Imergindo em um novo mundo: dezessete horas de cegueira adquirida |
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*Bacharel em Treinamento Esportivo pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas. Técnico de Goalball do Centro de Integração do Deficiente de Paulínia. Integrante do GEAMA-DV da UNICAMP **Doutor em Educação Física. Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Diretor técnico da Associação Brasileira de Desportos para Cegos - ABDC |
Márcio Pereira Morato* veininja@yahoo.com Dr. José Júlio Gavião de Almeida** gavião@fef.unicamp.br (Brasil) |
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Immerging into a new world: Abstract Emergiendo en un nuevo mundo: Resumen |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 70 - Marzo de 2004 |
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De volta aos primórdios
Convido vocês a se unirem a mim numa viagem de volta a um passado recente. Minha máquina do tempo não é feita de metais nem de parafusos, muito menos de algum tipo de material elétrico. Ela é bem mais simples que isso. Minha máquina do tempo é construída com frases e palavras coordenadas por meu cérebro. Com ela voltaremos ao ano de 1999, ano do meu ingresso na UNICAMP.
Naquele ano, tudo era novo para mim. Imaginem eu, um simples caipira lá das Minas Gerais (como diria meu avô) numa universidade de uma grande cidade do estado de São Paulo. Tudo era fascinante. As aulas, as pessoas, os prédios, o Bandejão (restaurante universitário), era um deslumbre só. Muitas foram as coisas que me chamaram a atenção naquele ano. Mas nada se comparou a uma atividade ministrada a pessoas cegas. Se não me engano (esta máquina do tempo também apresenta falhas!!!), era uma atividade de corrida. A primeira pergunta que me veio a cabeça foi: Como eles conseguem? A partir daquele dia, sempre observava aquelas mesmas pessoas, uma vez por semana, nas acomodações da Faculdade de Educação Física e sempre ficava surpreendido com suas façanhas. O tempo foi passando e de vez em quando eu os observava, até que o ano de 1999 se findou.
Veio o ano de 2000 e, com ele, algumas novidades. Aletha, uma amiga de minha classe, entrou para aquele grupo. Em uma conversa com ela, fiquei interessado em acompanhá-los e algum tempo depois lá estava eu. Foi um contato muito rápido, pois as atividades começavam às 18:30 h e eu tinha aula às 19:15 h. Além disto, vivemos os transtornos de uma greve que me afastou da Faculdade e de Campinas e, conseqüentemente, do grupo.
Em 2001 voltei ao grupo. Foi um ano muito intenso para os deficientes visuais e os monitores. Agora sim, sentia-me verdadeiramente um monitor, sentia-me parte do grupo. Além das atividades, tínhamos também um grupo de estudos1 para discutir assuntos de tal deficiência. Os encontros foram responsáveis pela grande amizade criada entre seus integrantes e, é claro, por um maior conhecimento teórico da deficiência visual e suas implicações. As atividades se orientavam pelo doutorado da Mey (doutoranda da FEF-UNICAMP), sob a orientação do Prof. Dr. Gavião e que tem como tema, os esportes na natureza.
Depois de mergulho, escalada, cascading (rapel em cachoeira) e muita adrenalina em 2001, retornamos ao presente pelas "linhas" da máquina do tempo. Hoje, o grupo está ainda maior e continua crescendo a cada dia. O Grupo de Estudos continua alimentando nossos saberes e contribuindo na reformulação de nossos conceitos. Hoje, acredito que não só eu, mas todos seus integrantes que no princípio se perguntavam Como eles conseguem?, agora se perguntam é Como faremos para que eles consigam?
Com o acompanhamento das atividades e o aprofundamento teórico surgem as dúvidas que são discutidas pelo grupo. Várias são estas dúvidas e um dos grandes trunfos que temos para compreendê-las e respondê-las, é vivenciar as atividades com os olhos vendados. É um exercício rico de informações para nós, futuros educadores. Pena que as atividades são realizadas, na maioria das vezes, em locais visualizados previamente por nós. Seria mais valioso se pudéssemos realizá-las em locais desconhecidos. Haveria uma maior fidelidade de sensações em comparação às experimentadas por tal público. Dentre as dúvidas que não se intimidam em invadir meus pensamentos, as que mais me atordoavam eram as seguintes:
Como são construídos no imaginário dos portadores de deficiência visual, os locais que visitam ou com que têm contato? E quais seriam as diferenças do que eles constroem, pelo tato e informações cedidas pelos videntes que os acompanham, daquilo que podemos ver?
Essas questões estavam sempre presentes em meu cérebro há algum tempo. Foi então que uma idéia apossou-se de minhas reflexões. Nossa próxima viagem seria à fazendinha do prof. Gavião. Como eu não conhecia a fazenda, propus o seguinte ao professor: chegar e conhecer vendado toda a fazenda e, assim, confrontar toda a construção feita por intermédio de minha cegueira adquirida com aquilo que veria posteriormente à retirada da venda. Diante da aceitação do professor, preparei-me para o desafio.
Convivendo com a escuridão!Sexta-feira, 9 de agosto de 2002. Saída marcada para 12:30 h. Os beijos e abraços dos cumprimentos se confundiam com algumas correrias da "organização". Para variar um pouco, atrasamos a saída, mas estava tudo sob controle. Ao todo, no ônibus, eram umas trinta e cinco pessoas e muitas tralhas. A viagem correu tudo nos conformes, como diria na minha terra. Por volta de 16:30 h, fizemos uma parada em um restaurante na rodovia. "Aliviamos a tensão" e fizemos um "lanchinho".
Na volta para o ônibus, teve inicio o desafio. Coloquei a venda às 17:00 h. Logo em seguida já apareceu o primeiro obstáculo: Perdi minha carteira. Pedi para Cíntia (monitora) que procurasse para mim. Ela não achou. Andei até minha mochila e nada encontrei. Falei com Artur (mestrando da FEF-UNICAMP e coordenador das atividades do grupo em 2002), e ele disse para que eu tirasse a venda, procurasse a carteira e só depois me vendasse novamente. Assim que retirei a venda e olhei em direção ao corredor, visualizei minha carteira ao pé de uma poltrona. Ouvi dos deficientes visuais2 : "Queria ver você achar vendado!". Eu também queria e fiquei arrependido de ter tirado a venda, mas confesso que fiquei apavorado com a idéia da perda de meus documentos. Após este percalço, venda aos olhos, e ali ficaram até as 10:00 h de sábado. O grupo perdia um monitor e ganhava um DV.
Durante a viagem sentei-me próximo a Maria e Adriana (DVs) além de Carolzinha (monitora). Começamos a prosear. Nesta conversa, o medo, pela primeira vez desde que eu havia colocado a venda, "deu o ar de sua graça!". Carolzinha falou-nos sobre pessoas que ficam muito tempo sem ver a luz do sol e que se adaptam a tal situação. Adaptam-se de tal forma que quando são recolocadas em ambientes claros, a luz causa uma agressão tão violenta a seus olhos que muitos perdem a visão (Ela citou os prisioneiros que eram largados em calabouços). Fiquei completamente amedrontado com tal idéia. Sentia o medo possuindo cada célula de meu corpo. Não sei se ela percebeu meu comportamento e logo tratou de falar que no meu caso não era assim, que era muito pouco tempo. Mal sabia ela que essa era uma de minhas dúvidas quando conversei com o Gavião sobre esta experiência. Fiquei um pouco mais confortado com suas palavras posteriores. Respirei fundo..., respirei de novo!... e mais uma vez!
Pensei em quanto isto seria importante para nosso grupo e, pouco a pouco, o medo ia diminuindo. Não diria que ele sumiu, mas sim, que ficou camuflado, pois posteriormente ele viria à tona em outra ocasião.
Pneu rodando, estrada correndo e conversa rolando. Maria agora se pôs a falar comigo. Esta conversa me fez lembrar muito no caso do pintor daltônico relatado por Oliver Sacks (1995). Ela queria saber por que eu estava fazendo aquilo. Expliquei meus objetivos. Ela achou interessante, mas disse uma frase que foi para mim, naquele fim de semana, o que um santo é para os católicos - meu alicerce, minha base estrutural, minha fuga! Quando eu enfrentava alguma dificuldade, buscava o consolo em suas palavras. Ela disse que seria muito bom se pudesse "tirar a venda" e enxergar novamente. Cega por ferimento à bala há seis anos, ela ainda vive num mundo visual. Esse sentimento de não aceitar a realidade foi o responsável pelas lembranças do pintor daltônico, chamado de Sr. I por Sacks. Este senhor ficou completamente daltônico aos 65 anos, depois de um acidente de carro. Vivera toda sua vida vendo as cores normalmente e bruscamente perdeu esta capacidade, enxergava apenas o preto e o branco e algumas cores intermediárias. Ele conhecia todas as cores e, inclusive, seus números listados na paleta de variações da Pantone, a qual havia usado durante anos. De forma repentina as cores sumiram de sua vista, de seus sonhos, de sua memória visual, de sua vida. Mesmo tendo consciência de sua deficiência, teimava em pintar quadros coloridos, usando sua memória para "achar" as cores pela numeração em sua paleta. Estes quadros não foram bem aceitos pelas pessoas que enxergavam as cores normalmente. Seus amigos o entusiasmaram a buscar uma nova arte. Uma arte em preto e branco. Foi só depois de se adaptar ao seu novo mundo e, principalmente, aceitá-lo, que ele encontrou a nova arte e seus quadros voltaram a ser sucesso.
Maria parece ainda não ter encontrado uma "nova arte". Parece não ter se adaptado, ou melhor, aceitado a situação em que se encontra agora. Sua frase, no meu entender, exprime todos estes conflitos que devem atormentá-la dia e noite. Sua frase foi (e será!) muito importante para mim. A cada novo obstáculo, ou até mesmo, uma vontade de tirar a venda para ver o que estava acontecendo, meus circuitos internos, movidos pelos objetivos da experiência, traziam à minha consciência a frase da Maria, e eu dizia a mim mesmo: "Depois eu vejo como é". Toda vez que isto ocorreu fui tomado, por intermédio de uma empatia, de reflexões sobre a situação dessas pessoas que não têm possibilidades de "tirar a venda". Como deve ser difícil se adaptar, afinal somos extremamente visuais. Mesmo sendo seres altamente adaptáveis, a dificuldade deve ser enorme, pois deve ser pautada pelo sentimento de não-aceitação. Além de tudo, o que deve acontecer é uma reconstrução do mundo, ou melhor, uma construção de um novo mundo. Eu estava apenas fazendo uma imersão neste mundo e poderia sair dele a qualquer momento. Não tinha a capacidade de compreender o sentimento que rege a vida de uma pessoa que adquire a cegueira, porque era um "falso cego".
Chegando na fazendaNa chegada, uma sensação de retorno assim que pisei no solo e saí do ônibus. A brisa úmida e o cheiro do campo trouxeram além de grata surpresa, lembranças de minha cidade natal. Após cumprimentar os que ali já estavam, fomos reconhecer a fazenda. Começamos, eu e minha guia Cíntia, pela casa à esquerda do ônibus. Toquei todos os seus contornos e cômodos. As janelas, a varanda, as redes também lembravam muito a minha cidade. A cada toque ou informação, uma reformulação de minha imaginação. Cada vez que me lembrava de minha cidade ia construindo uma imagem da fazenda, orientada por minha memória visual. Parece que eu estava diante de uma folha branca na qual eu jogava tinta e ia pintando à medida que ia adquirindo as informações.
Descemos à outra casa. Tateei toda ela. Banheiros, cozinha, sala, quartos, assim como fiz na primeira casa. O engraçado é que descobri que sou um expert em chuveiros. Só errei a marca de um. Ao lado da casa tinha uma casinha de madeira suspensa. Fomos até ela e fiz o reconhecimento. Tinha um escorregador e resolvi descê-lo. Na primeira vez, tive um certo medo do desconhecido, afinal não podia ver seu comprimento. Desci freando com os pés. Subi de novo e desci sem frear.
Passei direto, não consegui colocar os pés no chão na chegada. Quiquei como uma bola. As monitoras que me acompanhavam se desmancharam em risos. Fui mais uma vez e já melhorei um pouco. Desci mais umas duas vezes até que consegui ter a noção da distância pelo tempo de descida e também pelo barulho do atrito de meu corpo com a madeira.
Após todo o reconhecimento da fazenda, "pintei meu quadro". Construí tudo, baseado em experiências visuais anteriores. No meu quadro havia somente as duas casas, árvores e um grande terreno gramado. O interessante é que a casinha de madeira não fazia parte do quadro, mesmo eu tendo conhecimento de sua existência. Não conseguia somá-la a imagem que eu construí. Quando pensava nela, ela estava solitária, tinha apenas a árvore (que realmente existia e eu também tateei) ao seu lado.
Outro fato interessante é que eu imaginava tudo em duas dimensões, por isso a semelhança com quadros. Havia somente um ponto de vista. Não conseguia imaginar tudo de um outro ângulo. Não conseguia mudar a perspectiva da imagem como se eu andasse para outro local e dali olhasse de novo para a fazenda. Meu quadro foi construído exatamente a partir do ponto de onde eu parti, da descida do ônibus:
O campo de futebol e o ônibus foram colocados acima somente para ilustrar como eu os imaginava, mas eles não faziam parte do meu "quadro da fazenda", assim como a casinha de madeira. Quando eu tentava imaginar como era a fazenda, só tinha imagens das casas inclinadas como na figura e de algumas árvores pelo terreno de grama baixa.
Outro ponto relevante é que eu não conseguia construir as casas como um todo. Visitei todos os cômodos de ambas as casas, mas tive grande dificuldade em juntar tudo, em saber me situar quando eu estava dentro delas. Acredito que minha "inexperiência como cego" foi determinante neste aspecto. Talvez, se eu tivesse uma maquete da casa, pudesse me orientar e entender a distribuição dos cômodos. Isso me fez pensar na diferença de se vivenciar atividades com os olhos vendados em locais conhecidos em contraposição aos desconhecidos. Nos primeiros, ao tocar em algo e identificá-lo, a imagem visual do local é resgatada da memória e, assim, nos situamos. Já em locais desconhecidos, não temos nenhum referencial, fato que dificulta a orientação. Precisamos construir uma imagem e isto, pela experiência vivenciada, não é nada fácil.
As informações não são mais visuais, mas toda minha experiência passada foi visual. Tentava codificar tudo o que os outros sentidos me diziam em sensações visuais. Esta deve ser a maior dificuldade para as pessoas que perdem a visão: desprender-se dela. Acredito que um cego congênito não passe por estas aflições, pois jamais viu. Nunca experimentou a visão. Conhece tal sentido pelas informações que lhes são cedidas por aqueles que a possuem, portanto, não tem uma exata compreensão do que ela é. Dificilmente alguém compreenderá o verdadeiro sabor de chocolate somente por explanações de outras pessoas. Precisa provar. Um cego congênito nunca "provará o chocolate" e o cego adquirido que já o provou, não terá mais condições de prová-lo pelo resto de sua vida e, possivelmente, viverá com saudades. Precisamos compreender que, apesar de ambos serem cegos, suas diferenças são gritantes.
Depois de todo o reconhecimento fomos para a casa de baixo (a da direita na figura) para lancharmos. Sentei-me ao lado dos DVs. Achei muito bom ser servido pelos monitores. Começamos a conversar sobre a deficiência visual. Catarina mostrou-me, através do tato, como sua pele (negra) é diferente de peles claras. Nunca tinha me atentado para tal fato. A pele negra é mais elástica, mais lisa e espessa que a pele clara. Algumas dúvidas de higiene pessoal surgiram em minha mente. Como eles sabem quando já estão limpos depois de defecar? Como eles miram no vaso sanitário para urinar? (Depois que urinei pela primeira vez vendado, pedi para Dani - monitora - ver se eu havia "acertado o alvo"). Eles se divertiram com minhas dúvidas, mas as responderam sem desconforto. Disseram saber que já estão limpos pela consistência do papel higiênico. Brincando, disse a eles que iria usar o bidê, pois não tinha tal capacidade, sempre olhava se o papel estava sujo. Quanto à questão da micção, depois de experimentá-la, não achei tão difícil. Outras coisas que também não apresentaram tantas dificuldades foi vestir e comer. Eu mesmo tinha arrumado minha mala, portanto, sabia onde estavam as coisas. O tato também deu sua contribuição: achar etiqueta, diferenciar a textura das malhas, escolher e posicionar a roupa. Somando o tato à "fotografia mental" de minha mala, em pouco tempo eu já estava vestido. Comer sanduíches e bolos também foi fácil. Talvez teria sido mais difícil me alimentar com talheres, mas não tive esta experiência.
Com a deficiência visual, senti-me um pouco mais próximo das pessoas com que eu não havia tido muito contato. Não sei se pela dependência que agora era maior ou se a falta da visão contribuía para que alguns preconceitos "camuflados" fossem deixados de lado. É importante ressaltar também a importância de viagens neste aspecto. A convivência dia a dia contribui para uma maior aproximação das pessoas. Talvez, mesmo se eu não estivesse vendado, me aproximasse destas pessoas da mesma forma, criando uma maior intimidade.
Outra diferença percebida por mim nesta noite, foi a questão da saciedade. Sempre fui uma pessoa muito gulosa, mas enquanto cego, comi apenas o necessário para me satisfazer. Descobri que no meu caso, o pecado capital da gula é extremamente visual. Esta descoberta se deu ao fato de eu ter visto a beleza da mesa repleta de guloseimas naquela ocasião. Não vi naquela noite. Vi somente no outro dia, depois de retirar a venda, por intermédio de uma gravação de vídeo. Na hora em que assistia à fita pensei: se estivesse enxergando não teria parado de comer!
Dentre as modificações apresentadas em conseqüência da deficiência visual, o maior comprometimento que eu senti foi minha mobilidade. Primeiramente, eu fiquei acomodado pela atenção ministrada pelos monitores. Tudo o que eu queria eles traziam. Não tinha o porque de tentar me mover. Não era desafiado nem exigido. Quando tinha vontade de me mover, de andar, logo era desmotivado pelo medo. Estava num lugar diferente, do qual eu não tinha conhecimento. Tinha medo de esbarrar nas coisas e me machucar. Principalmente porque, como já disse, não tinha noção da casa. Não sabia a localização dos cômodos e móveis, mesmo tendo tateado tudo anteriormente. Minha personalidade foi influenciada por estas mudanças. Alguns monitores e também DVs perceberam isto e me falaram. Falaram que eu não estava tão alegre como costumava ser e que estava meio perdido. Parecia que não só um mundo novo, mas um "outro eu" foi criado para viver neste mundo. Meu eu vidente não se adequava à nova ordem estabelecida pela deficiência, e inconscientemente, pois só refleti sobre isto depois que me falaram; modifiquei meu modo de ser.
Após o lanche nos preparamos para uma atividade. Foi um misto de caça ao tesouro e noite do terror. Tínhamos que procurar pessoas infectadas por um vírus alienígena para recebermos pistas de como matar o Vanster, aquele que seria responsável pela futura destruição da terra. Foi uma atividade muito legal, porém muito assustadora também. Tive muita vontade de tirar a venda para ver a maquiagem das monitoras que faziam o papel de infectados. Enquanto na minha infância eu fechava os olhos quando imaginava monstros, agora eu queria poder vê-los. Resisti e não tirei a venda, agarrado no meu alicerce:
"Amanhã eu vejo". Pedi que as meninas tirassem uma foto para que eu pudesse ver depois. Cíntia, minha guia na ocasião, me assustava muito com seus gritos. Ela fazia com que eu tocasse os "infectados" e assim eu os imaginava, mas me assustava diante de seus gritos repressores de meus toques. A imagem da fazenda foi tomada por uma imagem de um local bem macabro. Pelas idas e vindas em busca das pistas, me senti completamente perdido. Meu senso de direção era nulo e comprovou o que Adriana (DV) havia dito: que quando eles giram ficam completamente perdidos. Não sabia mais para que lado estavam as casas nem nada que eu havia tocado. Outro ponto relevante é que sempre tive um senso de liderança nestas atividades, mas não passei de um mero coadjuvante naquela.
Terminada a atividade fomos dormir. Estava cansado e com muito sono reneguei o banho. Durante a noite acordei várias vezes com um medo absurdo. Medo de não mais ver. Não sei se sonhava que nunca mais enxergaria. Acordava completamente assustado. Isto se repetiu umas quatro vezes durante a noite. Para me deixar mais aliviado e provar que ainda enxergava, abaixava a cabeça, abria os olhos, levantava o cantinho inferior da venda e olhava em direção à minha camiseta, sempre tomando cuidado para não ver nada a minha volta além da camiseta. Com a comprovação de que ainda possuía a visão, ficava um pouco mais aliviado e voltava a dormir. Confesso que pensei em desistir porque o medo parecia tomar conta de minhas ações. Lutei contra ele até que consegui dormir tranqüilo e não mais acordei até a manhã de sábado.
Eram umas 6:00 h, se não me engano. Fazia um pouco de frio. Perguntei para Dani onde era o banheiro, pois queria tomar banho. Ela me disse que o chuveiro tinha queimado e me levaria à outra casa. Precisei de sua ajuda, pois não tinha condições de ir sozinho até a outra casa. Peguei minhas coisas e fui tomar banho. Não senti muitas dificuldades. Tomei com os olhos fechados, sem a venda. Terminei, me vesti e recoloquei a venda. Gavião perguntou se queríamos ir até a cidade. Fomos de caminhonete. Compramos pão na padaria. O cheirinho de pão era inconfundível. Passamos em volta da praça da igreja e Gavião me falou sobre uma árvore de grande copa. Voltamos para a fazenda e tomamos café. Depois fomos pegar os cavalos. Fomos a pé pela estrada de terra e atalhos. O terreno era íngreme e defeituoso. Paramos em um local onde o Gavião disse que tinha uma bela vista. Descreveu-me para que eu tentasse imaginar. Disse também para eu voltar lá depois. Mais uma vez fiz uma "pintura" da vista pelos detalhes que eles me passavam. A memória visual era, novamente, buscada para ajudar na construção do quadro.
Chegando ao local eles pegaram os cavalos e voltamos para a sede da fazenda. Voltei montado no pêlo de um cavalo. Não me lembro da última vez em que andei a cavalo. Parecia que era minha primeira vez. Disseram que eu estava totalmente torto no lombo do animal, que parecia um trem descarrilado. Tive a sensação de estar girando em círculos no sentido anti-horário. Achei que o Gavião estava me pregando uma peça, mas não era, andávamos em linha reta segundo ele. A inclinação do terreno e minha postura disforme devem ter sido responsáveis por esta sensação. Tomei um tombo quando o cavalo deu um saltito. Mesmo sendo avisado previamente que ele faria isso não consegui me manter em seu lombo quando ele aterrissou. Caí macio para a esquerda, não me machuquei e subi de novo. Gavião pediu para que o Breda (monitor) puxasse meu cavalo e só então tive a sensação de estar andando em linha reta. Isto porque ele também estava montado num cavalo que ficou paralelo ao meu. Um pouco mais à frente tive outra sensação estranha, de que o cavalo estava andando de lado. Falei com o Breda e ele me informou que o terreno também era um pouco inclinado. Passados alguns minutos, estávamos de volta à sede.
Confrontando experiênciasAssim que chegamos à sede nos preparamos para tirar minha venda. Levaram-me a uma sala onde ficam as selas. Fecharam as janelas, tirei a venda e ainda de olhos fechados fui abrindo aos poucos. Todos estavam muito ansiosos. Eram 10:00 h de sábado e de olhos abertos olhei todo o seleiro. Disseram-me que foi ali que a Bia (monitora) ficou na noite passada na brincadeira do Vanster. Nada era como eu havia imaginado. O contexto da atividade me fez imaginar um local macabro, escuro, com paredes semelhantes a uma caverna úmida e de forma convexa, como um estreito corredor em curva. Mas não, o celeiro era de tijolos e retangular.
Coloquei minha blusa sobre meu rosto a fim de me levarem ao ponto aonde chegamos, onde descemos do ônibus. Era lá que gostaria de ter o primeiro contato visual com a fazenda. Tirei a blusa, ergui a cabeça e surpresa total! Tudo era diferente. Os quadros que construí em meu imaginário não lembravam muito a fazenda. Até mesmo a perspectiva das casas era diferente. Do mesmo ponto em que eu imaginava a fazenda e no qual eu fiz o desenho páginas atrás, agora eu via outra fazenda:
Além das casas que não estavam mais inclinadas, o campo de futebol também tinha uma distribuição diferente da imaginada. Era paralelo e não perpendicular ao ônibus. A casinha de madeira agora se juntava à imagem. O número de árvores era bem maior e o terreno menor. Havia algumas coisas que eu nem imaginava que faziam parte da fazenda: a casa do caseiro, o cercado dos bois, uma cerca viva na lateral do campo de futebol e as caixas d'água.
As cores da casa também eram diferentes. Eles me disseram que as casas eram amarelas, mas eu as imaginava brancas. A casinha de madeira era envernizada e toda "certinha" do ponto de vista estrutural. A de minha imaginação não. Era rústica, assimétrica e meio improvisada com as madeiras puras, sem verniz. Para imaginar tal casinha, tomei como base uma casa de madeira que um amigo de infância construiu na árvore de sua casa. Já as casas da fazenda foram baseadas nas casas de Furnas (minha cidade) e de fazendas que eu conhecera anteriormente.
As cores das fantasias das "infectadas" também eram diferentes. Tomarei como exemplo a fantasia da Carolzinha. Quando eu a toquei na sexta à noite, percebi que ela possuía uns chifres. Rapidamente relacionei os chifres e o ambiente macabro ao diabo e a imaginei com roupas vermelhas, mas eram pretas. Toda construção das personagens "Vansterianas" foi baseada em personagens de filme de terror. Procurava em minha memória, algo que eu já havia visto e que se assemelhava com as descrições feitas pelas monitoras.
Havia na fazenda algumas pessoas que eu não conhecia e uma delas merece uma citação pela surpresa do confronto entre o imaginado e a realidade. Era o André (Dedé). Ele é filho de um professor de nossa faculdade. Pelo seu entusiasmo e gosto por aquelas terras eu pensava que ele era um funcionário da fazenda. Só depois de construir sua figura em meu arquivo é que fui saber de seu parentesco! Talvez por isso eu tive imensa dificuldade de somar características de seu pai às que eu já havia feito. Aliás, a primeira impressão, ou seja, a primeira imagem visual "é a que fica". É muito difícil reconstruir. São feitas associações construindo um resultado que provavelmente não é modificado mais pelo poder exercido pela memória visual. Pela sua voz, pelo toque num aperto de mão e também por minhas associações, eu o imaginava magro (pelo trabalho no campo!), de pele bem morena (pelo contato diário com o sol!) e de cabelo bem crespo. Não era nada disso. É gordinho, pele clara, cabelo curto e ondulado. Nem mesmo a altura e muito menos sua fisionomia eram parecidas às imaginadas. A surpresa foi enorme quando relacionei a voz à pessoa; rapidamente emendei uma pergunta: "Esse é o Dedé?".
Após toda esta surpresa na fazenda, fomos à cidade. Retornei à padaria e à praça onde pude ver a árvore. O interessante é que a árvore foi bem parecida à que eu imaginei. Era um flamboyant. Quando Gavião me falou que a árvore possuía uma copa bem grande eu logo lembrei de uma que tinha no quintal de minha casa em Furnas, que por coincidência também era um flamboyant. A padaria se parecia realmente com uma padaria e também não apresentava muitas diferenças entre o que tinha imaginado e o que agora eu podia ver.
De volta à fazenda, visitei o local da bela vista. Diferenças à parte, mas a beleza era bem semelhante. Após confrontar tudo aquilo que eu tinha vivenciado e construído ante a falta da visão com o que agora eu podia ver, lembrei-me de uma citação de Diderot feita por Sacks em seu livro. Sacks (1995) escreve que segundo este autor:
"(...) os cegos podem, a sua maneira, construir um mundo completo e suficiente, ter uma 'identidade cega' completa e nenhum sentimento de incapacidade ou inadequação, e que o 'problema' de sua cegueira e o desejo de curá-la, por conseguinte, é nosso, não deles". (p.152)
Eu realmente construí um mundo novo. Apesar de diferente, também era bonito como este que agora eu via. O interessante é que eu sempre buscava experiências visuais anteriores para a construção deste mundo. Codificava tudo quanto é tipo de informação em quadros, imagens, lembranças visuais, pois ainda estava preso a elas, que me orientaram e me acompanharam durante toda a vida. Da mesma forma que eu tive minha própria formulação do espaço baseado nas experiências de minha vida, os DVs também devem ter feito o quadro à sua maneira. Não saberia dizer como isto ocorre em um cego congênito, mas num adquirido deve ser bem próximo do que vivenciei. Laplantine (1988) diz o seguinte: "(...) aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros" (p.22). Cada um deve construir seu próprio quadro e se orientar através dele. Assim como eu enquanto DV, este público não deve se sentir inferiorizado por não poder ver as belezas dos locais, principalmente porque sua imaginação deve dar conta disto. Diante das explanações das pessoas, devem procurar em seu arquivo algo que se assemelha a tais descrições para construir seus "próprios mundos", isto se eles ainda estiverem presos ao antigo mundo visual, assim como eu fiquei nestes três quartos de dia.
As dezessete horas de imersão neste mundo novo não se originaram de algum acidente ou qualquer tipo de trauma, nem ao menos, de nenhuma brincadeira do gênero, como, por exemplo, uma "mega cabra cega". Também não objetivava nenhum afrontamento às pessoas que possuem deficiência visual. Cada minuto, toque, relação, frases, palavras..., tudo(!), era acompanhado das mais profundas e possíveis reflexões alicerçadas e agarradas no embasamento teórico oriundo dos estudos, das discussões, das leituras e das vivências obtidas em mais de dois anos de contato e dedicação ao grupo. Pensando neste ponto de vista, podemos dizer que, na verdade, foram muito mais que dezessete horas. O objetivo maior, vivenciado por mim nesta ocasião, mas buscado pelo GEAMA-DV enquanto um grupo que se dedica às aflições e dificuldades enfrentadas pelas pessoas portadoras de deficiência visual, é entender um pouco mais toda a dinâmica de vida de tais pessoas, desenvolvendo novas formas e métodos de trabalho para seu desenvolvimento, e principalmente, não deixar que a palavra deficiência seja sinônimo de desvantagem.
Depois de toda esta experiência, acredito que mais importante que tentarmos descrever muitos detalhes de um local desconhecido para um cego, o que realmente deve ser feito é tentar expressar, com palavras, os sentimentos que a visualização deste mesmo local desperta em nosso coração. Assim, os DVs compreenderão melhor o espaço e criarão em seu imaginário um "quadro" tão bonito quanto aquilo que podemos ver. É importante lembrar que estas horas de cegueira adquirida estão longe de me dar a dimensão exata da dificuldade de adaptação destas pessoas. Para mim era muito mais fácil. Nas horas de desespero eu sempre pensava: "Depois eu vejo!".
Referências
LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo, Brasiliense, 1988.
SACKS, O. W. Um Antropólogo em Marte: Sete Histórias Paradoxais. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
revista
digital · Año 10 · N° 70 | Buenos Aires, Marzo 2004 |