o seu comportamento não tem nada de estravagante, fazendo parte de um ritual inúmeras vezes encenado.

    Ocorre que nesses momentos limítrofes, porque fora do domínio das regras consideradas civilizadas, estamos diante de experiências exaltadas e imponderáveis; na medida em que, a experiência vivida naquele instante reduz nossa auto-consciência a quase nada, afastando pensamentos como os pertencentes ao domínio da individualidade e, portanto, da hierarquia e da ordem. Talvez a corporalidade e a igualdade presentes nas arquibancadas, bem como o desenrolar da partida permitam aos torcedores vivenciar uma experiência que por si só já predispõe ao descontrole.

    O envolvimento do torcedor com o transcorrer da partida envolve, então, um labirinto de relações humanas, que vai desde a vivência momentânea da catarse, à poderosa força ritualística, passando pela relação de dimensões religiosas com o ídolo e o time, até a identidade que se cria entre os torcedores; além, da experiência do ganhar ou perder.


3. O futebol no mundo virtual e o torcedor consumidor

    Hoje, para as maiores equipes do "Calcio" Italiano, da Liga Espanhola de Futebol e da "Premier League" inglesa, a Internet é muito mais que um lugar comum e virtual em que se reúnem os simpatizantes de uma mesma agremiação. Para muitas equipes (sociedades anônimas em sua maioria), sua página de Internet é um veículo oficial e idôneo para dar a conhecer não somente o relato da última partida que o clube jogou e dos detalhes de sua história, mas também, e sobretudo, para tratar de outros assuntos, incluídos os mais importantes e atuais, aqueles que fazem a saúde do clube.

"O Manchester United, por exemplo, possui um dos melhores sites da rede. O seu banco de dados tem registrados os jogos disputados desde 1886 e inclui também as categorias inferiores e femininas. É difícil que alguma pergunta sobre o time inglês não tenha resposta no site. Venda de ingressos e carnês, fichas completas das partidas, lojas virtuais com mil e um tipos de produtos, toques e logotipos para celulares, acesso às rádios e televisões oficiais dos clubes, seções de fotos e vídeos são algumas das atrações dos sites de clubes como Barcelona, Real Madrid, Arsenal, Juventus, Milan..." (Revista Placar, setembro 2003 : 80).

    Mesmo no Brasil, onde os mais puristas se recusam a acreditar que o futebol está inserido no mundo globalizado, a Internet já é uma realidade, com objetivos bem definidos na hora de atrair seus fãs na web, como mostra reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, de 24 de abril de 2004:

"Serve para informar, mas também para vender, para promover cartolas e mandar recados. Na Internet, o (Campeonato) Brasileiro ferve. Os 24 clubes, pela primeira vez, começaram o torneio com sites oficiais funcionando de forma integral. (...) O objetivo é ganhar corações e mentes e conquistar o bolso dos fãs. (...) A maioria dos sites dos clubes virou um balcão de negócios".

    O futebol pode ser considerado a prática cultural dominante, em escala global, durante a década de 90, tal como foi o rock nos anos 60 e 70. A difusão do futebol, como todos sabemos, é um fenômeno prévio à atual onda globalizadora.

    Richard Giulianotti (1999:9), sociólogo britânico, especialista no esporte, divide o futebol em três fases:

"a 'tradicional', ou 'pré-moderna', onde vestígios da era pré-industrial ou pré-capitalista são ainda muito influentes, (...) de modo geral, isso envolve a aristocracia ou a classe média tradicional; (...) a 'modernidade', relacionada à rápida urbanização e ao crescimento político da classe trabalhadora (...), em matéria de lazer (...) ocorre a divisão entre alta cultura (burguesa e legitimada) e baixa cultura (operária e popular), sendo que o futebol passa a ser um marco desta última categoria; (...) e a 'pós-modernidade', marcada pela dimensão crítica ou pela rejeição real da modernidade (...), as identidades sociais e culturais tornam-se cada vez mais fluidas e 'neotribais' em suas tendências de lazer (...). A globalização dos povos, da tecnologia e da cultura dá origem a uma cultura híbrida e a uma dependência econômica das nações em relação aos mercados internacionais".

    Agora, e esta é uma grande diferença com outros fenômenos globais, como o rock, a difusão do futebol está, até o momento, estreitamente relacionada com outro fenômeno que lhe foi contemporâneo: a difusão da forma moderna de comunidade política, isto é, a constituição dos Estados-Nação. Isto se evidencia na forma de organização que adquiriu o futebol: a FIFA, criada no auge do nacionalismo europeu (1904), foi concebida para ser uma instituição de caráter internacional, uma vez que seus membros são federações - e não estados - nacionais. A função mais importante deste ente internacional tem sido, além de homogeneizar, regular e promover a prática do futebol em todo o planeta, a de organizar competições esportivas em que se enfrentam "representações nacionais". Essas "seleções nacionais" estavam, e ainda estão, compostas exclusivamente por jogadores que nasceram em seus respectivos países.

    O futebol se converteu, então, em um elemento útil para estimular a integração simbólica tão necessária para a conformação das identidades que estão na base dessas comunidades imaginadas que são as nações. Para muitos, a assistência ativa aos espetáculos esportivos é um verdadeiro dever cívico, independentemente do gosto pelo esporte. Apoiar a seleção nacional é uma sentida declaração pública de lealdade à nação.

    Neste processo, a mídia, em especial a crônica esportiva especializada, atua como elemento de reafirmação do nacionalismo, difundindo ideais de amadorismo e de amor desinteressado às cores da pátria. Graças à mídia, o nacionalismo tem nos campeonatos internacionais de futebol - com sua expressão máxima a Copa do Mundo de Futebol, cuja final em 1998 congregou 1,7 milhões de telespectadores em todo planeta - um reduto que até hoje parecia intocável. A fusão de nacionalismo e futebol na indústria massmediática permitiu aos meios de comunicação aumentar sua audiência e aos patrocinadores o aumento de suas vendas.

     Porém, nos últimos anos da década de 90, a forma estatal-nacional foi sendo paulatinamente colocada em questão como comunidade político-cultural. Os processos de globalização, que se manifestam em conformidade com as novas identidades sub, trans e supraestatais, estão desgastando o sentido comum nacionalista que, até então, os seres humanos valorizavam e sob os quais atuavam socialmente.

    Acredito que estamos presenciando um enfraquecimento da até então exitosa articulação entre futebol e nacionalismo, provocando uma transformação na cultura futebolística mundial, já acentuada pela televisão, uma mídia, como já vimos, dita tradicional. Como ocorre em outros âmbitos da vida social, a globalização do futebol implica uma modificação da organização desde formas internacionais até formas que têm um caráter mais supranacional, como os grandes clubes do futebol mundial, em especial, os espanhóis, italianos e ingleses.

    A organização do G-14 (entidade que reúne os grandes clubes europeus) marcou uma pauta fundamental no campo sociológico do esporte mais popular do planeta, uma vez que o futebol está começando a se separar - institucionalmente - da carga de nacionalismo que carregava, mas não para se conformar como uma prática autônoma, mas sim para ceder sua independência às leis do mercado global, em todos os seus aspectos, inclusive tecnológicos e culturais. Como conseqüência, o futebol está perdendo cada vez mais não somente seus valores humanistas particulares - inspirados em ideais olímpicos e amadores, reciclados no ideal de "fair play"-, senão também sua associação com o nacionalismo e a regulamentação estatal.

    Assim, o critério de valorização legítima dentro do campo de futebol, que alguma vez se pensou seria exclusivamente o rendimento esportivo dos jogadores e de suas equipes, se está distanciando dos sentimentos e valores culturais baseados em uma organização calcada em critérios de nacionalidade, para favorecer elementos de legitimação alicerçados em sua capacidade para servir de instrumento para as estratégias de marketing das grandes empresas transnacionais de entretenimento e de comunicação.

    Nesta direção, aponta também a paulatina conversão, verificada em escala global, dos clubes em Sociedade Anônima e/ou em empresas que operam com capital transnacional, assim como a crescente flexibilização das medidas protecionistas do "futebol nacional" que limitavam o número de estrangeiros que podiam atuar nas equipes. O mesmo pode ser dito da flexibilização das obrigações de empréstimos de jogadores às seleções por parte dos clubes.

    Desta forma, o futebol, que alguma vez se pensou ser propriedade da sociedade civil (do mundo, da vida), parece ser, cada vez menos, uma questão de Estado e se converte, como tudo na era neoliberal, em um monopólio do mercado globalizado. Desde esta perspectiva, em um futuro próximo, parecerá sem sentido falar de "futebol nacional", como já ocorre com a "indústria nacional": como os eletrodomésticos de hoje, as equipes serão - algumas já são - consumidas em qualquer parte do mundo.

    Por outro lado, parece que, neste início de século XXI, as torcidas, pouco a pouco, estão deixando de ser nacionais para assumir um caráter supranacional: clubes como o Barcelona ou o Manchester United, apenas para citar alguns, não somente contam com atletas das mais diversas origens geográficas, senão arregimentam torcedores de muitas nacionalidades.

    Não será estranho que, graças às novas tecnologias, aqui incluída a televisão, e à revolução digital, em um futuro muito próximo estas torcidas se organizem e formem comunidades virtuais supranacionais, trocando opiniões e experiências em torno de um clube de futebol, formando aquilo que Lévy (1995) convencionou chamar, como já mencionamos neste trabalho, de inteligência coletiva. No momento em que torcer para esses clubes seja mais importante que apoiar um clube nacional, como acontecia antes, as adesões e lealdades futebolísticas locais serão, evidentemente, coisas do passado. Com o apoio da tecnologia parece que, pouco a pouco, a cultura global do futebol deverá superar o mesmo caráter local, desvinculando os seres humanos envolvidos no esporte com sua nacionalidade e a representação da identidade nacional.

    Além de auxiliar na supremacia do global sobre o local, as novas tecnologias estão provocando uma alteração na territorialidade do futebol. Por territorialidade podemos entender a relação entre espectadores e jogadores, ou na interferência daqueles na disputa do jogo em si.

    O esporte televisivo produz uma paisagem esportiva de igualdade. A transmissão de uma partida pela televisão provém sua audiência de um contexto social, de uma forma de união à massa presente no estádio. John Bale (1998) se refere à televisão "como um lugar de reunião, os fãs esportivos confinados domesticamente, se relacionando com outras pessoas. Indubitavelmente compõem significativas experiências humanas".

    Porém, Bale (1998) faz questão de salientar que

"a audiência televisiva não pode influenciar no resultado da partida que está assistindo. Além disso, está confinada a um espaço doméstico onde seu comportamento está restrito tão rigidamente - senão mais - do que o daquelas pessoas presentes ao estádio onde ocorre o evento".

    De certo modo, essa situação satisfaz às normas de realização esportiva e também ao desejo dos fanáticos. Permite ao indivíduo, pela televisão, se sentir próximo aos lances do jogo. Exemplifica uma tensão entre a necessidade aparentemente lógica de participar e sua localização potencial na torcida. Também ilustra a tensão entre determinado mundo "científico" e o ambíguo mundo "humano". Tensão que, de uma certa forma, será abrandada pelas novas tecnologias, uma vez que essas permitem ao indivíduo sua interação com a partida e a troca compartilhada de experiências em tempo real com outros torcedores, somente possível nos estádios de futebol, modificando, novamente, o espaço e o tempo relacionados com o esporte.


Considerações finais

    Vimos, pelo exposto neste trabalho, que existe uma crise ampliada pela globalização, crise que aprofunda a exclusão social e que revela a fragilidade da representação e das instituições do mundo ocidental como referência de democracia. Democracia que não garante direitos iguais para os diferentes, mais que isso, aprofunda, através da dinâmica global, o distanciamento do poder decisório da realidade da vida cotidiana vivida e compartilhada pela população.

    As novas tecnologias geraram uma nova dimensão social, chamada ciberespaço, que está em processo de definição de sua arquitetura, em torno da qual existem conflitos manifestos.

    Vimos que, por suas possibilidades técnicas, a depender de sua arquitetura, o ciberespaço pode ambientar o embate, praticamente inexistente nas mídias tradicionais, entre as classes e setores da sociedade, que têm interesses distintos e, muitas vezes, antagônicos. Este caminho permite às pessoas atuarem como sujeitos sociais através do ciberespaço, a partir de sua cultura local e vivida, na dimensão do regional, do nacional e do global.

    Esta deontologia da arquitetura e do funcionamento do ciberespaço não tem a pretensão de superar os problemas existentes e evidentes de nossa formação social contemporânea, mas procura abrir brechas, trilhas, que podem ajudar a encontrar caminhos novos e consistentes. O futebol, enquanto elemento de composição da cultura jovem, não é exceção à regra, buscando seu espaço na arquitetura desse novo domínio tecnológico.

    O incremento das novas tecnologias, em especial da Internet, está formando uma nova geração de admiradores do futebol, a, como dissemos acima, do torcedor globalizado. Além disso, cria uma relação entre clube e torcedor, que antes era impossível com a televisão ou o rádio. Agora os clubes têm a possibilidade de colher informações que podem ser aproveitadas em um banco de dados, por exemplo. Já as visitas aos sites podem ser exploradas para tirar dos torcedores informações precisas na hora de elaborar políticas de marketing e vendas.

    Televisão, computadores e telefonia estão se unindo numa tendência que os transformará num único meio de comunicação. Essa união, a convergência, pretende eliminar a diferença existente entre meio e mensagem, obrigando as empresas de mídia e telecomunicações a se reinventar diante das modificações que estão acontecendo tão rapidamente.

    Nesse contexto, a Internet desempenhará papel importantíssimo em virtude dos inúmeros recursos de comunicação que possui. O site oficial da Copa do Mundo de 1998, por exemplo, registrou, em um único dia - o da final entre França e Brasil -, 38 milhões de acessos em todo o mundo. O pontapé inicial da TV interativa, que combina as tecnologias de transmissão de TV (broadcast) e de Internet em uma série de serviços, já foi dado em países como Estados Unidos, Canadá e Japão. Agora é permitido o acesso simultâneo aos programas de televisão e à Internet já no próprio aparelho de TV.

    Todas essas modificações devem alterar a cultura do futebol mundial. Resta saber de que forma essas novas tecnologias poderão provocar modificações na já mutante cultura do futebol mundial.


Nota

  1. Espécie de banda musical que animava as partidas especialmente nos estádios do Rio de Janeiro na década de 40.


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