efdeportes.com
Resenha do livro: "Corpo, identidade e bom-mocismo":
Cotidiano de uma adolescência bem-comportada,
de Alex Branco Fraga

   
* Licenciada em Educação Física pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp);
Pesquisadora em Ciências do Esporte
** Bacharel em Educação Física pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp);
Pesquisador em Educação Física Escolar;
Estudante do curso de Pós-Graduação da Faculdade
de Educação Física da Unicamp-
Mestrando em Pedagogia do Movimento
(F.E.F.-Unicamp)
 
FRAGA, Alex Branco. Corpo, identidade e bom-mocismo.:
cotidiano de uma adolescência bem-comportada.
Coleção Trajetória. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

 
 
Renata Pessagno Müller*
renata_pessagno@hotmail.com  
Rubens Venditti Júnior**
rubensjrv@yahoo.com
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    O livro "Corpo, identidade e bom-mocismo" (2000) conta a trajetória de pesquisa do autor Alex Branco Fraga, cujo foco está na análise da Educação Física Escolar, dentro da Escola Maria Fausta, localizada na cidade de Cachoeirinha (RS- Brasil), um município próximo a Porto Alegre, região Sul do país. A turma escolhida para a pesquisa é a de 8ª série do ensino fundamental. Neste livro, o autor foi até esse "mundo dos adolescentes"; e transpondo o óbvio das discussões já existentes, buscou ouvi-los, entendê-los com suas gírias, roupas transadas, dúvidas, curiosidade e rebeldia. O resultado: este ótimo exemplar de um relato experimental sobre esta tentativa de melhor compreender e se relacionar com jovens adolescentes, através do ambiente e do contexto das aulas de Educação Física escolar.
    Unitermos: Educação Física escolar. Gênero. Adolescência. Adolescentes.  
Abstract
    This book, titled ´Body, identity and good-manners´(2000) relates the research's path of the author, Prof.º Alex Branco Fraga. His focus is in Physical Education as a curricular component inside Maria Fausta School, located in the town of Cachoeirinha-RS-Brazil, in its southern region. The chosen group of subjects for this research are the students of his 8th series of fundamental grade. In this book, the author went straight through this "teenage world", beyond the actual discussions about them, tried to hear and understand them, with their slangs, pop clothes, doubts, curiosity and rebelliousness. The results : this great self-relate of an experimental try of better understanding this subjects and new ways of relationships with this young teenagers students, throughout the context of physical education classes at school.
    Keywords: Scholar Physical Education. Gender. Adolescence. Teenagers
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 70 - Marzo de 2004

1 / 1

1. Introdução

"O corpo diz para o seu eu: sinta dor aqui! Então, o eu sofre e pensa em como parar de sofrer. E é isso que o faz pensar. O corpo diz para o seu eu: sinta prazer aqui! Então, o eu sente prazer e pensa no que fazer para ter de novo o prazer. E é isso que o faz pensar."(NIETZSCHE)1

    O tema: Adolescência... O cenário, o "pano-de-fundo": as aulas de Educação Física escolar.

    Muitas vezes, ouvimos a respeito desta etapa, afirmações do tipo: "... fase de conflitos, transformações"; "período conturbado, de rebeldia e dúvidas"; "energia e hormônios à flor da pele"; "descobertas e decisões"; "fase da 'aborrecência' ". No livro "Corpo, identidade e bom-mocismo" (2000), o autor foi até esse mundo dos adolescentes; e transpondo o óbvio das discussões já existentes, buscou ouvi-los, entendê-los com suas gírias, roupas transadas e rebeldia. O resultado: um ótimo relato experimental desta tentativa de melhor compreender e se relacionar com jovens adolescentes, através das possibilidades de discussão, reflexão e transformação surgidas nos espaços de aula de Educação Física.

    O fator diferencial deste trabalho está exatamente na completude do livro que não é apenas um relato acadêmico, mas também descreve uma experiência de vida, complemento primordial da vastidão teórica do autor; com muita prática e situações com as quais muitos de nós talvez já tenhamos nos deparado em nossa atuação profissional. Além de sua sensibilidade e a medida certa de criticidade sobre temas polêmicos e muitas vezes deixados à parte no processo educacional principalmente com públicos adolescentes(sexualidade, preconceito de gêneros, conflitos, rebeldia, etc.).

    Já desde o início do trabalho, o autor nos atenta para a necessidade de sempre "estranhar o que lhe foi comum" (FRAGA, 2000, p.9), procurando entender e questionar o que sempre pareceu "natural"2 , na tentativa de despertar-nos para uma prática reflexiva e auto-crítica.

    O autor cita a "inquietante harmonia" destes meninos e meninas, que muito o fascina e intriga.

    Na abertura introdutória, enfoca a necessidade da escrita e do relato experimental, citando DELEUZE 3 , que afirma estes servirem para "libertar a vida onde estiver presa, para traçar linhas (...literalmente) de fuga ". E assim sendo, destaca também a importância da linguagem, associando-a a um raio. Muitas vezes, por ser heterogênea e diferente nas essências, os conflitos entre as partes comunicantes da linguagem e seus conflitos causam "relampejos" nela própria e permitem tornar observável e reflexivo tudo aquilo que estava nas "sombras das palavras", trazendo-nos à luz das idéias.

    Falando em conflitos, talvez seja na adolescência a principal fase e momento de se buscar a inquietante harmonia já destacada, muitas vezes dificultada principalmente pela falta e/ou falhas de comunicação (causadora de grandes conflitos nas relações humanas), ou incompatibilidade de linguagem entre estes jovens e os adultos educadores e formadores destes adolescentes. Daí muitas vezes estes serem incompreendidos, considerados rebeldes e agitados.

    A adolescência, definida como sendo a fase da vida de todas as pessoas na qual os sonhos da infância não fazem mais sentido e o mundo adulto ainda é uma promessa (incógnita e complexa), torna-se evidente que seja um período atribulado de dúvidas e transições. É nesta fase que surgem as "baladas" , os eventos coletivos e sociais, dos mais diversos tipos: viajar com a turma, sair a noite, voltar tarde (ou até cedo... pela manhã...) para casa.

    No entanto, não é esse cotidiano que vivencia a grande parte dos alunos da Escola Maria Fausta: grande parte dos adolescentes de Cachoeirinha-RS seguem a linha dos considerados "endeusados"; isto é, que tem Deus dentro de si e se montam no tripé firmemente estabelecido na relação família-igreja-escola.

    É através destes dados e nesta paisagem, após descrever minuciosamente, por intermédio de uma detalhada pesquisa do tipo etnográfica4 , que o autor permeia questões pertinentes aos conflitos da adolescência e relata sua experiência com este público e suas características, dentro do ambiente escolar e das aulas de Educação Física, que surge como um fórum de discussão e oportunidade para discorrer sobre assuntos como corpo, relacionamentos, relação familiar, sexualidade, dentre outros.


1.1. A educação física neste contexto : o "pano de fundo"!

    Neste ambiente- na Escola Maria Fausta- através da observação, análise e contato com alunos de 8.ª série da mesma, o enfoque da pesquisa e sua abordagem se dá então no âmbito das aulas de Educação Física a esta turma. Os próprios alunos pediram para que as aulas de Educação Física fossem mistas. Isso mudou a estrutura da organização da escola e das relações aluno-professor, uma vez que a tradição era a separação de gêneros:

    "Para a professora, seria a primeira vez que trabalharia com os"desconhecidos" meninos, pois desde a 5ª série só havia trabalhado com as meninas. E aqueles, que até então sempre haviam tido um professor, passariam a ter uma professora."5

    Mesmo com a co-educação e seus princípios de igualdade de gêneros e universalidade do conhecimento, pode-se ainda observar na maioria das escolas a segregação de gêneros homem/mulher nas aulas de Educação Física, acompanhadas de modelos de professores sempre de sexos semelhantes ao de seu público (professores para meninos e professoras para meninas).

    O conteúdo da Educação Física predominantemente ensinado nas aulas era o Esporte, mais ainda os esportes coletivos tradicionais: vôlei; futsal, basquete e handebol; deixando de lado muitos dos conteúdos também importantes da cultura corporal (Coletivo de Autores, 1992).

    Um fator curioso encontra-se na existência de atividades gimno-rítmicas nesta escola, considerada uma maneira diferente de trabalhar o corpo em movimento com o objetivo de descontração, lazer e recreação.

    Em nossa realidade escolar brasileira, tanto para redes públicas quanto privadas do país, não há preocupação no desenvolvimento de atividades desse tipo, com intuito de experiências e contatos diversificados. Ocorre sempre a conhecida política do "laissez-faire", o professor deixando o "rola-a-bola" acontecer, no qual sempre se resume ao tradicional futebol para meninos e queimada para as meninas, segregando, além da turma, também os conteúdos dos meninos e das meninas adequados à reprodução de seus papéis sociais futuros. A partir desta ambientalização então, o autor elenca 3 capítulos de abordagem e análise dentro de sua pesquisa de campo, prosseguindo com a narrativa do livro: TEMPO TATUADO NO CORPO; CORPO EM DISCURSO; e VOZES DA SEXUALIDADE.

    Hoje acredita-se na idéia corpo e mente como uma unidade única, dependente, totalitária, holística. E aqui percebemos a importância dos profissionais de Educação Física em conscientizar os alunos da idéia de corpo e mente caminharem juntos durante o processo de aprendizagem6 , além da importância da unidade e educação total, para assim atingir-se o desenvolvimento humano e global.

    Por fim, o assunto sexualidade foi tratado através da peça: "Brinquei de Médico...deu no que deu". Esta peça foi apresentada no ambiente escolar e gerou algumas discussões e reflexões sobre assuntos pertinentes à sexualidade na adolescência, tais como descoberta do corpo e do desejo, aborto, gravidez precoce, métodos de prevenção e anticoncepcionais, além de relacionamento familiar e abordagem dos pais e educadores. Foi uma maneira desembaraçosa e diferente de se abordar o assunto, pois os alunos foram incentivados a pensar no que é o sexo consciente, conversado e dividido (questões da "hora certa, pessoa certa, lugar certo"). 7


2. Proposições

    Pode não ser tão bom quanto parece8 - o frio pode ser quente!!! 9

    Alex Branco Fraga questiona exatamente o que ocorre com meninos e meninas, durante este riquíssimo período de experiências únicas: a ADOLESCÊNCIA. Também se indaga onde estão e como se comportam. Para isso, procura se aproximar e não simplesmente teorizá-los com os postulados científicos e biológicos, pautados de verdades, certezas e tabus imutáveis (e já há muito discutidos e esgotados no ambiente educacional!). Há realmente muitos adolescentes que não querem saber de estudar e muito menos trabalhar. Todavia, há também aqueles que se esforçam para crescer como pessoa; ou que, em relação à bagunça e rebeldia típicas dessa fase, não sentem a necessidade de fazer parte dela.

    Há um diálogo muito marcante no texto, que sintetiza o principal do livro, a dúvida e o conflito existencial de afirmação do adolescente, na busca frenética por modelos, padrões, identidade e reconhecimento, típicos desta fase. Este diálogo ocorre na escola Maria Fausta, entre duas alunas, e nos permite notar a clareza da diferença entre o que é e o que não é ser uma "boa- moça":

  • " Eu até acho legal sair para fazer festa, mas não sinto necessidade disso...

  • Ah! Pára guria! Tu tens que sair mais, viver mais a vida, "soltar mais a franga", ser mais endiabrada !

  • Eu não sou endiabrada, sou endeusada."10

    Fica evidente que o autor muitas vezes descreve a realidade de seu público e a facilidade com que chega ao adolescente, mostrando-nos que eles querem atenção e também serem ouvidos. E antes de mais nada querem ser reconhecidos, fato este que muitas vezes não lhes é reservado. Deixa-se, assim, de lado a generalização dos adolescentes e a utilização dos termos como juventude alienada, adolescente rebelde ou "garotos(as)-problema". Associada a esta generalização o pré-conceito ou o estigma no atendimento e trato com este público também incutirá em erros de comunicação e falta de sintonia em trabalhos conjuntos no ambiente escolar. Finalizamos com esta belíssima imagem de Pablo Picasso, logo abaixo. Boa leitura, prezado(a) educador(a)!!!


Figura 01- Pablo Picasso. Les Demoiselles d'Avignon, 1907. Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Fonte: http://www. picasso.com/gallery ( acesso em Jan./2004).


Notas

  1. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 1996.

  2. O próprio embasamento teórico do autor, que cita muitas vezes Geertz e Foucault, o influenciam sobremaneira na valorização e conceituação de discurso e sujeito que atribui em sua pesquisa; e nos remonta às diversas discussões das quais recorremos a CHAUÍ(1994), no tocante a "natural" e "cultural". Estas discussões apontam para a reflexão constante de nossas práticas, voltando-nos para auto-críticas e análises das influências culturais em nossas vidas, além de sempre nos remeter a buscar formas novas de observar determinados fenômenos sobre óticas diversas e assim ressignificá-los.

  3. DELEUZE(1996) apud FRAGA (2000), p.15.

  4. O autor caracteriza o cenário da cidade, mencionando sua localização geográfica, um pouco da sua história, o cotidiano dos moradores, dentre outras considerações, tudo muito bem considerado no subtítulo "CONSTRUÇÃO DE UM SENTIMENTO DE CIDADE", no qual faz o resgate histórico e coleta de memórias fragmentadas(oral e documentada) da cidade e da região. Ainda destaca que: "analisar os dados obtidos na pesquisa de campo faz parte de uma elaboração intrincada que se processa em outra circunstância e se baseia em uma série de anotações, fotos, vídeos, que "reinventam" o lugar e o momento vividos." (FRAGA, 2000, p.19). E completa com Geertz, que cita que a documentação "... transforma o acontecimento passado."(GEERTZ apud FRAGA, 2000), mostrando a importância da documentação e do processo histórico-cultural: considerando o documento não apenas "uma matéria inerte", mas que possui uma dinâmica própria de sucessivas reformulações no projeto metodológico planejado anteriormente.

  5. FRAGA, 2000, p. 48.

  6. "Corpos que pensam em mentes que dançam". (AL HUANG& LINCH, 1992, p. 20).

  7. A peça se encerra com a morte da jovem menina que se entrega ao rapaz dominada pelo sentimento de amor e falta de respaldo da família, levantada durante a peça (a família não dialogava e abstraia as questões sexuais da filha adolescente). Duas formas diferentes de abordar o comportamento do adolescente em relação ao sexo são discutidas entre alunos e professores da Escola (após assistirem à primeira peça, debateram e exercitaram outros finais possíveis e releituras da peça), mostrando principalmente como um 'bom-moço' e uma 'boa-moça' devem se conduzir. Inclusive, este termo do "bom-mocismo" é muito bem empregado no texto além das analogias feitas com o adjetivo "endeusados(as)".

  8. FRAGA, 2000, p. 157.

  9. Referência a uma leitura infantil - "O frio pode ser quente", que justamente nos remete a questionar sempre o óbvio e analisar de diversas óticas um determinado fenômeno. Literatura recomendada. (MASUR, 1999)

  10. FRAGA, 2000. p.69-70.


Referências bibliográficas

  • Al HUANG, C; LINCH, J. O Tao do esporte.. São Paulo: Nova Cultural, 1992.

  • CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

  • COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez, 1992.

  • FRAGA, A. B. Corpo, identidade e bom-mocismo.: cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

  • MASUR, J. O frio pode ser quente? 16.ª ED. São Paulo: Ática, 1999.

  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 1996.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 10 · N° 70 | Buenos Aires, Marzo 2004  
© 1997-2004 Derechos reservados