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Concepções de corpo na graduação em educação física:
um estudo preliminar com professores

   
Profa. Assistente da EEFD/UFRJ; Doutoranda em Educação (FE/UFRJ)
Rio de Janeiro - RJ
 
 
Sílvia Maria Agatti Lüdorf
sagatti@rio.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
    O movimento e, conseqüentemente, o corpo, constituem a matéria-prima da Educação Física. O curso de graduação é um espaço importante para a construção da fundamentação teórico-prática que subsidiará a atuação do professor. Daí a importância, e este é o objetivo deste trabalho, de se conhecer as concepções de corpo que os docentes possuem. Tradicionalmente, o corpo tem sido visto na Educação Física de forma fragmentada. Foi feito um estudo preliminar, onde foram aplicados questionários a professores de um curso de graduação em Educação Física. Os resultados indicam uma tendência de modificação acerca das concepções de corpo.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 66 - Noviembre de 2003

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Considerações introdutórias

    Normalmente, a área bio-médica tem tratado o corpo a partir de parâmetros da técnica, da racionalidade e da fragmentação, no sentido de projetar o corpo perfeito e saudável, protótipo da sociedade capitalista contemporânea (SILVA, 1999; 2002). Entretanto, faz-se necessário tratá-lo além da perspectiva de objeto. Entendê-lo como sujeito e como totalidade é um dos grandes desafios que as ciências humanas e sociais nos impõem.

    O movimento e, conseqüentemente, o corpo, constituem, por excelência, a matéria-prima da Educação Física. Lidar com o ser humano implica em considerá-lo sob variados aspectos, entendê-lo como um processo constante de construção sociocultural. Em outros termos, os conteúdos da Educação Física implicam em ideologias, valores e representações histórico-culturais que devem ser cuidadosamente considerados e discutidos.

    A Educação Física, embora possua interfaces com as áreas biológica e exatas, tem a sua base na Educação, no ato pedagógico. Trabalha, sobretudo, em interação constante com o corpo que, por sua vez, é expressão da cultura. Bracht (1989) argumenta que o movimento que confere especificidade à Educação Física é aquele com determinado sentido/significado, que, por sua vez, lhe é conferido pelo contexto social.

    Consideramos fundamental, e este é o objetivo do presente trabalho, conhecer de que forma os professores universitários de cursos de graduação em Educação Física compreendem o corpo e lidam com o mesmo. Argumentamos que o curso de graduação é um espaço privilegiado para se trabalhar a formação do professor crítico, pois ali são depositadas as sementes que constituirão a base de sua prática para lidar com o corpo.

    Não é de hoje, alguns autores sugerem haver um certo reducionismo na área de Educação Física que se reflete no processo de formação de professores e na produção científica (SOARES, 1990; FARIA JR., 1999; LÜDORF, 2002; SILVA, 2001). Muniz (1996) argumenta que alguns discursos ainda estão limitados aos muros acadêmicos.

    A linguagem predominantemente biológica utilizada pela Medicina do Esporte, conforme Silva (2001), poderia ser exemplar quanto à forma como o corpo é representado nas ciências biomédicas (e aí estaria incluída a própria Educação Física).

    A hipótese que norteia este trabalho é de que os professores de cursos de graduação de Educação Física ainda sustentariam uma concepção fragmentada de corpo, havendo uma lacuna quanto ao seu entendimento como prática sociocultural.

    A seguir, apresentaremos brevemente alguns aspectos históricos relacionados ao corpo na Educação Física para, posteriormente, comentar os dados da pesquisa de campo.


O corpo na trajetória histórica da Educação Física Brasileira

    A Educação Física compreende uma área de atuação ampla, a qual dividiremos em dois segmentos básicos para melhor compreensão: formal (trabalho em escolas) e não formal (academias, clubes, hospitais, espaços de lazer etc).

    No contexto escolar, são muitas as formas como a Educação Física tratou, trata e vem tratando o corpo. Estas variações encontram explicações, nem sempre conclusivas, nas diversas influências sofridas, assim como no diferente contexto histórico-político-social de cada época, como poderá ser observado.

    A influência médico-higienista ou biológica (MEDINA, 1989; GHIRALDELLI JR., 1992; CASTELLANNI FILHO, 1988) enfatizava a busca do corpo saudável, com bons hábitos higiênicos e livre de doenças. A tendência militarista (BRACHT, 1989; BRACHT e MELLO, 1992) contribuía para a constituição do corpo disciplinado, submisso a ordens, apto física e moralmente. A corrente bio-psicológica, reforçada principalmente pela incorporação dos discursos da Psicomotricidade, destaca o aspecto psicomotor do desenvolvimento do corpo, em articulação com o cognitivo e o afetivo (SOARES, 1990). A influência desportiva (BRACHT, 1989; RESENDE, 1994) constitui-se em uma das mais significativas em virtude da projeção mundial alcançada pelo fenômeno esportivo. Nesta, privilegia-se o corpo forte, rápido, ágil, vencedor e, acima de tudo, competitivo. Finalmente, a influência das concepções críticas da Educação (RESENDE, 1994; GHIRALDELLI JR., 1992; COLETIVO DE AUTORES, 1992), que intentam a formação do corpo cidadão, crítico, autônomo e politizado.

    Em relação à Educação Física não escolar, o corpo tem sido tratado na perspectiva técnica, de aprendizagem de habilidades específicas a um esporte, podendo apresentar um caráter lúdico e recreativo ou de rendimento, com fins competitivos. Outro aspecto refere-se à saúde e qualidade de vida, traduzidos na procura cada vez maior pelas atividades físicas, valorizando-se o corpo saudável. Aliado à saúde, mas nem sempre, há a questão estética, ou seja, a ênfase em um padrão corporal, geralmente associado à magreza e à musculatura definida.

    Diante das diversas concepções de corpo apresentadas, ressaltamos que todos estes aspectos podem ainda estar presentes na Educação Física. Longe de criticar professores que enfatizem um ou outro aspecto, o que pretendemos discutir é que, independente da orientação teórico-prática do docente, a natureza da intervenção no corpo é sempre sociocultural e, por conseguinte, pedagógica. A visão reducionista do profissional, muitas vezes reconhecido como mero instrutor de habilidades, necessita ser superada em direção à postura de educador.

    Libâneo (2001) afirma que:

[...] há uma dimensão pedagógica da educação física em todos os lugares em que ela acontece: nas escolas, nos clubes esportivos, nas academias de ginástica, no turismo etc. Tais atividades físicas e esportivas implicam uma ação pedagógica: na explicitação de objetivos sóciopolíticos e pedagógicos, na condução pedagógica da formação física, no sucesso escolar que os alunos demonstram nas atividades físicas. (p. 5)

    Compactuamos com a idéia proposta por Libâneo (op. cit.), de que a ação pedagógica ocorre independente do campo em que o professor de Educação Física atue. Isto significaria compreender o corpo em uma perspectiva cultural, como algo a ser construído e moldado não apenas pela mídia e cultura, mas também, pelas mãos do professor que com ele interage, como é o caso do professor de Educação Física.


Primeiras aproximações ao campo

    Com a intenção de fazer as primeiras aproximações sobre como os professores universitários de Educação Física tratam/lidam com o corpo, elaboramos um questionário com perguntas abertas, como primeiro instrumento de coleta de dados. O mesmo foi aplicado inicialmente a dez professores pertencentes a um curso de graduação em Educação Física de uma universidade pública do Rio de Janeiro. A seleção dos sujeitos foi feita no sentido de englobar profissionais de disciplinas e perfis acadêmico-profissionais diversificados. Os resultados serão discutidos a seguir.

    Para apresentar e analisar os dados obtidos, optamos por elaborar uma espécie de continuum, no qual os professores se situariam, visualizado da seguinte forma:

    O corpo "fragmentado" seria a compreensão do corpo de forma reducionista, visando primordialmente aspectos aspectos técnicos ou biológicos. O corpo "sociocultural ou político" compreenderia uma visão crítica do corpo e do seu papel na sociedade. Ambos estariam nas extremidades do continuum. Nas posições intermediárias (corpo "intermediário" ), o corpo é visto como um todo integrado (corpo-mente), entretanto, desconsiderando os aspectos socioculturais que o marcam e influenciam.

    Com relação às concepções de corpo, os sentidos à ele atribuídos pelos professores poderiam ser assim distribuídos:


Quadro 1. Concepções de corpo.

    Quanto à forma como cada professor vê ou entende o corpo no âmbito da Educação Física, obtivemos as seguintes respostas:



Quadro 2. A visão de corpo na Educação Física.

    Em relação ao modo como cada professor lida com o corpo em sua disciplina, obteríamos o seguinte:


Quadro 3: O corpo trabalhado nas disciplinas ministradas.

    Diante da suspeita anteriormente mencionada de que as concepções e o trato do corpo variariam em função da disciplina que o professor ministra, de sua formação e de suas atividades profissionais, estas primeiras aproximações apresentam os seguintes indícios:

  1. No extremo reducionista do continuum situam-se os professores das áreas de desporto e biomédicas que desenvolvem trabalhos também extra-universidade em clubes ou condomínios. Neste caso, parece que o fato de ter feito pós-graduação não interfere e, sim, a área de aprofundamento escolhida.

  2. Os professores considerados "críticos" coincidentemente ministram disciplinas ligadas à Educação Física escolar e à Epistemologia, atuam na área de ginástica e são mestres e/ou doutores.

  3. Na posição intermediária situaram-se os professores das áreas de Arte Corporal e História.

  4. Embora os professores tenham se distribuído de forma equilibrada nas três posições do continuum, alguns professores podem ser praticamente "classificados", enquanto outros flutuam ora nas extremidades, ora nas posições intermediárias. Este fato pode refletir ainda uma certa discordância entre o referencial teórico e a prática de cada um ou ainda as limitações do instrumento utilizado.


Considerações finais

    Este estudo preliminar permite que apresentemos alguns indicativos de conclusão, que podem ou não representar a realidade de outras universidades, havendo a necessidade de maior aprofundamento. É possível depreender que, neste caso, está havendo uma evolução nas concepções de corpo dos professores que formam os futuros profissionais da Educação Física, já que a visão reducionista que era praticamente dominante na área, continua valorizada, mas não é a única.

    A visão crítica, que considera o corpo em sua realidade sociocultural está presente, principalmente nos professores que, a priori, teriam acesso aos discursos sociopedagógicos decorrentes do aprimoramento acadêmico ou da natureza das disciplinas ministradas. A hipótese inicial de que os professores universitários ainda sustentariam uma concepção de corpo fragmentado não foi confirmada. Os resultados demonstraram que outras perspectivas somam-se a esta representando uma alternativa ao corpo biológico que sempre foi marcante na Educação Física.


Referências

  • BRACHT, Valter. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. Rev. da Educ. Física/UEM, Maringá, v.1, n.1, p. 12-18,1989.

  • BRACHT, Valter; MELLO, Rosângela A. Educação Física: revisão crítica e perspectiva. Rev. da Educação Física/UEM, Maringá, v.3, n.1, p. 03-12, 1992.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. São Paulo: Papirus, 1988.

  • COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.

  • DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. 4.ed. Campinas/SP: Papirus, 1999.

  • FARIA JÚNIOR, Alfredo G. Formação profissional em Educação Física. In: MOREIRA, Wagner W. (org.) Educação Física & Esportes: perspectivas para o século XXI. 3.ed. Campinas, SP: Papirus, 1999.

  • FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

  • GHIRALDELLI Jr., Paulo. Educação Física Progressista: A Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos e a Educação Física. São Paulo: Loyola, 1992.

  • LIBÂNEO, J.C. A prática pedagógica da Educação Física nos tempos e espaços sociais. Rev. Bras. Ciências do Esporte, Florianópolis, CD- Rom (Anais XII CONBRACE), Set/2001.

  • LÜDORF, S. M. A. Panorama da pesquisa em Educação Física da década de 90: análise dos resumos de dissertações e teses. Revista da Educação Física/UEM, Maringá, v. 13, n. 2, p. 19-25, 2. sem., 2002.

  • MEDINA, João P. S. A Educação Física cuida do corpo e... "mente". 8 ed. Campinas/P: Papirus, 1989.

  • MUNIZ, Neyse L. Influências do pensamento pedagógico renovador da Educação Física: sonho ou realidade? Rio de Janeiro, 1996. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Centro de Educação Física, Universidade Gama Filho.

  • SILVA, A. M. A razão e o corpo do mundo. Rev. Bras. de Ciências do Esporte, Florianópolis, v.21,n.1, set/1999.

  • _________. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas, SP: Autores Associados; Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.

  • SOARES, Carmem L. Fundamentos da Educação Física escolar. Rev. Bras. de Est. Pedagógicos, Brasília 71(167), p. 51-68 , jan-fev/1990.

  • _________. Educação Física escolar: conhecimento e especificidade. Rev. Paul. de Educ. Fis., São Paulo, supl. 2, p.6-12, 1996.

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