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Corpos em metamorfose: um breve olhar
sobre os corpos na história, e novas
configurações de corpos na atualidade

   
*Licenciada em Educação Física/UFSM
Especialista em Aprendizagem Motora/UFSM
Mestre em Ciência do Movimento Humano/Desenvolvimento Humano/UFSM
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela PUCRS
Prof. da Universidade Luterana do Brasil/ULBRA/Campus Santa Maria/RS

**Prof. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia PUCRS.
 
 
*Maria Cristina Chimelo Paim
crischimelo@bol.com.br
 
**Marlene Neves Strey
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Este ensaio em torno do tema corpo, gênero e sociedade, se propõe a pensar alguns aspectos sociais e culturais, que contribuíram para a construção dos corpos em nossa sociedade. O corpo será apresentado como construção social, e, após, sem ter a pretensão de construir sua história, será apresentado peculiaridades à respeito do corpo ao longo da história. Para finalizar será abordado à busca pelo corpo ideal, ou seja, a metamorfose de corpos na atualidade.
    Unitermos: Construção social. História e metamorfose do corpo.

"O mundo da imagem é o sensível: o corpo.
O corpo é nossa presença no mundo, e como tal, o projeto de nosso querer."

Sérgio Lima, do livro O Corpo Significa
 
 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 79 - Diciembre de 2004

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Corpos socializados

    O culto ao corpo é uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea, cresce dia a dia o número de cirurgias estéticas, as academias de ginástica são cada vez mais freqüentadas por mulheres de todas as idades, o corpo torna-se objeto de consumo, onde substanciosos investimentos fazem as pessoas estarem em constante busca da imagem ideal. As mulheres no decorrer da história são apontadas como mais suscetíveis à imposição social pelo padrão ideal de beleza, muitas vezes acarretando em distorção da imagem corporal e transtornos alimentares.

    Nessa constante valorização da aparência jovem e bela, de corpo esbelto, cobrada das mulheres, percebe-se que as relações de gênero continuam reproduzindo a submissão, controle e manipulação, imposta às mulheres, mantendo assim as mulheres afastadas dos reais problemas sociais e culturais do seu tempo.

    Gênero tem sido, desde a década de 1970, o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Apareceu primeiramente entre as feministas americanas, para salientar a construção social e normativa das diferenças entre homens e mulheres (Scott, 1990). Lavinas (1997) define gênero como sendo o sexo social, como uma das relações que estruturam e situam o indivíduo no mundo, determinando oportunidades, escolhas, estratégias, trajetórias, vivências, etc.

    As diferenças de gênero, são socialmente construídas, e muitas vezes estão a serviço de interesses e necessidades sociais (Strey, 1998). Desde pequenos se espera que as meninas sejam de uma determinada maneira e os meninos sejam de outra. A socialização das meninas é construída sobre um corpo frágil, passivo, desprovido de força, onde a beleza física é fundamental. Nos meninos, ao contrário um corpo forte, agressivo, viril é o mais estimulado.

    O corpo de mulheres e homens é fruto dessa construção social, das diferenças de gênero construídas socialmente ao longo da história. Nessa socialização insere-se a modelagem dos corpos pelas normas, representações culturais e simbólicas próprias de cada sociedade. Neste sentido, tem-se o corpo como o laço da interação entre o indivíduo e o grupo, a natureza e a cultura, a coersão e a liberdade. De acordo com Détrez (2003), o corpo apresenta-se como a interface entre a individualidade no que tem de mais singular, e o grupo, mas igualmente entre a biologia e o social.

    Essas palavras de Détrez, vem reafimar o que Mauss (1974), fala sobre o corpo. Em seu trabalho, Mauss evidencia que toda a sociedade, em qualquer tempo e em qualquer lugar, sempre desenvolveu modos eficazes e conseqüentemente tradicionais de trabalhar o corpo do ser humano, em virtude de necessidades emergentes do corpo social. Desde a educação dos sentidos até às técnicas simbólicas, o corpo sempre foi alvo de manipulações físicas e simbólicas no interior das sociedades. Cada sociedade particular produz sobre o corpo uma série de ações que são operacionalizadas com base em técnicas corporais, tais como: posturas, movimentos na alimentação, na higiene, nas práticas sexuais, nas técnicas esportivas, etc.

    Dessa forma, nosso corpo segundo Heilborn (1997), não é uma entidade natural apenas, o corpo é também uma dimensão produzida pelos efeitos da cultura. A nossa sensação física passa, obrigatoriamente, pelos significados e elaborações culturais que um determinado ambiente social nos dá. O significado de corpo, varia de acordo com a sociedade, varia em função do estatuto do indivíduo naquele contexto. Desse modo, a aparente realidade imutável, que significa que todos os indivíduos têm corpo, deve ser pensada dentro de um contexto cultural específico. Assim o corpo, não fala por si próprio, se ele anuncia algo é aquilo que a própria cultura o autoriza a falar.

    O conceito de corpo remete à questão da natureza e da cultura, como vimos anteriormente, e abre assim um leque diferenciado de posicionamentos teóricos, filosóficos e antropológicos. Segundo Braunstein & Pépin (1999), o corpo não se revela apenas enquanto componente de elementos orgânicos, mas também enquanto fato, social, psicológico, cultural, religioso. Está dentro da vida cotidiana, nas relações de produção e troca, é um meio de comunicação, pois através de signos ligados à linguagem, gestos, roupas, instituições às quais pertencemos permite nossa comunicação com o outro. O corpo é um lugar que institui idéias, emoções e linguagens, sendo uma interação sensório-motora dos sentidos à ação. Na sua subjetividade, está sempre produzindo sentidos que representam sua cultura, desejos, paixões, afetos, emoções, enfim, o seu mundo simbólico. Neste jogo o corpo fala e também é falado pelos outros, sendo um múltiplo lugar de significações, que nossa cultura permite revelar (Fausto Neto, 2000).

    Como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano é socialmente construído (Rodrigues, 1983). De acordo com Rotania (2000), é construído, no sentido simbólico-cultural humano, visto que assume significados diferentes ao longo da história, mas é também materialidade, permanência e identidade. A análise da representação social do corpo, segundo Rodrigues (1983), possibilita entender a estrutura de uma sociedade. Sendo que essa privilegia um dado número de características e atributos que deve ter o homem/mulher, sejam morais, intelectuais ou físicas; tais atributos são, basicamente, os mesmos para toda a sociedade, embora possam ter diferentes nuances e às vezes profundos contrastes para determinados grupos, gênero, classes ou categorias que fazem parte da sociedade. O corpo humano, além de seu caráter biológico, é afetado pela religião, grupo familiar, classe, cultura e outras intervenções sociais, como visto anteriormente. Assim, cumpre uma função ideológica, isto é, a aparência funciona como garantia ou não da integridade de uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou de afastamento em relação ao conjunto de atributos que caracterizam a imagem dos indivíduos em termos do espectro das tipificações.


Corpos na História

    Entender os sentidos construídos para o corpo na atualidade, requer uma caminhada, mesmo que breve pela história, com objetivo o de desvelar peculiaridades que foram incorporadas ao mesmo. Desse modo, vamos procurar aos poucos, revelar como a história tratou o corpo, o corpo sexuado, os gêneros, destacando traços que se sobressaíram em determinados períodos.

    Começamos nossa história trazendo aspectos peculiares de ver o corpo na Antiguidade. De acordo com Ramminger (2000), no século V-IV aC., Sócrates, Platão e Aristóteles, determinaram a oposição entre dois mundos: o material e o ideal, o corpo e a alma, o desejo e o pensamento. No entanto os antecessores de Sócrates, pensavam o indivíduo de forma integrada. Corpo, pensamento e o mundo invisível dos Deuses faziam parte de um só domínio, a physis. Para Silva (2001), o conceito de physis está vinculado à representação do cosmos, do universo e de todos os seres e contrasta, naquele período, com o conceito de techné, como representação de tudo que é criado pelo ser humano, que possuí um elemento racional, parte do processo civilizatório.

    De uma maneira abrangente, pode-se dizer que os cuidados com o corpo, foram caracterizados de diferentes maneiras na história ocidental. De acordo com Siebert (1995) e Rosário (2004), o corpo na Grécia antiga, era visto como elemento de glorificação e de interesse do Estado. O corpo era valorizado pela sua capacidade atlética, sua saúde e fertilidade. Em Esparta, atividades corporais recebiam um lugar de destaque na educação de jovens, que buscavam um corpo saudável e fértil. Já em Atenas, no modo de educação corporal, prevalecia o ideal de ser humano belo e bom. Nas demais cidades Gregas, a atividade corporal, encontrava-se em torno dos Jogos Olímpicos. Porém as atividades corporais das classes menos favorecidas, tinham como objetivo, a preparação para a guerra.

    A moral quanto ao corpo a ao sexo não era rigidamente organizada e autoritária, apenas estabelecia algumas normas de conduta, tentando chegar a um consenso sobre o bom uso dos prazeres.`As mulheres cabia a obediência e fidelidade aos seus pais e maridos (Rosário, 2004).

    Para Laqueur (1990) & Nicholson (2000), desde a Grécia até o século XVIII, persistiu a visão unissexuada do corpo, ou seja, o modelo de sexo único: homens e mulheres eram considerados da mesma natureza biológica. O corpo feminino é visto como inferior ao corpo masculino, sendo que a diferença residia no grau de calor do corpo, quanto mais quente, mais perfeito. Por ser possuidor de maior calor vital, os órgãos sexuais masculinos eram mais desenvolvidos que os femininos. Essa frieza relativa do corpo da mulher, impedia que seus genitais fossem exteriorizados, assim vagina e colo do útero não eram considerados algo distinto do pênis, mas constituíam, juntos, uma versão do pênis menos desenvolvida.

    Na Idade Média, toda e qualquer preocupação com o corpo era proibida. A influência da Igreja era grande, extinguindo até os Jogos Olímpicos. Evidencia-se a separação do corpo e da alma, prevalecendo à força da segunda sobre o primeiro. Segundo Rosário (2004), o bem da alma estava acima dos desejos e prazeres da carne e, portanto, acima dos aspectos materiais. O corpo tornou-se culpado, perverso e necessitado de purificação. Incentivo ao autoflagelo, enforcamentos, apedrejamentos e execuções em praça pública. De acordo com Siebert (1995), os dados encontrados na Idade média, quanto à cultura corporal, são de acentuado desprestígio.

    Nos séculos da caça às bruxas, que vai de XIV até meados de XVIII, as mulheres foram duramente reprimidas e morreram aos milhares. Nessa época era muito perigoso ser mulher. Qualquer uma poderia ser julgada como bruxa e submetida às regras cruéis do Malleus Maleficarum. O Malleus é um produto religioso e político dos mais importantes da Idade Média. Servia à Igreja conforme sua conveniência e justificava verdadeiros genocídios das populações denominadas "bárbaras".

    No Período Renascentista, a concepção de corpo, difere das anteriores, pois começa haver preocupação com a liberdade do ser humano. O trabalho artesão e a realização terrena passam a ser valorizadas, juntamente com o pensamento científico e o estudo do corpo. Acontece a redescoberta do corpo, principalmente, no que diz respeito às artes, onde o corpo nu aparece como destaque por pintores como Michelangelo, Da Vinci, entre outros (Siebert, 1995; Rosário, 2004)

    O corpo é visto como um objeto técnico instrumental que opera com bases em códigos genéticos, como um autônomo que, por meio de operações e cálculos, torna-se previsível e controlável e que, tem como analogia a máquina, modelo de Descartes. Assim, o corpo passa a servir à razão.

    Nos séculos XVIII e IX, o saber passa a ocupar um papel de destaque, a preocupação é, então, com a formação de indivíduos ativos e livres, com ênfase na liberdade do corpo, contrariando as práticas mecanicistas. No século XVIII, emerge um outro modelo de diferenciação sexual: o modelo dos dois sexos, ou seja, a visão bissexuada do corpo e a redefinição da natureza feminina. O corpo feminino torna-se uma criatura totalmente diferente do masculino, introduz-se a questão binária e esses fatos levam ao aparecimento da identidade sexual, o que ocasiona o aparecimento da identidade de gênero (mulher/homem) nas convenções sociais, políticas, culturais, artísticas (Laqueur (1990); Nicholson (2000), Medeiros (2003)).

    A sociedade ocidental incorporou essa subjetividade ampliando essa dualidade para outros preceitos como: espírito/matéria; masculino/feminino; preto/branco; etc. Nesse sentido, o contexto histórico estrutura modelos de percepção diferenciada para o corpo de homens e o corpo de mulheres. Ao homem foi atribuído o perfil de dominador, de detentor da razão, e à mulher deu-se o modelo de exterioridade, de preocupação com a beleza, de reprodução, de mãe, de objeto de prazer (Rosário, 2004).

    No século XX, o ser humano fica cada vez mais atrelado à técnica e à tecnologia. Deposita sua felicidade na busca do progresso, sendo assim, os corpos precisam trabalhar para concretizar essa verdade. Com a busca da produção, homens e mulheres, tentam adaptar-se como indivíduos ao grupo social, precisando, inúmeras vezes, desistir de sua liberdade de ação e de expressividade.

    Para Rosário (2004), junto com a industrialização, na metade do século XX, os meios de comunicação começaram a funcionar como propulsores da comunicação de massa. A reprodução do corpo não fica mais somente no âmbito da pintura, agora, ela, pode atingir um número elevado de indivíduos. O corpo pode ser reproduzido em série, através da fotografia, do cinema, da televisão, da internet, etc.

    A partir do cinema americano, segundo Del Priori (2000), é que novas imagens femininas começam a se multiplicar: Se até o século XIX matronas pesadas e vestidas de negro enfeitavam álbuns de família e retratos a óleo, nas salas de jantar das casas patrícias, no século XX elas tendem a desaparecer, e o aparecimento de rostos jovens, maliciosos e sensuais na tela, somados a outros fatores, foram cruciais para a construção de um novo modelo de beleza.

    O corpo representado na mídia, é um corpo musculoso, sarado, restrito a uma parcela muito pequena da sociedade, limitada principalmente pela condição financeira. Porém é esse corpo que serve de padrão, norma de beleza, modelo e sinônimo de saúde e higiene à grande maioria das mulheres e um campo em ampliação para os homens.

    Estamos assistindo neste início de século XXI, especialmente nos grandes centros urbanos brasileiros, a uma crescente glorificação do corpo, sua exibição pública é cada vez maior, deixando transparecer o que antes era escondido e, aparentemente, mais controlado. Para Goldenberg & Ramos (2002), as regras da atual exposição dos corpos, parecem serem fundamentalmente estéticas, sendo que, para atingir a forma ideal e expor o corpo sem constrangimentos, é necessário investir na força de vontade e na autodisciplina.

    Assim, os indivíduos fazem quase tudo para manter seu corpo dentro dos modelos construídos e dominantes, como aponta Rosário (2004), abre-se espaço para uma indústria do corpo; a matéria física precisa entrar numa linha de produção que incluí ginástica, musculação, regimes alimentares, tratamentos estéticos, tratamentos de saúde, consumo da moda e de bens. As indústrias da beleza, da saúde e do status têm no corpo seu maior consumidor. Encontra-se à espera de homens e mulheres, academias, estéticas, salões de beleza, spas, clínicas médicas, hospitais, estilistas, costureiros, boutiques,...O corpo está a serviço, portanto, da produção que o domina, utilizando-se da ilusão de faze-lo belo, saudável e forte.

    Novas formas de pensar o corpo têm sido reinventadas constantemente, num processo que vem alterando significativamente a relação que os indivíduos têm com seu corpo. O corpo virou objeto de consumo e totalmente fragmentado, o culto ao corpo ganha uma dimensão social inédita, cercado de enormes investimentos. O corpo em forma, se apresenta como um sucesso pessoal, ao qual homens e mulheres podem aspirar. Hoje vive-se na era da magreza, dos regimes, da lipoaspiração, dos implantes de próteses de silicone, botox, das academias, da construção de corpos, ou seja da metamorfose dos corpos.


Corpos em metamorfose

    Através da cultura, o ser humano vê o mundo. É através da cultura que o mundo passa a depender em larga medida das convenções sociais, variáveis de sociedade para sociedade, de grupo para grupo, de tempo para tempo. Para Boudrillard (1997) seja em que cultura for, o modo de organização com relação ao corpo, reflete o modo de organização com relação às coisas e das relações sociais.

    De acordo com Rodrigues (1987), cada cultura "modela" ou "fabrica" à sua maneira um corpo humano. Cada sociedade imprime, no corpo físico, determinadas transformações, mediante as quais o cultural se inscreve e grava sobre o biológico; arranhando, perfurando, queimando a pele. Inscrevem nos corpos cicatrizes-signos, que são verdadeiras obras artísticas ou indicadores rituais de posição social: mutilação do pavilhão auricular, corte ou distensão do lóbulo, perfuração do septo, dos lábios, das faces, amputação da unhas, alongamento do pescoço, apontamento dos dentes ou extração dos mesmos, atrofiamento dos membros, musculação, obesidade ou magreza obrigatória, bronzeamento ou clareamento da pele, barbeamento, cortes de cabelo, penteados, pinturas, tatuagens..., práticas que tentam ser explicadas, por razões sociais, de ordem ritual ou estética.

    Como vimos não há sociedade que não modifique de alguma forma o corpo de seus membros, cada uma, portanto, se especializando na produção de determinados tipos de corpos, os quais servirão como insígnias da identidade grupal, nos quais o corpo biológico trabalhará como matéria sociológica.

    Falar sobre o corpo implica, a priori, pensarmos o corpo enquanto signo, como um ente que reproduz uma estrutura social de forma a dar-lhe um sentido particular, que certamente irá variar de acordo com os mais diferentes sistemas sociais. As pessoas aprendem a avaliar seus corpos através da interação com o ambiente. Assim, sua auto-imagem é desenvolvida e reavaliada continuamente durante a vida inteira. Para Becker Jr. (1999), a imagem corporal é uma entidade multifacetada que abrange as dimensões, física, psicológica e social. Assume tambem a relação entre o corpo de uma pessoa e os processos cognitivos como crenças, valores e atitudes, como mencionou Schilder (1999).

    Hoje vive-se a revolução do corpo, valores relativos à beleza, saúde, higiene, lazer, alimentação, atividades físicas têm reorientado um conjunto de comportamentos na sociedade, imprimindo um novo estilo de vida, mais livre, narcísico e hedonista do corpo.

    Na segunda metade do século XX, segundo Goldenberg (2002), o culto ao corpo ganhou uma dimensão social inédita e entrou na era das massas. A difusão generalizada das normas e imagens, a profissionalização do ideal estético e a grande preocupação com os cuidados do rosto e do corpo, funda a idéia de um novo momento da história da beleza feminina e, em menor grau, masculina. Cada indivíduo é considerado responsável (e culpado) por sua juventude, beleza e saúde. O corpo torna-se, também, capital, cercado de enormes investimentos (de tempo, dinheiro, entre outros), a obsessão com a magreza, a multiplicação dos regimes e atividades de modelagem do corpo, a disseminação da lipoaspiração, dos implantes de próteses de silicone nos seios, de botox para atenuar as marcas de expressão, testemunham o poder normatizador dos modelos cada vez mais acentuados na atualidade.

    O corpo ocidental encontra-se em plena metamorfose. Não se trata mais de aceitá-lo como ele é, mas sim de corrigi-lo, transformá-lo e reconstruí-lo. O indivíduo contemporâneo busca em seu corpo uma verdade sobre si mesmo que a sociedade não consegue mais lhe proporcionar. Assim, na falta de realizar-se em sua própria existência, este indivíduo procura hoje realizar-se, através do seu corpo. Ao muda-lo, ele busca transformar a sua relação com o mundo, multiplicando os seus personagens sociais.

    Goldenberg & Ramos (2002), dizem que esse contexto social e histórico particularmente instáveis e mutantes, no qual os meios tradicionais de produção de identidade, tais como a família, a religião, a política, o trabalho, se encontram enfraquecidos, impulsiona indivíduos ou grupos a se apropriarem cada vez mais do corpo como um meio de expressão (ou representação) do eu.

    Pode-se citar atualmente, como a apropriação exagerada do corpo, à difundida ideologia do body building, própria da chamada "cultura da malhação", que se fundamenta na concepção de beleza e forma física como produtos de um trabalho do indivíduo sobre seu corpo, assim como a body art e a body modification, que utilizam técnicas que vão de tatuagem, passando pelos piercings e podendo chegar a outras, mais extremas, como marcas a ferro quente (brandings), talhos de navalhas e gravações com bisturi incandescente.

    A artista Plástica francesa Orlan, pode ser citada como referência ao body modification, tendo desde 1990 se submetido a inúmeras cirurgias plásticas para fazer de seu corpo um lugar de debate público. Ela própria se reconhece e se vê como objeto de sua arte. Sua performance é uma luta contra o programa, a natureza, Deus e o DNA. O corpo pós-humano é causa e efeito das relações de poder e prazer, virtualidade e realidade.

    A moda, tem função importante na metamorfose dos corpos, com infindáveis sugestões de como ser ou parecer, através de tribos, estilos, comportamentos, atitudes, e roupas. Segundo Rosário (2004), o corpo construído sobre a simulação é outra característica do tempo pós-moderno, talvez a mais utilizada. A simulação não está consubstanciada sobre a representação, mas sobre o simulacro, ou seja, sobre a aparência sem realidade. No simulacro o corpo se constrói diferentemente para cada situação, para cada vontade, capaz de criar uma pluralidade de sentidos para si mesmo.

    Os recursos mais utilizados para construir o simulacro são, a vestimenta, os adereços e a maquiagem. Esses recursos não são obras da pós-modernidade, mas nela foram aperfeiçoados e adquiriram o caráter de simulação na associação com outras técnicas, como a da cirurgia plástica, da lipoaspiração, dos tratamentos de beleza, da musculação. A aparência criada nesse processo, volta-se para o imaginário, construindo uma cadeia de sentidos que se adecuam ao perfil atual. Nesse sentido, o corpo humano vestido, maquiado, cheio de adereços, tatuado, modificado recobre-se de um segundo significado, verdadeiramente uma representação do simulacro (Rosário, 2004).

    Pode-se citar Michael Jacson, como um simulacro de si mesmo, mas também a resignificação do signo original e a confirmação do sentido estético ocidental: pele clara, linhas do rosto afiladas, cabelos lisos, olhos amendoados. Tantas cirurgias plásticas, fizeram que o original ficasse perdido, distanciando-se cada vez mais do significado primeiro, surgindo sempre um signo novo, capaz de metamorfosear-se antes de se estabilizar.

    Aliada fundamental na construção dos corpos, a mídia adquire um imenso poder de influência sobre os indivíduos, generaliza a paixão pela moda, expande o consumo de produtos de beleza e torna a aparência uma dimensão essencial da identidade para um maior número de mulheres e homens. As construções feitas para o corpo na mídia, permitem sempre que o corpo retome o seu sentido original, pois uma vez alcançado o prazer da construção se sentidos simulados, atingindo o imaginário e a fantasia, é possível retornar a outra situação, talvez a própria realidade. Nesse sentido, a ambigüidade torna-se peça chave nos significados do corpo. Utilizando-se desse recurso, Gisele Bündchen num dia tem cabelo liso, no outro crespo, numa semana aparece sensual, na outra comportada, num momento adolescente, em outro, mulher feita (Rosário, 2004).

    A mídia, de acordo com Goldenberg & Ramos (2002), apresenta o corpo como um objeto a ser reconstruído, seja em seus contornos ou em seu gênero. Através de mecanismos de incorporação de estereótipos corporais, o corpo torna-se uma superfície virtual, um terreno onde são cultivadas as identidades sexuais e sociais. Saturado de estereótipos, ele aparece como um quadro inacabado e transforma-se em imagem do corpo, torna-se assim um objeto de autoplastia.

    Atualmente os indivíduos, com corpos mutáveis, renováveis, em constantes metamorfoses, têm na imagem do corpo o processo criativo principal de tantas releituras de si mesmo, a reprodutividade em série. Dessa forma o corpo virou "o mais belo objeto de consumo", e a publicidade, que antes só chamava a atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje em dia serve, principalmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto próprio: o consumidor, perpetuamente intranqüilo e insatisfeito com a sua aparência.

    Como vimos a cultura centrada na valorização da imagem do corpo, encontra no discurso publicitário, a universalização de sua imagem, naturalizando um determinado modelo de corpo, e um conjunto de práticas necessárias a sua manutenção. Assim homens e mulheres burlam os códigos tradicionais, padrões, normas estabelecidas para o corpo, buscando incessantemente a sua reversibilidade.

    Com todas as conquistas alcançadas pelas mulheres, com a grande revolução dos costumes, o novo milênio ainda deixa transparecer muitos desequilíbrios na tão almejada igualdade de poderes entre homens e mulheres. Um deles diz respeito à imagem do corpo da mulher, que ainda é permeada por discriminações, pois atrás da aparência de independência da mulher, esconde-se sua submissão, dependência e inferioridade, visto que ao corpo da mulher é imbutido a obrigação de estar sempre belo e jovem.


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