Corpo, cultura, mídias e educação física: novas relações no mundo contemporâneo Cuerpo, cultura, medios de comunicación y educación física: nuevas relaciones en el mundo actual Body, culture, media and physical education: new Relationships in the contemporary world |
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Licenciado em Educação Física Mestre em Educação Física. Doutor em Filosofia da Educação Professor Assistente do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Campus de Bauru |
Prof. Dr. Mauro Betti mbetti@fc.unesp.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 79 - Diciembre de 2004 |
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Introdução
Meu corpo ordena que eu saia em busca do que não quero, e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu convertido em cão servil.
('As contradições do Corpo", poema de Carlos Drummond de Andrade.
In: Corpo: novos poemas. São Paulo: Record, 1984)VERA FISCHER: O MAKING OF DA VIRADA
O resultado todo mundo viu e aplaudiu: 60 kilos, seios fartos, curvas de enlouquecer, músculos definidos.
Os bastidores: 225 ml de silicone em cada seio, 6 litros de gordura aspirada da barriga e do culote,
14 kilos a menos com dieta rigorosa e malhação com pesos.
(Revista Boa Forma, São Paulo, n. 159, setembro/2000, p. 96)Falar do corpo é falar de um espaço multidisciplinar, porque se pode falar dele a partir de muitas perspectivas. O corpo é lugar dos determinismos e condicionamentos biológicos, cada vez mais evidentes com os avanços da medicina, da biotecnologia e da genética - é o viés biologicista; o corpo é expressão do psiquismo, e portanto, como descobriram muitos psicoterapeutas, o corporal pode ser via de acesso ao psíquico - é o viés psicologista; o corpo é também matéria na qual se inscrevem as marcas das classes e grupos sociais - é o viés sociologista.
Sobretudo, o corpo é objeto histórico - cada sociedade, como afirma Certeau (citado por SANT'ANNA, 1995) tem seu corpo, assim como cada sociedade tem sua língua, e, assim como a língua, "o corpo está submetido à gestão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa" (SANT'ANNA, 1995, p. 12). Enfim, o corpo é construção cultural.
Em todos esses viéses portanto, de alguma maneira, o corpo é linguagem, é expressão da natureza, da individualidade e do pertencimento social; é, pois, linguagem da vida e do homem. Mas o viés biologicista é para o biólogo, o viés psicologista é para o psicólogo, e assim por diante. Então, o que podem ser "corpo" e "cultura" para a Educação Física?
De que espaço disciplinar poderia a Educação Física falar do corpo e da cultura? Seria possível uma abordagem com o "olhar", com o viés da Educação Física?
Mas, primeiro, seria preciso perguntar-se o que é a própria Educação Física.
O conceito de Educação FísicaSem adentrar ao longo percurso do debate que se travou no Brasil, na década de 1980, a partir da questão "O que é Educação Física?", consideramos a definição que se segue, tributária tanto da "matriz científica" como da "matriz pedagógica" (BETTI, 1996) de entendimento da Educação Física, assim como do víés "culturalista", que trouxe ao debate o conceito de "cultura": "área de conhecimento e intervenção profissional-pedagógica que lida com a cultura corporal de movimento, objetivando a melhoria qualitativa das práticas constitutivas daquela cultura, mediante referenciais científicos, filosóficos, pedagógicos e estéticos" (BETTI, 2003, p. 151).
Por cultura corporal de movimento entende-se "aquela parcela da cultura geral que abrange as formas culturais que se vêm historicamente construindo, nos planos material e simbólico, mediante o exercício da motricidade humana - jogo, esporte, ginásticas e práticas de aptidão física, atividades rítmicas/expressivas e dança, lutas/artes marciais". (BETTI, 2001, p. 156)
A motricidade humana é entendida como capacidade de movimento do ser humano para a transcendência, e como agente e criadora de cultura (SÉRGIO, 1987). O conceito de qualidade ali incluído é valorativo, quer dizer, exige a opção por valores, entendidos estes como possibilidades de escolha (ABBAGNANO, 2000). Da mesma forma, os referenciais científicos, filosóficos etc. podem variar, em função dos valores de quem os adota. Ou seja, a Educação Física possui uma dimensão axiológica intrínseca.
Contudo, consideramos que, apesar dos avanços obtidos no debate filosófico-epistemológico sobre a Educação Física, continuamos herdeiros de sua tradição, cuja origem remonta aos séculos XVII e XVIII, quanto inúmeros pensadores trazem à cena a importância dos cuidados com o corpo e dos exercícios físicos para a formação dos indivíduos, no contexto do surgimento e consolidação da sociedade burguesa. No século XIX, filósofos ocupados com questões educacionais, e sob influência do Iluminismo, do conceito pedagógico de natureza de Rousseau e dos avanços da Medicina, destacaram a necessidade da "educação física" das crianças e jovens, que deveria se justapor e relacionar à educação moral, à educação intelectual etc.
No século XIX, obras que propuseram, com base na medicina e na biologia, a sistematização científica e pedagógica da ginástica ou mesmo tratados de ordem mais geral, utilizaram explicitamente a expressão "educação física". Pode-se, então, referir o termo "Educação Física" à sistematização científica ocorrida em torno dos exercícios físicos, jogos e esporte, e o termo "ginástica" pode ser considerado sinônimo de Educação Física (Soares, 1994). Para Bracht (1999, p. 17) essa "teorização da ginástica escolar" foi realizada com base em um olhar pedagógico (seja médico-pedagógico ou moral pedagógico), quer dizer, "as práticas corporais eram construídas e vistas como instrumentos para a educação para a saúde e para a educação moral".
O que queremos dizer é que a tradição da Educação Física tem sempre remetido à necessária existência de um intermediário humano (o educador, o professor/profissional) entre o desenvolvimento do ser humano (o aluno, o atleta, o cliente) e os estímulos (o exercício, o movimento, os jogos, o esporte etc.) que desencadeiam esse processo de desenvolvimento, o qual ambiciona abarcar a totalidade bio-psico-social do homem. A Educação Física tem visto o papel desse intermediário humano como controlador dos estímulos. Nessa perspectiva, então, pode-se dizer o debate na Educação Física tem se limitado à defesa de posições sobre quais seriam os estímulos mais legítimos para promover esta ou aquela direção ao desenvolvimento do ser humano.
Então, é possível perceber, ao longo de história da Educação Física na sociedade ocidental, diferentes modos de conceber seus objetivos, seus meios, seus valores para o desenvolvimento humano. E cada escolha envolve, evidentemente, opções valorativas - é preciso optar por determinadas concepções de ser humano, sociedade, educação etc.
Portanto, o "olhar" específico da Educação Física sobre o corpo e a cultura só poderia dar-se nesse espaço de intervenção pedagógica-profissional, repleto de intencionalidades, e que envolve uma interrelação humana (o profissional/professor e o aluno/atleta/cliente) em um ambiente cultural.
Lovisolo (1996, p. 60) respalda tal entendimento, ao perceber a origem da Educação Física como campo de resposta a problemas práticos de formação corporal e moral dos indivíduos, vinculado a uma longa tradição "que visualiza na prática do esporte e da atividade física um caminho válido de formação de corpos sadios, fortes e resistentes, de atitudes e valores considerados como morais e necessários para os indivíduos e a sociedade, de controle social, de adaptação e integração social, entre outros objetivos".
Poder-se-ia mudar os objetivos em favor, por exemplo, de objetivos novos e emancipadores, mas não se estaria aí modificando em nada o caráter de intervenção da área profissional, moldada pela 'consciência' das necessidades ou dos problemas práticos que levam a intervir, conclui Lovisolo (1996).
ObjetivoA partir deste entendimento inicial de Educação Física, o objetivo deste ensaio é analisar as relações entre a cultura corporal de movimento e o papel da Educação Física como profissão no contexto das novas dinâmicas culturais da sociedade contemporânea, nas quais as mídias1 se fazem presentes de modo marcante.
O que propomos é, inicialmente, ao estilo da Antropologia (embora sem a pretensão de qualificar de "antropológico" este ensaio) realizar um exercício de estranhamento face à tradição da Educação Física, para depois revê-la à luz das novas dinâmicas da cultura corporal de movimento na sociedade contemporânea, e a seguir vislumbrar novas possibilidades para a intervenção profissional-pedagógica da Educação Física.
O necessário estranhamentoTemos dificuldade de compreender nossa própria cultura profissional-pedagógica, porque estamos nela imersos, ela nos aparece como um dado evidente, sobre o qual não nos debruçamos a todo momento para uma análise sistemática.
DaMatta (1978) lembrou que, ao estudar uma dada cultura, um antropólogo deve realizar um duplo movimento: transformar o estranho em familiar, e, ao mesmo tempo, o familiar em estranho. O primeiro é o movimento original da Antropologia, ao final do século XIX, quando buscava compreender culturas nativas. O segundo corresponde ao momento presente da Antropologia, que se volta para a nossa própria sociedade, e então temos que estranhar o que nos é familiar .
Lembra Dartigues (1973) que E. Husserl (1859-1938), um dos mais importantes autores no campo da fenomenologia, agradeceu aos antropólogos do seu tempo, já que concebia a descoberta da essência dos fenômenos sociais e culturais como decorrentes de uma compreensão prévia, logo, de um conhecimento, pelo sociólogo/historiador, de culturas diferentes da sua - e os antropólogos penetraram em universos culturais inteiramente estranhos ao homem europeu, os quais não poderiam ter concebido, nem mesmo como pura possibilidade, se não tivessem ido investigar in loco. Ou seja, os estudos antropológicos facilitaram ao fenomenólogo o método das variações imaginárias, necessário para o desvelamento da essência dos fenômenos sociais e culturais, entendida "essência" como pura possibilidade do ser.
Uma boa e didática ilustração do que poderia ser esse processo de estranhamento, e que apresenta interesse para a Educação Física, é a matéria jornalística exibida na televisão2 sobre alguns aspectos da cultura da Mongólia, país encravado na Ásia, entre a Rússia e a China. Naquele país realiza-se anualmente, conforme a referida matéria, há quase oito séculos, um "festival de esportes", que inclui as modalidades: arco e flecha, corrida de cavalo e luta. Na corrida, o percurso totaliza 56 quilômetros, tendo como cavaleiros meninos de 4 a 12 anos; exaustos, alguns cavalos morrem de cansaço, literalmente, É o animal vitorioso, e não o cavaleiro, quem recebe as honras. Na competição de luta, mais de 500 concorrentes se enfrentam sucessivamente, sem divisão de categorias por peso e sem limite de tempo (algumas lutas chegam a durar duas horas), até que apenas um deles permaneça em pé - o vencedor é aclamado como herói. Tais fatos podem chocar defensores dos direitos dos animais, médicos, pedagogos e/ou profissionais da Educação Física, porque confrontam valores estabelecidos (mesmo que provisoriamente) em nossa cultura - tanto a cultura no sentido mais amplo (a cultura ocidental, por exemplo), como em sentido mais específico (a cultura profissional-pedagógica da Educação Física, por exemplo). Todavia, se tomarmos a corrida de cavalos como exemplo, é preciso considerar que saber cavalgar, num país em que a maioria da população possui hábitos nômades, e onde há mais eqüinos que seres humanos, é habilidade altamente valorizada, inclusive para crianças.
O exemplo permite entender porque "cultura" pode ser definida como "conjunto dos modos de vida de um grupo humano determinado, sem referência ao sistema de valores para os quais estão orientados esses modos de vida (ABBAGNANO, 2000, p. 229). Tal definição aplica-se tanto a sociedade complexas, tecnológicas, como a sociedades simples e rústicas.
Todavia, na sociedade ocidental contemporânea, em especial nas últimas décadas, um conceito que destaque o caráter semiótico da cultura parece ser mais apropriado, qual seja, considerar a cultura como uma dinâmica de produção e circulação de signos e sentidos.
Para essa direção se volta o conhecido trabalho de Geertz (1989), cuja importância foi destacada por Thompson (1995), por ter reorientado a análise da cultura para o estudo do significado e do simbolismo, adotando uma concepção simbólica de cultura, que Thompson (1995, p 176) caracteriza como: "padrões de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças" .
Levando adiante tal entendimento, Thompson (1995, p.1981), propõe uma concepção estrutural da cultura, que "dá ênfase tanto ao caráter simbólico dos fenômenos culturais como ao fato de tais fenômenos estarem sempre inseridos em contextos sociais estruturados", e a por "análise cultural" entende o "estudo das formas simbólicas", que dizer "ações, objetos e expressões significativas de vários tipos - em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro do quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas".
Destaca-se então, nessa concepção, a dimensão semiótica da cultura, e por outro lado, a crescente midiatização da cultura contemporânea, já que as mídias são atualmente as principais fontes de produção e transmissão de formas simbólicas e construção de sentidos no mundo de hoje. Santaella (1996) refere-se mesmo ao surgimento de uma nova cultura, que redefine a cultura de massa e a cultura erudita: é a cultura das mídias, que cria sua própria linguagem. Então, quando a matéria televisiva fala em "esporte" na Mongólia, refere-se a um forma simbólica que possui significados diferentes para os mongóis e para nós, e que se situa em um contexto histórico e social específico.
É com este olhar de "estranhamento" que pretendemos - mas sem a pretensão de rotular de "antropológico" este ensaio - atentar para as relações das mídias com a cultura corporal de movimento dos nossos dias, buscando então perceber as implicações para a Educação Física como área de intervenção profissional-pedagógica.
Corpo, mídias e Educação FísicaJá havíamos apontado (Betti, 2001) a decisiva influência das mídias (em especial a televisão), no direcionamento de tendências da cultura corporal de movimento, com importantes repercussões para a Educação Física, entendida esta tanto como área de conhecimento como de intervenção profissional. São essas tendências: (i) novas esportivações - fenômeno que tende a assimilar diversas formas da cultura corporal de movimento ao modelo do esporte espetáculo; e (ii) progressiva clivagem do esporte telespetáculo das demais formas da cultura esportiva, cunhada pelas mídias e pelas grandes corporações econômicas, as quais, cada vez mais, assumem o gerenciamento do esporte como espetáculo televisivo; essa tendência distancia, na sua forma (embora não no seu simbolismo) o esporte telespetáculo do esporte praticado em contextos de lazer, educação e saúde.
Identificamos agora uma nova tendência no discurso das mídias sobre a cultura corporal de movimento - o "confundimento" ou "entrelaçamento" entre os modelos de estética corporal e o modelo do fitness (saúde/aptidão física) - a qual, como procuraremos demonstrar, leva ao questionamento da tradição da Educação Física. Tal identificação se fez a partir da análise de algumas mensagens midiáticas veiculadas na televisão e em revista destinada ao grande público, as quais revestem a ginástica e o exercício corporal de certos sentidos.
Consideremos a capa de uma Revista3, de peridiocidade mensal, destinada ao grande público, e em especial para o segmento feminino, cuja temática é auto-definida como "beleza, fitness, dieta, saúde".
Destaca-se a imagem, de uma mulher jovem, bela, magra e sorridente, trajando bíquini, fotografada das coxas para cima, em pose sensual. A mulher é assim apresentada: "A.L.C. - Formas estonteantes esculpidas com ginástica". A manchete principal, na parte inferior esquerda, em letras vermelhas e maiúsculas promete: "EMAGREÇA E FIQUE DURINHA"; segue-se a explicação: "Com a dieta antiflacidez você suaviza o problema e afina até 2 kg em 7 dias". Abaixo dela, a "novidade": "Rosto sem rugas : Botox mais potente rejuvenesce mesmo". Acima da manchete, três chamadas: "Testado! Laser revolucionário elimina a celulite. veja o resultado surpreendente em duas leitoras"; "Você é uma candidata à cirurgia plástica? 20 perguntas indispensáveis antes de encarar o bisturi"; e "Corpo novo em 3 meses! Parte 2. Hora de desenhar suas curvas! Série inédita com exercícios mais fortes". Esta última chamada é mais destacada que as anteriores, com letras maiores e moldura preenchida com fundo amarelo. No interior da Revista encontra-se um encarte sugerindo exercícios ginásticos para diversos grupos musculares.
Vemos aí como a ginástica e o exercício não são associadas à saúde ou bem estar, mas a um modelo estético de magreza corporal4. Todavia, para o esculpimento desse modelo corporal definido pelas mídias (para mulheres e homens) não basta mais somente o exercício (a "malhação", a ginástica), nem mesmo conjugado com dieta. Exige também a intervenção cirúrgica (lipoaspiração, a cirurgia plástica popriamente dita, as próteses de silicone).
Se pensarmos também nos aparelhos de eletroestimulação, que promovem contrações musculares sem movimento (isométricas), não estaria a categoria do exercício - presente na tradição da Educação Física - questionada? Consideremos o trecho de uma propaganda veiculada na televisão sobre um aparelho desse tipo:
"Agora você poderá ficar só deitado ou sentado, e isso vai equivaler a 50 minutos de caminhada ou a 30 minutos de aeróbica, ou 45 minutos de levantamento de peso ou a 35 minutos de bicicleta ou 20 minutos de corrida apenas usando B.V. "
Tal possibilidade confronta a tradição da Educação Física, de valorizar o exercício, o movimento - o corpo em movimento é o próprio homem na sua totalidade, "rotulada" de bio-psico-social, expressão desgastada, porém ainda importante.
Inspirados em Vigarello (1995), vamos procurar entender essa nova questão enfocando a "exercitação" que se tem imposto ao corpo (e que cabe também à Educação Física promover) como uma trajetória de alternância que tem ocorrido, historicamente, entre estímulos de "dentro para fora" (por exemplo, as ginásticas) e estímulos de "fora para dentro" (por exemplo, as intervenções cirúrgicas e os aparelhos de eletroestimulação) - e como hoje prenuncia-se uma ruptura nessa trajetória.
No século XVII difundiu-se na nobreza européia, particularmente na França, o uso do que Vigarello chamou de "panóplias5 corretoras", aparelhos que hoje poderíamos denominar "ortopédicos". Eram, aparelhagens mecânicas, moldes e tutores (espartilhos, eixos e cruzes e ferro fixados sobre o corpo) que objetivavam guiar as formas; comprimindo e sustentando o corpo, buscavam corrigir anatomias defeituosas. - tarefa para uma medicina preocupada não apenas com o funcionamento dos corpos, mas também com sua aparência. As condições que possibilitaram o desenvolvimento, a diversificação e a consagração desse aparelhamento corretivo procedem da formulação mecanicista - é a concepção do corpo máquina.
De pretensão inicialmente ortopédica (médica), ao final do século XVII a esses aparelhos logo se atribuíram também um objetivo pedagógico - nova mecânica que pretendia eliminar a deformação arroga-se agora o poder de preveni-la. Ela pretende firmar a postura, garantir uma forma através do hábito. Por isso os aparelhos eram especialmente indicados para crianças e jovens. O que era tentativa casual de retificação e de anulação de uma deformidade transformou-se abertamente numa abrupta imposição da norma. O corpo tornou-se receptáculo passivo de desenhos impostos exteriormente. Evidenciam-se aí as bases de um poder pedagógico sobre o corpo: o corpo pode ser um espaço possível de manipulação direta e concreta. É o estímulo de "fora para dentro".
Durante a segunda metade do século XVIII uma categorização nova diferenciaria os desvios de origem "exclusivamente" muscular (não-óssea), e especificariam o tratamento proposto: agora se deseja o trabalho ao invés da imobilidade, a compensação "atlética" e não o encerramento do corpo no moldes ou sua sustentação pelo tutor. A cura dos desvios não mais seria entregue ao trabalho de bloqueio feito pelos aparelhos fixadores, mas sim aos deslocamentos variados de movimentos declaradamente reforçadores. Desde então, não é mais o corpo que sofre uma pressão por aparelhos, mas é ele que agora exerce sua força sobre máquinas dotadas de manivelas e polias, que surgem ao fim do século XVIII e início do século XIX.
Ao início do século XIX o corpo passou a ser representado como máquina, racionalizando as forças físicas e formalizando os deslocamentos. Nessa pedagogia de rigor e concisão, constituiu-se um material encarregado de normalizar o trabalho: bastões, pesos, sistemas de sustentações ou de apoios, utensílios especializados, supostamente capazes tanto de promover quanto de guiar as forças - até o ponto em que o próprio corpo passa a ser o instrumento, segundo séries de exercícios que o século XIX formalizou (os sistemas ginásticos europeus). Trata-se, agora, dos estímulos de "dentro para fora", quer dizer o corpo em movimento desencadeia mecanismos metabólicos/fisiólogicos de adaptação.
Se, antes, buscava-se boas maneiras e posturas, pois a nobreza tinha que se exibir e empenhava-se em fazer do corpo um símbolo de pertencimento social, agora a atenção se estende aos vigores. Os corpos passaram a ser explorados com a perspectiva de rentabilizar as forças e de medir os vigores. O corpo que se limitava ao espetáculo foi substituído por corpos cuja formação supõe planificação de trabalho e acumulação de exercícios - é o corpo "atlético". A aplicação, sobre o próprio espaço muscular, do princípio da eficácia do trabalho, inaugura o princípio do treinamento físico meticuloso, sistematizado em tarefas parceladas e mecanizadas.
Assim, da panóplia que contém ou encerra membros e motricidade, àquela que, ao contrário, orienta seus exercícios, opondo-lhe resistência, não são apenas mecânicas que inverteram seus princípios de funcionamento - mas possuem simbolismos sociais diferentes, conclui Vigarello.
Nessas alternâncias de estímulos manifestam-se não simplesmente mudanças nas técnicas de intervenção médica ou nas técnicas de trabalho corporal, mas sinais das próprias mudanças sociais, sinais de novos tempos históricos.
E quais são os sinais do novo que indicam uma modificação nessa trajetória histórica de alternâncias entre os estímulos de fora para dentro e de dentro para fora?
Preliminarmente, vou considerar, como Courtine (1995) que essa nova tendência também exige uma indústria, um mercado e um conjunto de práticas corporais.
Um novo mercado comercial do corpo está em expansão. Novos espaços e estratégias de oferecimento da musculação, dança, exercícios terapêuticos, artes marciais, aeróbica e outras práticas modificaram o tradicional sistema de clubes. No Brasil, temos a recente expansão da figura do personal trainer. Cabe também lembrar da venda de aparelhos para ginástica, esteiras-rolantes, bicicletas ergométricas etc. pela televisão e do crescimento das chamadas "práticas corporais alternativas". Em 1999, o segmento de esportes e acessórios foi o que mais cresceu no mercado de franquias brasileiro (BELEZA..., 2000). Tal não é apenas uma inovação no nível econômico e organizacional, mas representa uma mudança substantiva na cultura corporal de movimento contemporânea, que portanto coloca novas questões para a Educação Física. Mas são os aparelhos de eletroestimulação o dado inovador que encontramos. E por quê? Porque confundem a noção de dentro para fora e de fora para dentro, sobre a qual aqui nos referimos.
Em um primeiro momento, evidencia-se o estímulo que provocam - de fora para dentro - e então eles se configurariam como uma nova panóplia, agora, porém, eletrônica e não mecânica. Contudo, na medida em que provocam contrações musculares estimulam também de dentro para fora, ou seja, invocam os poderes de adaptabilidade do corpo (hipertrofia muscular, aumento do tônus, queima de calorias etc).
Isso é novo não apenas porque propõe uma exercitação muscular sem movimento6, mas porque não mobiliza a participação voluntária do sujeito na ativação muscular. Tal proposição contrasta com a concepção de Educação Física para a qual o "corpo em movimento" é o "homem em movimento", mobilizando potenciais físicos-motores, afetivos, cognitivos e sociais. A tradição da Educação Física fica questionada.
Esses aparelhos surgem já concebidos para a o mercado do corpo e do fitness, pois esse novo mercado possui o correlato de uma nova indústria, na área de tecnologia informática-eletrônica, e apontam para o poder das mídias e da publicidade na imposição de um modelo estético das formas corporais, em especial (mas não só) para as mulheres.
As mídias alargam o seu "cerco onipresente" (ZYLBERBERG, 2000) antes voltado para o esporte, em direção a outras formas da cultura corporal de movimento. Um bombardeio de imagens fixam visualmente um modelo corporal, e sugerem meios para alcançá-lo - o consumo de determinados produtos.
ConclusãoPodemos nos perguntar se toda esta publicidade envolvendo o corpo e a atividade física levará à exercitação (quer dizer à prática de atividades físico-esportivas) ou apenas ao consumo de imagens e informações, condenando-nos à sedentariedade que se faz acompanhar de um certo sentimento de culpa, porque não seguimos as recomendações dos especialistas, porque compramos a esteira rolante e a esquecemos no canto da sala.
Como poderemos, diante, desse panorama, encontrar novos sentidos para a tarefa profissional-pedagógica da Educação Física? A disseminação de informações e sentidos sobre a cultura corporal de movimento por parte das mídias talvez não mais permita que os profissionais da Educação Física se coloquem como intermédios que controlam os estímulos, pois estes agora são desencadeados em grande parte pelo "mercado do corpo", atingindo diretamente os "consumidores", os quais ditariam os sentidos e valores das práticas corporais. Contudo, para que se não se submetam irrestritamente aos interesses deste mercado (o que implicaria perder para sempre a Educação Física tal como a conhecemos a partir da sua moderna tradição), poderíamos conceber os profissionais da Educação Física como mediadores que se interpõem entre a cultura corporal de movimento dos nossos tempos e os interessados na exercitação sistemática e intencional da motricidade, auxiliando-os a realizar uma leitura crítica7 daquela cultura e das suas próprias motricidades.
Tal entendimento exige vislumbrar a relação professor/profissional-aluno/cliente sob outra perspectiva, na qual os primeiros não são os detentores de um conhecimento prévio que determinaria o controle do processo pedagógico em todas as suas fases. O papel da Educação Física e de seus profissionais deveria ser o de facilitar o acesso e a apropriação crítica da cultura corporal de movimento8, associando organicamente o 'saber movimentar-se' ao 'saber sobre' esse movimentar-se, constituindo o que Betti (1994) denominou saber orgânico. O papel do profissional da Educação Física (e não só na Escola) seria, então, auxiliar o sujeito no processo de mediação simbólica desse saber orgânico para a consciência, levando-o à autonomia no âmbito da cultura corporal de movimento.
Notas
Entendemos por "mídias" os meios de comunicação, tanto eletrônicos (televisão, cinema, internet etc.), como impressos (jornais, revistas etc.), os quais possuem aspectos similares, mas também distintivos.
Matéria exibida no "Globo Repórter", produzido pela TV Globo, em 9 de junho de 1999.
Trata-se da revista "Corpo a Corpo", n. 163, maio de 2002.
Estudo de Oliveira (2000) demonstrou que o Índice de Massa Corpórea (calculado pela fórmula: peso dividido pela altura ao quadrado) das modelos estampadas nas capas de uma revista destinada o público feminino, entre os meses de janeiro e outubro de 2000, foi, em média, de 19,84, sendo que apenas uma delas superou o valor de 24, ou seja, a referência sugerida é de muita magreza.
Panóplia é o nome que se dá à armadura completa de um cavaleiro da Idade Média.
Pois há muito tempo já se conhece a contração muscular isométrica.
Por "crítica" entendemos a compreensão dos critérios, dos princípios que fundamentam uma dada prática social.
Aproprio-me criticamente de uma prática da cultura corporal de movimento quando compreendo seus princípios fundantes, suas propriedades e valores, em relação às possibilidades da minha própria motricidade, no contexto sociocultural em que a exercito.
Referências
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digital · Año 10 · N° 79 | Buenos Aires, Diciembre 2004 |