Docência com decência! As idéias de Paulo Freire para a atividade docente em Educação Física Escolar: resenha do livro "Pedagogía da Autonomía. Saberes necessários à prática educativa" |
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*Bacharel em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Pesquisador em Educação Física Escolar; Estudante do curso de Pós-Graduação da Faculdade de Educação Física da Unicamp- Mestrando em Pedagogia do Movimento (F.E.F.-Unicamp) **Licenciada em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Pesquisadora em Ciências do Esporte e Treinamento Esportivo |
Rubens Venditti Júnior* Vanessa Bellíssimo** rubensjrv@yahoo.com vanbe99@yahoo.com.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 73 - Junio de 2004 |
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1. Introdução
O tema: Educação... O autor não necessita muitas apresentações, fala por si só em suas diversas obras, além de ecoar muito além das mesmas, até em sua posteridade: Dr. Paulo Freire.
Na introdução do livro -"PRIMEIRAS PALAVRAS"(FREIRE, 2003, p.13-20)- Freire esclarece o público alvo (docentes formados ou em formação), insistindo que formar um(a) aluno(a) é muito mais que treinar e depositar conhecimentos simplesmente (principalmente em nossa área- Educação Física é mais do que ensinar técnicas de desenvolvimento motor). E que, para formação, necessitamos de ética e coerência. Complementa que as mesmas precisam estar vivas e presentes em nossa prática educativa (sendo esta nossa responsabilidade como agentes pedagógicos).
Esta prática educativa deve vir sem interesses lucrativos, sem acusações injustas, sem promessas inalcançáveis, sem discriminação racial, social ou de gênero, sem mediocridade e/ou falsidades. Daí a importância do respeito às diferentes posturas profissionais dos outros professores e a necessidade constante de busca de conhecimentos e atualização(formação científica). Ele fala da esperança e do otimismo necessários para mudanças dentro deste contexto e nunca se acomodar, pois "somos seres condicionados, mas não determinados" (FREIRE, p.17, 2003).
2. "Não há docência sem discência"No primeiro capítulo - "NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA" (FREIRE, 2003, p. 21-46), temos exemplos de diferentes tipos de educadores: críticos, progressistas e conservadores. Apesar destas diferenças, todos necessitam de saberes comuns tais como:
saber dosar a relação teoria/prática;
criar possibilidades para o(a) aluno(a) produzir ou construir conhecimentos, ao invés de simplesmente transferir os mesmos;
reconhecer que ao ensinar, se está aprendendo; e não desenvolver um ensino de "depósito bancário", onde apenas se injetam conhecimentos acríticos nos alunos!
Paulo Freire ressalta a necessidade de uma reflexão crítica sobre a prática educativa. Sem essa reflexão, a teoria pode ir virando apenas discurso; e a prática, ativismo e reprodução alienada.
Nos adverte para que não sejamos demasiado convictos de nossas certezas e que todo novo conhecimento pode superar o já existente, sendo necessário ao professor(a) sempre exercer o hábito da pesquisa(capacitação profissional e promoção social para evitar tornar-se obsoleto), para poder saber o que ainda não sabe e comunicar as novidades aos alunos(as), fazendo que a curiosidade dos mesmos transite da ingenuidade do senso comum à "curiosidade epistemológica"(FREIRE, 2003, p.29), carregada de criticidade. O ato de ensinar deve exigir o desenvolvimento deste senso crítico no aluno.1
Toda a teoria deve ser coerente com a prática cotidiana do professor, que passa a ser um modelo e influenciador de seus educandos: não seria convincente falar para os alunos que o alcoolismo faz mal à saúde e tomar bebidas alcoólicas, deve-se ter 'raiva' da bebida, pois a emoção é o que move as atitudes dos cidadãos e estas partem do conhecimento, do respeito aos outros e a si mesmo, ressaltando que na verdadeira formação docente devem estar presentes o exercício da criticidade ao lado do reconhecimento das emoções- um aprendizado próximo, sem a frieza e mecanicismo do simples fato de aprender e receber conhecimentos.
Diversas vezes, o autor fala da " justa raiva "(FREIRE, 2003, p.40) que tem um papel altamente formador na educação. Uma raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra a exploração e a violência. Podemos definir esta "justa raiva" com aquele desconforto ou incômodo(provocação) que sentimos mediante os quadros descritos acima.2
O docente deve também ensinar a pensar certo. E é somente "quem pensa certo, mesmo que às vezes pense errado, quem pode ensinar a pensar certo" (FREIRE, 2003, p. 27). O autor acredita que ensinar exige rigorosidade metódica e o dever do educador democrático é reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão.
A prática educativa em si deve ser um testemunho rigoroso de decência e de pureza, já que nela há uma característica fundamentalmente humana: o caráter formador. Para isso, o professor deve se utilizar a corporeificação (FREIRE, 2003, p.29) das palavras como exemplo.
Faz parte do pensar certo a "disponibilidade ao risco, a aceitação do novo e a utilização de um critério para a recusa do velho"(FREIRE, 2003, p.35). Também está presente no pensar certo a rejeição a qualquer tipo de discriminação. E quando se ensina a pensar certo, devemos tratar o pensar certo como algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho e a coerência.
Freire(2003) destaca a importância de propiciar condições aos educandos, em suas relações uns com os outros ou com o(a) professor(a), de ensaiar a experiência de assumir-se como uma pessoa social e histórica, que pensa, se comunica, tem sonhos, que tem raiva e que ama. Isto despe o agente pedagógico e permite que se rompa a neutralidade do mesmo(a). Acredita que a educação é uma forma de intervenção no mundo, que não é neutra, nem indiferente, mas que pode implicar tanto no desmascaramento da ideologia dominante como mantê-la.
O autor também ressalta o quanto pode representar um determinado gesto do professor na vida de um aluno e da necessidade de refletirmos seriamente sobre isso, já que nas escolas fala-se exclusivamente do ensino dos conteúdos e não há uma ampla compreensão do que é educação e do que é aprender: "Ensinar exige respeito aos saberes do educando" (FREIRE, 2003, p.30) e aos seus interesses e realidade também.
A construção de um saber junto ao educando depende da relevância que o educador dá ao contexto social, à tradição da comunidade à qual ele trabalha para conseguir aproximar os conteúdos da realidade vivida, compondo um diálogo aberto com o(a) aluno(a), que mostra a "razão de ser" do conhecimento, colaborando portanto com o interesse ou curiosidade epistemológica mencionados anteriormente.
3. "Ensinar não é transferir conhecimento"Neste capítulo, Freire(2003) retoma em sua fala a necessidade dos educadores criarem as possibilidades para a produção ou construção do conhecimento pelos alunos(as), num processo em que o professor e o aluno não se reduzem à condição de objeto um do outro. Insiste que "...ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua própria produção ou a sua construção" (FREIRE, 2003, p. 47), e que o conhecimento precisa ser vivido e testemunhado pelo agente pedagógico.
Esse raciocínio existe porque somos seres humanos e, como tal, temos consciência que somos inacabados: seria a inconclusão existencial de todo ser humano (FREIRE, 2003, p. 50). É esta consciência que nos motiva a pesquisar, conhecer e mudar "o que está condicionado, mas não determinado" (FREIRE, 2003, p.53). Passamos assim, a ser sujeito e não apenas objeto da nossa história, pois não devemos ver situações como fatalidades e sim estímulo para muda-las.
Todos devem ser respeitados pela sua autonomia, por isso uma auto-avaliação dos alunos seria um bom recurso utilizado dentro da prática pedagógica, além do cuidado com o espaço físico usado nesta. É enfático ao dizer que o respeito à autonomia e à dignidade de cada indivíduo é um imperativo e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Deixa claro que a transgressão da eticidade deve ser entendida como uma ruptura com a decência, uma transgressão à natureza humana, uma imoralidade inconcebível (FREIRE, 2003, p. 59-60).
Para chegar ao conhecimento, educadores e educandos precisam de estímulos que despertem a curiosidade e consequentemente a busca. Mas a curiosidade de um não pode inibir a do outro, devem ser complementares. E, com isso, vão se criando saberes provisórios como uma "bola de neve".
O educador, além de obter conteúdos programáticos para desenvolver de suas aulas, deve buscar didáticas que cansem e instiguem seus ouvintes, mas este cansaço deve ser ocasionado pela tentativa de acompanhar o raciocínio e não pelo desinteresse de conteúdo.
O bom senso do professor diz para sermos coerentes, diminuindo a distância entre o discurso e a prática(FREIRE, 2003, p.61). Ele é quem pautará se a sua autoridade na sala de aula não é autoritarismo e também deixa claro a ele que há algo que precisa ser sabido frente a algum problema.
Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa aos direitos dos educandos e exige também, a apreensão da realidade (FREIRE, 2003, p.66).
Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível, pois a história deve ser vista como uma possibilidade e não uma determinação. Para mudarmos, devemos ser esperançosos, ou seja, ter esperança de que podemos ensinar e produzir junto com os nossos alunos para resistir aos obstáculos a nossa alegria. Mas para cobrar e lutar ideologicamente por mudanças e respeito profissional, o educador não pode ver a prática educativa como algo sem importância.
Precisa mostrar e demonstrar esta esperança e espírito de revolução. Em nossa área de atuação, notamos muitas vezes este descaso, por parte dos outros docentes, do aluno e até mesmo por nossos colegas de profissão, que ainda não percebem a importância da Educação Física no ambiente escolar e para a formação dos alunos(as). É importante lutar e insistir em mudanças e revoluções dentro de nossa área.
O educador não deve inibir ou dificultar a curiosidade dos alunos, muito pelo contrário, deve estimula-la, pois dessa forma desenvolverá a sua própria curiosidade. E ela é fundamental para evocarmos nossa imaginação, intuição, capacidade de comparar, transformar e transcender.
4. "Ensinar é uma especificidade humana"No último capítulo(FREIRE, 2003, p. 91-146), Freire mostra a necessidade de segurança, do conhecimento e da generosidade do educador para que tenha competência, autoridade e liberdade na condução de suas aulas. Defende a necessidade de exercermos nossa autoridade docente com a segurança fundada na competência profissional, aliada à generosidade. Acredita que a disciplina verdadeira não está "...no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos"(FREIRE, 2003, p.93), na esperança que desperta o ensino dos conteúdos, implicando no testemunho ético do professor- isto seria a autoridade coerentemente democrática.
Ensinar exige comprometimento (FREIRE, 2003, p.96), sendo necessário que nos aproximemos cada vez mais de nossos discursos de nossas ações. Sendo professor, é necessário interpretar as entrelinhas do que ocorre no espaço escolar e estar ciente de que a sua presença nesse espaço não passa desapercebida pelos alunos(as).
Para ele, a Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 2003, p.94-96) deve estar centrada em experiências estimuladoras da decisão, da responsabilidade, ou seja, em experiências respeitosas da liberdade. Para isso, ao ensinar, o professor deve ter liberdade e autoridade (FREIRE, 2003, p.104), em que a liberdade deve ser vivida em plenitude com a autoridade.
Éna diretividade da educação, que aquilo que o autor chama de " politicidade da educação ", traz a política como algo inerente à própria natureza pedagógica, como algo oposto à neutralidade frente aos acontecimentos da escola, da sociedade, da vida. Nos alerta para tomarmos cuidado com o discurso ideológico (FREIRE, 2003, p. 127), do qual a educação também faz parte, pois ele nos ameaça de anestesiar nossa mente, de confundir nossa curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos. Para que isso não ocorra devemos ter uma desconfiança metódica que nos protege de tornar-nos absolutamente certos de nossas certezas.
O educador como ser político, emotivo, pensante não pode ter atitudes neutras, deve sempre mostrar o que pensa, apontando diferentes caminhos sem conclusões, para que o educando procure o qual acredita, com suas explicações, se responsabilizando pelas conseqüências e construindo assim sua autonomia. Para que isso ocorra deve haver um balanço entre autoridade e liberdade.
Destaca que somente quem sabe escutar (FREIRE, 2003, p. 113-116) é que aprende a falar com os alunos. E é somente quem escuta paciente e criticamente, que é capaz de falar com as pessoas.
Ensinar exige querer bem aos educandos e isso não significa querer bem igual a todos os educandos, mas sim dizer que a afetividade não assusta e que não existe receios em expressa-la, com apreensão quanto a perder a famosa "seriedade docente" em contrapartida à afetividade.
Finaliza dizendo que a atividade docente é uma atividade alegre por natureza, mas com uma formação científica séria e com a clareza política dos educadores. Daí a necessidade de sabermos lidar em nossa área (Educação Física) com esta dualidade, pois devemos estimular a alegria em nossas aulas, mas sempre carregada do caráter de cientificidade e conhecimentos teóricos, para que a área não caia na rotulação de ser apenas uma disciplina de recreação, descontração e sem conhecimentos específicos.
Foi somente a percepção de que homens e mulheres são seres "programados, mas para aprender" e consequentemente para ensinar, conhecer e intervir que faz o autor entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos, não somente transmitindo conhecimentos, mas redescobrindo, construindo e ressignificando estes conhecimentos, além de transcenderem e participarem de suas realidades históricas, pessoais, sociais e existenciais.
Mesmo com todos os empecilhos para se educar (condições de trabalho, salários baixos, descasos, formas de avaliação), ainda há muitos educadores exercendo sua função de uma maneira eficaz. Com certeza isso se deve ao que o autor chama de vocação, que significa ter afetividade, gostar do que faz, ter competência para uma determinada função e acreditar que mesmo não conseguindo mudar o mundo, muita coisa é possível ser mudada através da prática educativa.
Quando o autor destaca, desde o início da obra a necessidade da ética e coerência na prática educativa, nos remetemos diversas vezes à obra recente de Edgar Morin ("Os Sete saberes necessários à Educação do Futuro")3 , na qual Morin(2000) destaca e muitas vezes se assemelha à forma de expressar-se de Freire(2003), trazendo exatamente a necessidade de reconhecimento desta ética humana, além da preocupação com a situação atual e futura do planeta, defendendo que devamos assumir e incorporar nossa identidade terrena.
Nesta mesma obra, Morin (2000), de maneira semelhante a Freire, destaca como sete pontos-chave para a educação:
a necessidade de encontrar-se as cegueiras do conhecimento (erros e ilusões);
entender o conhecimento pertinente;
ensinar a condição humana, dentro de todos os aspectos e óticas (ambientais, cósmica, social, afetiva);
ensinar a identidade terrena;
enfrentar as incertezas;
ensinar a compreensão;
e finalmente, a ética do gênero humano.
Voltando-nos agora para a análise da obra do Dr. Paulo Freire, apesar de ser um livro repetitivo em algumas conceituações, sendo diversas vezes retomados alguns tópicos, ele é válido; pois quem escreve é um professor que coloca suas experiências e sua esperança como um estímulo para futuros docentes, defendendo a necessidade de transformação e engajamento na árdua e gratificante tarefa de melhorar a educação e sermos agentes pedagógicos efetivos.
O livro preconiza um fator que há muito defendemos e temos percebido como sendo de fundamental importância no processo de docência: motivar (e auto motivar-se) a uma constante busca não apenas do conhecimento teórico-prático (através de capacitação e formação-pesquisa), mas da relação docente-discente, peça fundamental para erigirmos, juntos- discentes e docentes- uma educação decente neste país, não somente para a área de Educação Física escolar, mas para a formação global e educação crítica destes cidadãos.
Notas:
Entre a ingenuidade e a criticidade há uma superação, em que a curiosidade ingênua muda de qualidade, mas não de essência. O educador tem o papel de desenvolver a curiosidade crítica, insatisfeita e indócil dos(as) alunos(as)- é a "criticização da curiosidade" (FREIRE, 2003, p.31).
Porém, o termo "raiva" pode soar demasiado forte e indevido a estas sensações; por sempre incorrer, como ressalta o próprio autor, em raivosidade e odiosidade.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
Referências bibliográficas
FREIRE, P. PEDAGOGIA DA AUTONOMIA - saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
revista
digital · Año 10 · N° 73 | Buenos Aires, Junio 2004 |