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A luta capitalista contra o ócio:
a necessidade à um lazer consumista

   
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Brasil)
 
 
Bruno Gawryszewski
bgesporte@bol.com.br

 

 

 

 

 
Resumo
    A palavra ócio nos remete a algo improdutivo e inútil, o que parece contrariar a lógica do consumo. Se os homens são mais valorizados quando atendem às expectativas do pensamento hegemônico, então o lazer também é incluído nessa perspectiva. O trabalho busca refletir sobre os métodos de persuasão do sistema capitalista para atender às suas necessidades no âmbito do lazer.
    Unitermos: Capitalismo. Ócio. Consumo.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 66 - Noviembre de 2003

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Introdução

    A relevância que a temática do ócio e do lazer adquire nas últimas décadas é indiscutível, tanto que percebemos o grande número de estudiosos que se ocupam a contribuírem com pesquisas na área. Mas afinal, de onde vem tamanha curiosidade e ambição para teorizar sobre tal temática? Não nos atrevemos a responder categoricamente todas as razões que levam esses pesquisadores, incluindo as minhas, mas acreditamos que as cifras grandiosas que giram em torno dessa grande indústria podem exercer alguma influência para tal fim. Segundo um estudo de 1987, realizado pelos pesquisadores Mason e Martin citados por Mendo (2000), o mercado do lazer movimentava na Inglaterra a soma de 28 bilhões de libras. No mesmo artigo, o autor afirma que a indústria do lazer, em 1982, capitalizou das famílias norte-americanas um total de 256 bilhões de dólares, orçamento este maior que o Ministério da Defesa daquele ano. Perceba que estamos descrevendo valores de 20 anos atrás.

    Um dos fatores, senão o principal, para o surgimento da indústria do entretenimento foi o aumento do tempo livre dos trabalhadores, resultado de conquistas trabalhistas organizada pelos sindicatos, mas também, pelos interesses econômicos de se formar novos quadros de consumidores. Para que houvesse a produção em massa, era preciso garantir esses consumidores em massa. E, com isso, Henry Ford encontrou a saída: os trabalhadores deveriam se constituir em consumidores, portanto, seus salários foram substancialmente aumentados, bem como todos os empresários também o tiveram de fazer. Com os salários em alta, esses novos consumidores necessitavam de tempo livre para fazer compras. Então, a jornada de trabalho foi reduzida para atender ao interesse capitalista.

    O aumento do número de consumidores proporcionou o nascimento da indústria do lazer, que atualmente gera milhões de empregos e dinheiro, com a instauração de novas profissões; construções erguidas para entreter seus clientes como cinemas, teatros, cassinos, bares, etc.; produção de indumentárias próprias para a prática de esportes e/ ou atividades livres; além de ser objeto de estudo para intelectuais no mundo inteiro.

    Com a redução da jornada de trabalho e o aumento da expectativa de vida, espera-se que o homem possa desfrutar de um tempo significativo dedicado ao descanso, ao prazer, ao ócio. Conforme os cálculos de De Masi (2001) um jovem do século XXI tem uma perspectiva de viver 530.000 horas, sendo 80.000 dedicadas ao trabalho. Descontando-se outras 219.000 horas para cuidar do corpo e dormir, sobrariam a esse sujeito 226.000 horas de tempo vago, ou seja, quase o triplo do tempo laboral.

    Contudo, parece que o tempo disponível é cada vez mais curto, com a necessidade de se caminhar com passos cada vez maiores, comer, sem ao menos sentir o já pobre paladar das comidas enlatadas, ter uma sensação de impossibilidade de cumprir todas as tarefas diárias e a ausência da sensibilidade de refletir e se indignar com a miséria do país. A agenda está sempre cheia de compromissos. Desgastado pela jornada de trabalho e a de casa, o indivíduo, procurando uma atividade de lazer que lhe proporcione prazer, relaxamento e bem-estar, depara-se com anúncios espetacularizados na mídia e preços altíssimos de ingresso. Sobre o operário e sua relação com o sistema capitalista, Debord (1997) menciona:

Subitamente lavado do absoluto desprezo com que é tratado em todas as formas de organização e controle da produção, ele continua a existir fora dessa produção, aparentemente tratado como adulto, com uma amabilidade forçada, sob o disfarce de consumidor. (p.32)

    Aí fica a impressão: ou ele "investe" seu dinheiro ou entedia-se em casa.

    As armadilhas do capitalismo nos encurralam a todo momento, enquadrando as massas e marginalizando as resistências oferecidas. Pretendemos analisar, a partir de reflexões e revisões literárias, essas questões no âmbito do ócio e sua manifestação através do lazer de consumo.


Capitalismo x Ócio

O capital é um produto coletivo:
só pode ser posto em movimento
pela atividade conjunta
de todos os membros da sociedade.

(Karl Marx, Friedrich Engels)

    A partir desta reflexão, escrita no Manifesto do Partido Comunista, constatamos que o sistema capitalista não é um "peixe fora d'água". O capitalismo se insere em nossos hábitos, desejos, atitudes e, agindo como uma cobra venenosa sorrateira, "engole" tudo o que vê pela frente. O chamado trabalho de base, tão importante para as forças de esquerda com o intuito de conscientizar as massas para se insurgirem contra o capital, parece que foi muito bem executado pela burguesia que utilizando-se de métodos que vão desde a publicidade, com suas mensagens persuasivas, a marginalização de minorias que se colocam contra o sistema, a coerção, e, obviamente, a violência física.

    A relação do sistema capitalista e o ócio não se mostra conflituosa apenas na contemporaneidade. Durante o domínio da Igreja católica, os operários desfrutavam de 90 dias de descanso (52 domingos e 38 feriados), durante os quais era estritamente proibido trabalhar. O trabalho nesses dias era encarado como o maior crime do catolicismo, a maior causa de não-religiosidade da burguesia comercial. Com a ascensão ao poder da classe burguesa, esta aboliu os feriados. Lafargue (2001) analisa que "o protestantismo, que era a religião cristã, moldada pelas novas necessidades industriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menos com o descanso popular: tirou todos os santos do céu para abolir suas festas na Terra" (p.160).

    Assim, o tempo de ócio passa a ser um ideal condenável, que deveria ser suprimido em nome da produção, do esforço físico, enfim, do capitalismo. O movimento puritano passa a restringir os prazeres e distrações, inclusive a prática de desportos e Educação Física (MUNNÉ, 1980).

    Apesar do ócio incorporar diferentes representações ao longo da História, o estigma de ser algo maléfico, pai dos vícios e promotor do enfraquecimento das virtudes em decorrência do tédio, parece ter adquirido bastante legitimidade na sociedade, como explicita o famoso ditado popular "cabeça vazia, casa do diabo".

    A sociedade se esquece da necessidade de momentos de contemplação e reflexão, seja deitado na cama, seja no cume de uma montanha ou até mesmo assistindo televisão. Mas não! Vivendo sob o jugo de um sistema de opressão onde tudo e todos são transformados em mercadoria, a aceitação do ócio é tarefa das mais difíceis.

    O ócio só é levado em consideração quando representa alguma oportunidade de consumo, porque pelo menos será útil para a economia. Freire (1987) afirma que para os opressores do capitalismo, na condição de usufrutuários em que se encontram, ser feliz está associado em ter para ser. Não conseguem perceber que, na busca egoísta do ter como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser.

    Poderíamos complementar esta reflexão de Paulo Freire afirmando que as bases de sustentação capitalistas são tão fortes que, indivíduos oprimidos, os quais deveriam se rebelar perante à sua exploração, acabam absorvendo esses valores como ideais de vida e buscam a posse e o consumo como sinônimo de felicidade.

    A partir desse ponto, justificaremos o título que busca analisar a necessidade à um lazer consumista. Padilha (2000) faz interessantes considerações a esse respeito:

  1. se as atividades de lazer são transformadas em mercadorias a serem consumidas, o lazer está completamente integrado ao sistema econômico do qual ele faz parte;

  2. se este sistema econômico tem o consumo de mercadorias como pilar de sustentação e momento de realização do lucro, não só as atividades de lazer se tornam mercadorias como o próprio tempo de lazer se configura em tempo para consumir mercadorias;

  3. se é real a tendência de aumento de tempo livre em função das transformações tecnológicas, parece provável que aumentará consideravelmente o número de serviços especializados em entretenimento (p.69)


A articulação e fomento da indústria cultural

    A necessidade de se criar um vínculo entre o sistema capitalista e o campo da cultura é preenchida pela indústria cultural. Sempre subserviente ao sistema, esta se configura pela própria existência do capital e confere à filmes, rádios, jornais, um ar de semelhança, onde cada setor se harmoniza em si e para si (ADORNO & HORKHEIMER, 2000).

    Alcançar o máximo de homogeneidade, é fundamental para a obtenção de seu sucesso, transformando todos os aspectos da vida social em coisas que devem ser comercializadas e, posteriormente, representarem taxas de lucro. Se a taxa de lucro passa a ser o principal indicador de produtividade do trabalho, então o consumo se configura como a mola-mestra da produção pois para esta aumentar, é necessário um aumento do consumo que, por sua vez, exige um aumento da necessidade de consumir.

    Sendo assim, a indústria cultural, para aumentar seus lucros, precisa tornar seus produtos atraentes ao público. A regra para se chegar a tal objetivo é proporcionando prazer e diversão às pessoas. Entretanto, devemos lembrar que os seres humanos não se constituem em máquinas pré-programadas e apresentam as mais diversas distinções, como sócio-econômica, etária, raça, gênero, etc. Conhecendo estas distinções, a indústria cultural segmenta seus produtos, a fim de atender a determinados públicos diferentes sem, no entanto, alterar a ideologia do sistema, consolidando assim a conexão entre seus produtos finais e afirmando o ar de semelhança presente como supra-citado. Criados esses pontos em comum, é fácil estabelecer padrões e inúmeros clichês às produções. Sobre os clichês, Adorno & Horkheimer (2000) concluem que estes "[...] seriam causados pelas necessidades dos consumidores: e só por isso seriam aceitos sem oposição." (p.170).

    A análise de Isayama & Werneck (2001) sobre a padronização de bens de consumo se faz complementar. Segundo os autores:

Como milhões de pessoas participam dessa indústria, é necessário buscar métodos de reprodução que, por sua vez, tornem inevitável a disseminação de bens padronizados, visando à satisfação de necessidades iguais. Os padrões justificam-se, portanto, pelas próprias necessidades dos consumidores. (p.52).


Aspectos do consumo e sua manifestação no lazer

    Após abordarmos como a indústria cultural se dissemina, é necessário que destaquemos o produto final deste trabalho, que é o consumo.

    Utilizo a análise de Isayama & Werneck (2001) para ilustrar a compreensão do processo de consumo:

Os processos de consumo podem ser compreendidos sob vários enfoques. Pela sua racionalidade econômica, o consumo é um momento do ciclo de produção/reprodução social e, sob este ângulo, são as grandes estruturas que determinam não somente as necessidades e os gostos individuais, mas também o que, como e quem consome. Do ponto de vista, da racionalidade sócio-política, consumir quer dizer participar de um cenário de disputar por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo. (p.55)

    Através da reflexão desta citação, podemos afirmar que o lazer vinculado ao consumo assume características próprias conforme a camada social em que se encontra. O consumo implica mais do que o preenchimento material de uma necessidade; mas também denota uma atitude de estandartização, que vai formular a imagem de uma classe social. Ou seja, as atitudes (e compras) do indivíduo vão fornecer dados suficientes para que se reconheça seu status econômico. Isso é particularmente utilizado pelas elites, que a todo momento, criam assepsias sociais para se diferenciarem da massa trabalhadora. Um de seus métodos preferidos é fomentar a idolatria de seus membros, com a promoção de "artistas" nos meios de comunicação ou a realização de leilões beneficentes onde o prêmio é jantar com o ator recordista de cartas da Rede Globo.

    A promoção dos produtos que vão resultar em consumo e que, conseqüentemente, vai orientar uma forma de lazer é orquestrado pela publicidade. A veiculação da publicidade nos mass media confere enorme poder de barganha para convencer o público consumidor sobre suas vantagens.

    Seja um shopping center, condomínio de luxo, parque temático, resort, boate, a publicidade vai atribuir qualidades (quiçá, status) a estas manifestações de lazer para convencer seu público a ser feliz e viver bem, prazeres proporcionados em sua própria diversão, sendo que, para esta acontecer, é necessário que o sujeito deve investir seu dinheiro na sua felicidade.

    O convencimento é concretizado pela veiculação de marketing, onde uma das principais armas é exploração da imagem de "pessoas importantes" (que são muito bem pagas para isso). Conforme preconizam Lazarsfield & Merton (2000):

Os mass media conferem prestígio e acrescem a autoridade de indivíduos e grupos, legitimando seu status [...] O mecanismo desta função de atribuição de status é patente na propaganda-padrão com testemunhos em que "pessoas importantes" endossam um determinado produto. No longo âmbito da população, tais testemunhos não somente destacam o prestígio mas também canalizam prestígio para a pessoa que testemunha. Em suma, seu testemunho é um testemunho de seu próprio status. (p.115)

    Portanto, se os meios de comunicação entorpecem o público com uma avalanche de propagandas que o instigam a todo momento ao ato de consumir, o lazer incorpora essas características pois está inserido na manutenção do status quo. Seria por demais ingênuo pensar que os meios de comunicação em massa assumissem uma postura independente, visto que, são sustentados pelo patrocínio desta estrutura social.

    Posso afirmar que a idéia de democratização da cultura através do lazer é falsa, pois, a realidade das sociedades capitalistas tem demonstrado que o acesso a este é diferenciado, sendo segmentado para atender às necessidades financeiras do sistema vigente, promovendo, na maioria das vezes, o consumo como uma forma de lazer.


Considerações finais

    Não pretendo concluir este artigo estabelecendo verdades, conceitos ou opiniões fechadas. Apenas entendo que deveríamos refletir sobre essa avalanche a qual somos devorados quase sem perceber. Não sou contra o consumo em si mas penso que a reflexão sobre o processo de coisificação que sofremos por nos constituirmos apenas em mercado consumidor para os grandes conglomerados do sistema, é necessária porque somos muito mais que isso, somos humanos. Caso os tecnocratas se esqueçam desse detalhe, nós é que não devemos esquecer.

    A capacidade de convencimento empregado pelo sistema capitalista mostra-se um tanto eficaz, visto que, consegue integrar os mais diversos segmentos da sociedade, sejam eles privilegiados, sejam desfavorecidos que objetivam ser privilegiados. Através de um "racionalismo hedonista", o sistema se sustenta em meio a crises provocadas pelo mesmo e que se constituem na grande alavanca de manutenção econômica do establishment.

    Lima (2000) frisa "o capitalismo fundamenta-se numa modalidade de razão dirigida. Seu racionalismo se apóia no desenvolvimento das operações contábeis [...] a racionalização da contabilidade é o pressuposto do equilíbrio de uma empresa" (p.35).

    O lazer, como um dos pilares de sustentação do modelo, manifesta-se como sinônimo de felicidade desde que, para isso, haja um considerável investimento financeiro, onde fica assegurado o direito de ser feliz e descansar em paz. Assim, o direito ao lazer transforma-se em mercadoria, bem como tudo o que possível mercantilizar.


Referências:

  • ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. A industria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. In: LIMA, L.C. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

  • DE MASI, D (org.). A economia do ócio. 2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.

  • DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

  • ENGELS, F. & MARX, K. Manifesto do partido comunista. Disponível em: http://www.refazendome.cjb.net (23/04/2003).

  • FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

  • ISAYAMA, H.F. & WERNECK, C.L.G. Lazer, cultura, indústria cultural e consumo. In: ISAYAMA, H.F., STROPPA, E.A. & WERNECK, C.L.G. Lazer e Mercado. Campinas: Papirus, 2001.

  • LAFARGUE, P. Um dogma desastroso. In: DE MASI, D. A economia do ócio. 2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.

  • LAZARSFIELD, P.F. & MERTON, R.K. Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social. In: LIMA, L.C. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

  • LIMA, L.C (org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

  • MENDO, A.H. Acerca del ocio, del tiempo libre y de la animación sociocultural. Lecturas: Educación Física y Deportes, Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n. 23, jul/2000. Disponivel em http://www.efdeportes.com (15/02/2003).

  • MUNNÉ, F. Psicosociología del tiempo libre. México: Trillas, 1980.

  • PADILHA, V. Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito. Campinas: Alínea, 2000.

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