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A organização do trabalho pedagógico na formação continuada em
Educação Física escolar: para além do paradigma conservador

   
Mestrando em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)
(Brasil)
 
 
Wanderson Ferreira Alves
wandersonfalves@yahoo.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
    O objetivo deste estudo é analisar a organização do trabalho pedagógico desenvolvida em duas recentes experiências de formação continuada na área da Educação Física escolar. As experiências de formação continuada que constituem objeto de análise são os estudos produzidos por Alves (2002) e Molina & Molina Neto (2001). O primeiro discute a formação docente que foi oferecida em ocasião do desenvolvimento do Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Goiás; enquanto o segundo discorre sobre a formação continuada no contexto da "Escola Cidadã", em Porto Alegre. Para concretização do objetivo proposto optou-se por analisar a organização do trabalho pedagógico através das categorias indicadas por Freitas (1995). Segundo este autor, o trabalho pedagógico é permeado pelos pares dialéticos: objetivos / avaliação e conteúdo / método. Tal procedimento mostrou-se interessante e permitiu colocar em evidência as diferentes perspectivas que orientam as práticas de formação continuada em questão - uma marcada pela racionalidade técnica e pela produção de um profissional tutelado; outra caracterizada pela valorização do professor e pela busca de desenvolver a autonomia docente.
    Unitermos: Educação Física escolar. Formação continuada. Trabalho pedagógico.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 64 - Septiembre de 2003

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Introdução

    O objetivo do presente estudo é analisar a organização do trabalho pedagógico desenvolvida em duas recentes experiências de formação continuada na área da Educação Física escolar. O intuito é de evidenciar que na organização do trabalho pedagógico as instituições formadoras delineiam um paradigma de formação do professor resultante do corte epistemológico que (conscientemente ou não) realizam, bem como suas repercussões para o desenvolvimento profissional docente.

    As experiências de formação continuada que constituem objeto de análise são os estudos produzidos por Alves (2002) e Molina & Molina Neto (2001). O primeiro discute a formação docente que foi oferecida em ocasião do desenvolvimento do Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Goiás; enquanto o segundo discorre sobre a formação continuada no contexto da "Escola Cidadã", em Porto Alegre. Ambos os trabalhos enfocam os professores de Educação Física.

    Para concretização do objetivo proposto optei por analisar a organização do trabalho pedagógico, expressa nos estudos acima referidos, através das categorias indicadas por Freitas (1995). Segundo este autor o trabalho pedagógico é permeado pelos pares dialéticos: objetivos / avaliação e conteúdo / método.

    O texto está dividido em três momentos distintos: primeiramente procuro esclarecer alguns conceitos e situar com qual perspectiva enfocarei a formação continuada investigada; em seguida apresento os estudos de Alves (2002) e Molina & Molina Neto (2001), analisando a formação continuada descrita por estes autores a partir da organização do trabalho pedagógico; depois trago uma síntese do que foi observado, procurando evidenciar os paradigmas que permearam as duas práticas formativas estudadas e também abordar o problema da dificuldade de implantação de perspectivas inovadoras em nosso contexto.


Algumas questões preliminares

    Quando uma instituição elabora determinado projeto ocorre uma separação entre os elementos que considera fazer sentido e os que não considera. Com isso as instituições organizam o conhecimento balizadas por uma concepção de mundo ligada a forma com que os sujeitos ali envolvidos vêem e apreciam a realidade. Nas instâncias onde o conhecimento é produzido é a comunidade científica quem o organiza de modo coerente e de forma a produzir sentido.

Na base de todo conhecimento científico existiria então um corte, realizado por uma opção humana e social, segundo o projeto dessa opção para o conhecimento. Esse corte faz uma separação entre os conceitos que formam um conjunto coerente e aqueles que não lhes dizem respeito, construindo assim uma opção definidora do objeto da ciência. Essa ação é realizada pela comunidade científica (WACHOWICZ, 2002, p. 17).

    Isso resulta em conseqüências importantes para a educação. A opção humana e social a que a autora se refere envolve uma dimensão ética e política. É ação que repercute sobre a vida das pessoas, afinal, sempre é bom lembrar que a educação é um projeto social.

    A comunidade científica, como mostra Wachowicz (2002), na prática realiza um recorte teórico - recorte esse epistemológico - que evidencia uma escolha paradigmática, entendendo este como a interpretação teórica de um projeto. A importância do paradigma escolhido é tanta que os próprios métodos a serem adotados pelas instituições serão norteados por ele. A repercussão disso para o campo da formação de professores é enorme e engendra diversas concepções de educação do professor. Assim, quando uma instituição elabora seu projeto toda uma opção epistemológica é realizada. Isto implica uma visão do papel da ciência, do professor, da universidade, da pesquisa, da formação, enfim, a opção implica uma forma de entender a realidade e agir nela.

    Nesse sentido é que este estudo busca, através da análise da organização do trabalho pedagógico de duas experiências de formação continuada1, perceber por meio de que corte de mundo elas se efetivam. O modo como as instituições formadoras desenvolvem seu trabalho pedagógico parece ser um aspecto central para a compreensão do horizonte da educação - conservadora ou emancipadora - desenvolvida. Faz-se, então, necessário uma análise acurada desse trabalho pedagógico e a opção é pela contribuição de Freitas (1995).

    Como mostra o referido autor, a organização do trabalho pedagógico envolve a existência de categorias que modulam o processo. Freitas (1995) nos estudos que realizou observou que são quatro essas categorias e que elas interagem na forma de pares dialéticos, a saber: objetivos / avaliação e conteúdo / método. Esses pares dialéticos não têm todos igual peso dentro do trabalho pedagógico e ao que tudo indica é o par objetivos / avaliação que se configura central e orientador do par conteúdo / método. São as categorias propostas por Freitas (1995) que utilizarei como ferramentas para investigar a perspectiva de formação continuada das experiências de formação objeto de análise. Isto posto, é importante agora situar a concepção de formação docente defendida neste estudo.

    As contradições sociais e as tensões surgidas no plano concreto das instituições em sua relação com o contexto social produzem formas de conceber a formação docente nem sempre condizentes com a melhoria efetiva dessa profissão. O que ocorre é que a formação do professor é muitas vezes percebida de modo estreito e na perspectiva da racionalidade técnica. Esse tem sido o modelo tradicional de formação profissional dos docentes e a isto denomino de paradigma conservador. Nele a resolução de problemas práticos do cotidiano é desvalorizada em detrimento de um "conhecimento geral" ao mesmo tempo em que os professores tornam-se aplicadores dos saberes produzidos pelos especialistas externos à escola. Não é esta a perspectiva de educação do professor que defendo.

    Diversos autores que discutem a formação de professores, como Nóvoa (1991, 1992), Zeichner (1992, 1998), Tardif (s.d , 2002), Veiga (2002) e outros, têm apontado a importância que se reveste o campo da docência e indicado a necessidade de se valorizar práticas formativas que contribuam para a construção de professores de profissão que sejam autônomos e capazes de refletir criticamente sobre sua prática e a realidade social. A perspectiva de formação do professores que orienta este estudo vai no sentido indicado por esses autores. É nesse âmbito que está o paradigma emancipador. A idéia é de formar o professor como um profissional, mas um profissional no sentido forte do termo.

Se assumirmos o postulado de que os professores são atores competentes, sujeitos ativos, deveremos admitir que a prática deles não é somente um lugar de aplicação de saberes provenientes da teoria, mas também um espaço de produção de saberes específicos oriundos da mesma prática (...). Essa perspectiva equivale a fazer do professor - tal qual ao professor universitário ou o pesquisador da educação - um sujeito do conhecimento, um ator que desenvolve sempre teorias, conhecimentos e saberes de sua própria ação (TARDIF, 2002, p. 234-235).

    Dessa forma a horizonte da prática formativa passa a evidenciar uma dimensão inovadora e alinhada àquilo que Habermas (1975) denomina de interesse emancipatório, em oposição ao interesse técnico e prático2. Assim, para além de formar professores que dominem bem o conteúdo ou sejam tecnicamente bons executores dos processos pedagógicos preconizados pelos especialistas, o desejo é formar o profissional capaz de posicionar-se e agir criticamente no âmbito social geral e nos contextos onde atua.


A formação continuada e a organização do trabalho pedagógico: análise de duas experiências na Educação Física escolar

    Nesse momento do texto analisarei os estudos de Alves (2002) e Molina & Molina Neto (2001), procurando enfocá-los a partir da organização do trabalho pedagógico que expressam.

    O primeiro estudo trata de um trabalho realizado por mim, onde procurei investigar a perspectiva de formação continuada oferecida aos professores de Educação Física pertencentes ao Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Goiás. Esse projeto foi implementado pela Secretaria Estadual de Educação de Goiás (SEE/GO) e contou com a parceria de uma instituição denominada CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária).

    Para a concretização do projeto de aceleração da aprendizagem foi necessário formar um quadro de professores que estivesse a par da proposta do projeto e pudesse aplicá-la em sua prática pedagógica. Foram organizados encontros periódicos3 para a "capacitação" dos professores. O modelo de formação desenvolvido seguia a idéia do professor multiplicador, ou seja, um professor especialista na área e especialmente designado pela SEE/GO faz o curso de capacitação promovido pelo CENPEC e quando retorna faz os repasses de conhecimento aos professores de sua respectiva área nos cursos cursos de capacitação para os professores da rede vinculados ao programa. Tal perspectiva encontra sérios limites pelo fato de fragmentar o conhecimento e impor uma apropriação parcelar justamente aos docentes que em sua prática pedagógica cotidiana precisam do entendimento ampliado das questões educativas.

    Em relação ao recurso metodológico utilizado para que os professores se apropriassem da proposta, nota-se visivelmente um viés conservador manifesto em uma proposta organizada em sentido vertical. Os professores encontraram tudo pronto, era apenas consumir, até mesmo as aulas. Os modelos de aulas vinham com o tema, alvos a serem atingidos, o que fazer, como fazer e avaliar. Cabia ao professor executar.

    Um ponto também importante a ser assinalado na preparação dos professores para atuar no projeto e que diz respeito especificamente a Educação Física, foi o fato dos elaboradores da formação, ou seja, o CENPEC, não terem atentado para a abordagem da Educação Física em que são formados os professores desta disciplina em Goiás. Dessa forma, o que se pode perceber é que a proposta do CENPEC é de cunho desenvolvimentista, portanto, não congruente com a concepção orientadora das mais significativas instituições de formação de professores de Educação Física em Goiás: a Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia de Goiás da Universidade Estadual de Goiás (ESEFFEGO/UEG) e a Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás (FEF/UFG). Estas instituições orientam seus cursos no eixo da perspectiva da cultura corporal e da teoria crítica da educação4.

    Após ter procurado mostrar em linhas gerais a formação continuada para os professores participantes do projeto de aceleração da aprendizagem em Goiás, é possível tentar analisá-la sob a luz dos pares dialéticos constituintes da organização do trabalho pedagógico propostos por Freitas (1995). Tendo como princípio que o par objetivo / avaliação norteia todo o processo é possível perceber que os objetivos da prática formativa descrita correspondem a formar um professor que seja um bom implantador de idéias produzidas por especialistas. Objetiva-se a formação de um técnico capaz de aplicar racionalmente o saber aprendido e toda a formação vai nessa direção ao passo que instâncias de controle são acionadas para que esse objetivo seja atingido. Estamos no campo da avaliação - talvez a categoria mais importante na escola sob o capitalismo - e é a partir de sua característica de controle e coerção que se nota a necessidade dos professores irem aos encontros de capacitação oferecidos parcelarmente ao longo do ano, receberem as aulas e cada frase a ser dita de modo previamente elaborado ou ainda receberem visitas periódicas na escola de especialistas da SEE, que vem fiscalizar o andamento do projeto. A avaliação aqui tem sentido de controle e lembra sempre ao professor qual sua posição nas relações de poder, como também colabora para a perpetuação dessas mesmas relações.

    Por sua vez o par dialético conteúdo / método informa que em relação ao conteúdo da formação realizada ele constituiu-se de saberes previamente definidos e organizados. Uma construção abstrata e que não levou em consideração as diferenças pessoais e as específicas necessidades dos professores. Exemplo claro foi trazer um corpo de conhecimentos pertencentes a uma abordagem da Educação Física pouco compatível com a formação de professores de Educação Física em Goiás. A categoria do método, por conseguinte, expressou uma formação fundada na transmissão e na assimilação passiva. Uma metodologia prescritiva e normativa, capaz de dar conta de conteúdos abstratos e cumprir o objetivo proposto. Uma formação organizada por uma empresa terceirizada (CENPEC) e que lança mão de meios como aulas prontas e cursos parcelados, vai justamente nessa direção. Isto posto, irei agora trazer a perspectiva de formação docente presente no estudo de Molina & Molina Neto (2001).

    Os autores em questão mostram um estudo que trata da formação continuada desenvolvido no contexto da "Escola Cidadã"5 e focalizam particularmente a Educação Física. Apontam que as profundas mudanças curriculares que foram realizadas no início dos anos 90 impuseram a necessidade da formação permanente para os professores da rede municipal de Porto Alegre. O intuito era criar uma escola que fosse um importante espaço para a construção da cidadania. Assim, de acordo com Molina & Molina Neto (2001), a "Escola Cidadã" é pautada na gestão democrática, na ação docente crítica, no trabalho coletivo e na implementação de um currículo interdisciplinar. É nesse quadro que se fez importante a formação continuada, afim de que se garantisse um adequado trabalho pedagógico e o diálogo entre as disciplinas.

    A formação continuada que aqui é objeto de análise trata de um curso oferecido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (SMED/PMPA). O curso teve um total de 40 horas e contou como participantes os professores da rede municipal de educação da área da Educação Física. O título do curso foi inspirado em Paulo Freire, chamou-se "A prática de investigar a própria prática".

    Partindo de uma relação de parceria entre os docentes da universidade e os das escolas o curso propunha uma elaboração crítica que contribuísse para dar mais autonomia aos professores participantes. Buscou-se refletir sobre a especificidade da Educação Física e sua contribuição no projeto político-pedagógico, dando espaço para que os docentes discutissem sua prática. Daí foram retirados alguns conteúdos programáticos:

  • Teoria geral da Educação Física;

  • Ética e atividade física;

  • Educação Física e rendimento esportivo;

  • Diretrizes atuais da Educação Física;

  • Cultura docente dos professores de Educação Física;

  • Ensino e pesquisa na sala de aula: etnografia educativa;

  • Prática pedagógica: inclusão, participação e colaboração;

  • Esportes coletivos didaticamente adaptados.

    A busca por colaborar na formação de profissionais autônomos levou a instrumentalizar os professores com os recursos teórico-metodológicos da pesquisa, particularmente a etnografia escolar. Este aspecto, segundo Molina & Molina Neto (2001), foi enfatizado por possibilitar aos professores não só sistematizar o que fazem nas aulas, mas também por lhes darem os meios de organizar temas e conceitos a serem trabalhados, já que é da prática vivenciada pelo professor que eles emergem. Tendo caracterizado em linhas gerais a perspectiva da formação continuada de professores de Educação Física da rede municipal de Porto Alegre descrita por Molina & Molina Neto (2001), procederei agora a análise a partir da organização do trabalho pedagógico desenvolvido.

    Utilizando novamente as categorias de Freitas (1995) em relação à organização do trabalho pedagógico é possível detalhar melhor a prática formativa efetivada. A formação continuada que trazem Molina & Molina Neto (2001) expressa que o objetivo proposto é de organizar um processo em que os professores sejam os produtores dos saberes que utilizam em sua prática pedagógica. Este objetivo pauta todo o trabalho pedagógico realizado no curso e juntamente com a categoria da avaliação delineia a perspectiva da formação instituída. A categoria da avaliação aqui não parece ter o mesmo sentido de coerção e controle que no estudo anterior. Na verdade a avaliação passa a ser uma prática muito mais ligada a informar os sujeitos envolvidos no processo do que em punir. Ela passa a ter uma função formativa.

    Em relação ao outro par dialético constituído pelas categorias conteúdo / método o que se nota é que os conteúdos passam a compor o processo de formação a partir das necessidades concretas dos professores. São saberes originados da prática que são reelaborados, como também são conhecimentos provenientes das ciências da educação e da própria área específica, no caso a Educação Física. Enfim, não há uma seleção abstrata do conhecimento a ser transmitido. Por sua vez o método adotado teve como parâmetro a idéia de parceria entre professores universitários e professores da rede, o que delineou uma organização metodológica orientado pela troca de conhecimentos, pelo diálogo e pela busca do desenvolvimento profissional.


Para além do paradigma conservador

    Após ter procurado realizar uma avaliação acurada das linhas básicas da organização do trabalho pedagógico das duas experiências de formação continuada analisadas, é possível perceber o horizonte da educação do professor que ambas estabelecem. A formação desenvolvida para os professores do Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Goiás, aproxima-se do modelo da racionalidade técnica, onde o professor é um profissional tutelado, reprodutor do saber elaborado por especialistas. Em contrapartida, a formação continuada desenvolvida com os professores da "Escola Cidadã", alinha-se a um modelo de formação que concebe o professor como um trabalhador que não só aplica saberes em sua prática, mas também os produz.

    As duas perspectivas são sustentadas por paradigmas diferentes, originados do corte epistemológico que as respectivas instituições organizadoras da prática formativa realizaram. Assim, tem-se um paradigma conservador e um emancipador, consubstanciados no modo como o trabalho pedagógico é concretizado. Recorrendo a Habermas (1975), pode-se perceber que a formação continuada descrita e analisada por Alves(2002) é fortemente permeada pelo interesse técnico-instrumental, ao passo que a formação continuada trazida por Molina & Molina Neto (2001) expressa um interesse predominantemente emancipatório. Aqui convém perguntar se no âmbito da política educacional e de Governo em que ocorreram as duas experiências de formação continuada não existiriam condições que facilitariam o desenrolar de um ou outro paradigma? Seria esse um fator determinante?

    Nesse aspecto entendo que a concepção política dos que governam e o projeto de seu respectivo partido são aspectos muito importantes, pois, pelo menos em princípio, em uma administração de caráter popular as chances de implementação de ações voltadas à população majoritária tendem a serem maiores. Contudo, este fato não explica por si mesmo a perspectiva mais avançada de determinadas propostas, como o caso da formação continuada ocorrida para os professores de Educação Física no contexto da "Escola Cidadã", em Porto Alegre. O motivo é que os passos à diante e as conquistas obtidas pelos trabalhadores não são espaços cedidos de "coração aberto" pelos dominantes, mas espaços obtidos por lutas e resistências. Em relação à educação não é diferente. Os professores, acadêmicos ou das escolas, e suas entidades representativas não estão do lado de fora e sim do lado de dentro. Eles estão martelando por dentro do sistema e acabam por forçar, mesmo que lentamente, o processo de mudança. As práticas inovadoras e que avançam no campo educativo não surgem naturalmente.

    Implicações importantes para a educação são daí decorrentes e se é verdade uma antiga formulação segundo o qual os homens fazem sua própia história, uma tarefa necessária e urgente é ampliar os espaços das práticas formativas que valorizem o paradigma emancipador. Isto envolve uma dimensão ética e política da qual as instituições formadoras, docentes universitários e das escolas e suas entidades representativas, não podem se esquivar.

    Por último, penso que é importante ao enfocar a questão da formação de professores e da implementação de práticas inovadoras levar em consideração as palavras de Bernard Charlot, proferidas em conferência na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás em 2001. Referindo-se ao tema do evento (Sociedade, Educação e Emancipação: desafios e perspectivas), ele assim se pronunciou: É preciso ter cuidado com discursos amplos demais, precisamos fazer recortes menores... já estou velho, quero mudar alguma coisa. Ora, freqüentemente nos deparamos com discursos muito bem elaborados - e por vezes nós mesmos os fazemos - capazes de fazer uma revolução no papel. Tais discursos guardam distância do cotidiano docente e é em sentido inverso a essa perspectiva que alguns estudos sobre o professor, seu cotidiano e seu trabalho têm surgido.

    São estudos que, sem abdicar da análise crítica e do sólido fundamento teórico, procuram abordar a docência por dentro e chegar ao contexto da prática profissional. Os trabalhos que lidam com a pesquisa-ação6 e/ou investigam os saberes que os professores mobilizam em sua prática7 têm esse mérito. Aprofundar essa perspectiva de compreensão e análise da docência e reverter isso para as práticas de formação inicial e continuada, subsidiando o modo como as instituições organizam seu trabalho pedagógico, parece ser um caminho, no mínimo, interessante. Quem sabe assim, como disse Charlot, possamos fazer "recortes menores".


Notas

  1. A formação continuada é a formação que ocorre posterior a formação inicial que o professor recebe (preferencialmente) na universidade. A formação continuada pode ser composta por cursos de pequena duração, seminários, cursos de especialização e outras modalidades, podendo até o próprio contexto de trabalho constituir-se em uma instância formativa - a depender do paradigma adotado.

  2. O interesse técnico para Habermas relaciona-se ao modelo da racionalidade técnica e a razão instrumental, onde a ciência passa a ser uma alavanca de intervenção e explicação do mundo vivido; o interesse prático relaciona-se a um modelo hermenêutico ou antropológico, onde objetiva-se interpretar o mundo vivido e utilizar isso como um orientador da ação; o interesse emancipatório visa a libertação e a autonomia dos sujeitos, onde estes cheguem a um conhecimento emancipador que os permita compreender as determinações sociais, culturais e políticas do mundo social e agir sobre ele.

  3. No ano de 2001 foram realizados 5 encontros de capacitação.

  4. Sobre as proposições teóricas na Educação Física consultar Castellani Filho (1998).

  5. A "Escola Cidadã" é como se denominou a partir do início dos anos 90 a organização escolar da rede municipal de Porto Alegre (RS).

  6. Entre os estudiosos da pesquisa-ação um dos autores mais conhecidos é John Elliott (1998). Segundo ele a pesquisa-ação tem sua gênese na ação colaborativa entre professores universitários e professores das escolas inglesas ao final da década de 60, visando inovar o currículo. A idéia central é fazer avançar o ensino a partir do desenvolvimento profissional docente que ocorre nos processos de investigação, reflexão e ação no contexto das escolas.

  7. No âmbito da pesquisa sobre os saberes docentes o estudioso mais conhecido no Brasil talvez seja Maurice Tardif (2002). Para esse autor os professores em sua prática mobilizam diversos saberes ( disciplinares, curriculares, profissionais e experiências) construídos ao longo de sua trajetória pessoal e profissional. Tal perspectiva tem logrado espaço nos debates educacionais brasileiros a partir da década de 90.


Referências

  • ALVES, W. F. Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Goiás: o caso da Educação Física. Comunicação apresentada no XI Simpósio de Estudos e Pesquisas Educacionais da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2002.

  • ELLIOTT, J. Recolocando a pesquisa-ação em seu devido lugar e próprio.In: GERALDI, C. M. G. (org). Cartografias do trabalho docente: professor (a) - pesquisador (a). Campinas: Mercado das Letras, 1998.

  • FIORENTINI, D. et al. Saberes docentes: um desafio para acadêmicos e práticos. In:

  • GERALDI, C. M. G. (org). Cartografias do trabalho docente: professor (a) - pesquisador (a). Campinas: Mercado das Letras, 1998.

  • FREITAS, L. C. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas: Papirus, 1995.

  • HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Col. Os Pensadores).

  • MOLINA, R. K. & MOLINA NETO, V. O pensamento dos professores de Educação Física sobre a formação permanente no contexto da escola cidadã: um estudo preliminar. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas: Autores Associados, v. 22, n. 3, maio de 2001, p. 73-85.

  • NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

  • __________. Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1991.

  • TARDIF, M. et al. Formação de professores e contextos sociais: perspectivas internacionais. Porto: RES - editora, s/d.

  • ___________. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

  • VEIGA, I. P. A. Perspectivas para a formação do professor hoje. In: Anais do XI ENDIPE: Goiânia, 2002. CD - ROM.

  • WACHOWICZ, L. A. Educação, epistemologia e didática. In: ROSA, D. E. G. & SOUZA, V. C. (orgs). Didática e práticas de ensino: interfaces com diferentes saberes e lugares formativos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

  • ZEICHNER, K. Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: NÓVOA, A. Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

  • ____________ Para além da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador acadêmico. In: GERALDI, C. M. G. (org). Cartografias do trabalho docente: professor (a) - pesquisador (a) . Campinas: Mercado das Letras, 1998.

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revista digital · Año 9 · N° 64 | Buenos Aires, Septiembre 2003  
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