efdeportes.com
Comparação de opiniões de raparigas e de rapazes
de Viseu e do Território de Macau, quanto ao
género de jogos do recreio escolar

   
*Faculdade de Ciências do Desporto e
de Educação Física, Universidade do Porto
**Instituto Politécnico de Viseu
***Instituto Politécnico de Macau
 
 
Paula Botelho Gomes*
Ana Isabel Marques**
Manuela Nunes***

oliveiratavares@netvisao.pt
(Portugal)
 

 

 

 

 
    No seguimento de trabalhos anteriores (Botelho Gomes et. al, 1995; 1999), o objectivo deste estudo foi analisar se existem diferenças de opinião de raparigas e rapazes, de diferentes contextos culturais (Viseu e Território de Macau), de 6, 8 e 10 anos, quanto ao modo como percepcionam 5 jogos usuais no recreio escolar: se são apropriados ao género feminino, ao masculino ou a ambos os géneros.
    O estudo de 1995, realizado no Grande Porto, indicava que quando se comparam as respostas das raparigas e dos rapazes, apenas no futebol (aos 6 anos) e no jogo de saltar à corda/elástico (aos 10 anos) se evidenciavam diferenças de opinião estatisticamente significativas. No presente estudo pretendemos saber se a tendência daqueles resultados se verifica em Viseu e em Macau.
    Foi aplicado um questionário e os dados serão analisados numa tabela de contigência, recorrendo-se ao teste do qui-quadrado. Os níveis de significância foram estabelecidos em p < 0.05.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 63 - Agosto de 2003

1 / 1

1. Introdução

    Os recreios escolares e outros momentos de actividade motora não dirigida espelham facetas da cultura lúdica infantil. E se se trata de cultura, ela não é independente dos valores transmitidos e apreendidos socialmente.

    A socialização de raparigas e rapazes faz-se através de diferentes meios e em distintos contextos (a família, a escola, o núcleo de amigos e a comunicação social). Nas primeiras idades, o jogo e outros tipos de actividades são uma das vias fundamentais dessa socialização, para a qual parece não indiferente o facto de se ter nascido rapaz ou rapariga, ou nascido neste ou naquele contexto. Sendo o jogo um fenómeno multidimensional, ele é influenciado por factores geográficos, sociais e culturais.

    Nas interacções que se vão desenvolvendo confrontamo-nos com normas e valores socialmente definidos como sendo próprios para uma dada categoria sexual, criando-se assim os estereótipos de género. E isto parece ser verdade também para os jogos infantis.

    Desde bem cedo, os pais, amigos e professores reforçam positivamente certo tipo de actividades lúdicas tidas como desejáveis, criando condições para que elas se reproduzam, e julgam outras como inusitadas, tecendo muitas vezes comentários desencorajadores. Assim se vão configurando os chamados estereótipos de papéis de género, isto é, o que raparigas e rapazes devem "fazer" (Amâncio, 1994). Neste sentido, parece ser pacífico dizer-se que certas práticas socializadoras, mesmo as de infância, são diferentes para raparigas e rapazes. Isto também poderá querer dizer que as raparigas e os rapazes tenderão a expressar comportamentos e atitudes consoante as expectativas sociais.

    Segundo Amâncio (1994), os padrões de comportamento revelam o observável de um fenómeno que o senso comum designa por diferenças entre sexos. Mas, realce-se que, para além do que é observável, encontramos a influência de uma ideologia que é partilhada e aceite por ambos os sexos.

    O comportamento e preferência das raparigas e dos rapazes quanto a actividades lúdicas, genericamente são distintos e variam com a idade. Ou seja, as percepções e preferências dos rapazes são cada vez mais estereotipadas com a idade e as das raparigas menos consistentes, podendo-se alterar os seus interesses ao ponto de adoptarem papéis masculinos. O mesmo será dizer que, com a idades, os rapazes investem mais em actividades estereotipadas segundo o género do que as raparigas (Pitcher e Schultz, 1983).

    Segundo Stoddart e Turiel (1985), as crianças a partir dos 7 anos e até à adolescência parecem ser menos peremptórias quanto às determinações sociais dos papéis de género. No entanto, continuam a ajuizar negativamente comportamentos não em conformidade com os papéis de género, sendo este facto mais acentuado nos papéis definidos como masculinos (Levy e col., 1995).

    O modo como as crianças orientam a sua actividade lúdica segundo as percepções que têm de jogos de recreio escolar como sendo apropriados mais ao género feminino ou ao masculino, influenciará não só o seu vocabulário motor como a possibilidade de interacções sociais.


2. Objectivos

    É nosso objectivo analisar como crianças de ambos os sexos e de diferentes contextos culturais (Portugal - Viseu e do Território de Macau), aos 6, 8 e 10 anos de idade percepcionam jogos característicos do recreio escolar (luta, macaca, futebol, caçadinhas, saltar à corda/elástico), associados tradicionalmente como sendo apropriados ao género feminino, ao masculino ou a ambos os géneros.

    O presente estudo vem no seguimento de anteriores (Botelho Gomes et al., 1995;1999).


3. Metodologia

3.1. Amostra

    A amostra foi constituída por 408 crianças de 6, 8 e 10 anos de idade do 1º ciclo do Ensino Básico de Viseu e de Macau, sendo 195 do sexo feminino e 213 do sexo masculino:


3.2. Instrumento

    Foi utilizado o questionário elaborado para o estudo de Botelho Gomes et al. (1995). Traduziu-se o questionário para a língua chinesa, para a sua aplicação no território de Macau, dado que as crianças macaenses também realizam estes jogos no seu recreio escolar (Santos, 1997).


3.3. Tratamento de dados

    Para tratamento dos dados referentes às respostas dos inquiridos, calculámos as frequências absolutas e as respectivas percentagens.

    Os dados foram ainda analisados numa tabela de contingência, recorrendo-se ao valor de X22, sendo o nível de significância estabelecido em p < 0.05.


4. Apresentação e análise de resultados

    Quando analisamos as opiniões das raparigas quanto às três possibilidades de classificação - jogos apropriados para rapazes, para raparigas ou para ambos os géneros -os resultados revelam-nos que, em todos os intervalos de idade e em ambos os contextos, os jogos de luta são considerados como sendo próprios ao género masculino. As raparigas de Viseu, aos 6 e 8 anos, e as de Macau, aos 8 e 10 anos, nunca os avaliam como sendo "jogos de raparigas".

    Opinião coincidente têm os rapazes, que consideram os jogos de luta como sendo próprios ao género masculino. Em todas as idades, a amostra de Viseu nunca considera a luta como sendo um jogo de raparigas e na amostra de Macau, os rapazes de 6 anos também comungam desta opinião.

    Ao analisarmos as opiniões das raparigas e dos rapazes de 6, 8 e 10 anos, apenas verificamos diferenças estatisticamente significativas na comparação, aos 8 anos, na amostra de Viseu (p= 0.002) e aos 10, na amostra de Macau (p= 0.04). De facto os rapazes de Viseu valorizam este jogo, com um percentual mais elevado, como pertença a ambos os géneros e, na amostra de Macau, os rapazes de 10 anos consideram também as possibilidades de classificação "jogo de raparigas" e "jogo de ambos", o que não acontece com as raparigas que, aos 10 anos, apenas o classificam como "jogo para rapazes".

    Os resultados do presente estudo vão no sentido dos encontrados no Porto - a luta é um jogo indubitavelmente declinado no masculino. Ainda que na amostra do Porto, e nas idades consideradas, não se verificassem diferenças de resposta com relevância estatística e agora se verifiquem, essas diferenças não são constantes em todas as idades e a sua interpretação torna-se complicada. Esta dificuldade, que não será exclusiva dos jogos de luta, pode ser devida a três razões:

  • Tratam-se de estudos que se regem apenas por metodologias quantitativas;

  • Trata-se de um estudo transversal. Um estudo longitudinal seria mais clarificador quanto ao modo como se pensa em diferentes etapas da socialização de raparigas e rapazes;

  • O contexto cultural de Macau é muito distinto, e não conhecemos aspectos particulares da sua cultura.

FIGURA 1. LUTA

    No que se refere à macaca, a frequência das respostas traduz que a maioria das raparigas e rapazes de Viseu, em todos os intervalos de idade, julga este jogo como pertença ao género feminino. Mas a percepção das raparigas parece ser mais consistente do que a dos rapazes. Em nenhuma idade consideram o jogo da macaca como característico do género masculino, parecendo que o estereótipo se estabelece mais cedo.

    A amostra de Macau considera-o, na maioria, como próprio de ambos os géneros, exceptuando os rapazes de 10 anos, que o consideram como sendo um "jogo de raparigas". Isto é, à medida que avançam em idade, os rapazes de Macau reconhecem menos a macaca como sendo um jogo próprio para ambos os géneros, considerando-o sobretudo como um jogo característico do género feminino.

    Quando analisamos as respostas das raparigas e dos rapazes, verificam-se diferenças na comparação da amostra de Viseu e de Macau, aos 6 anos (para ambos os casos, p= 0.04) e de Macau aos 10 anos (p=0.02).

    Acontece que, aos 6 anos, os raparigas de Viseu nunca classificam a macaca como sendo apropriada a rapazes, ao contrário da sub-amostra masculina que admite as três possibilidades de resposta. Já em Macau, as diferenças verificadas encontram eventual explicação no facto de as raparigas de 6 anos classificarem a macaca como "jogo para ambos" com maior a expressão do que os rapazes. Aos 10 anos, as raparigas classificam-no fundamentalmente como sendo de "ambos os géneros", enquanto os rapazes avaliam a macaca como sendo um "jogo para raparigas".

    Também no estudo do Porto a macaca foi classificada como um jogo apropriado ao género feminino.

FIGURA 2. MACACA

    Em ambos os contextos, as raparigas percebem o futebol como um jogo próprio do género masculino, embora também surjam algumas respostas que o apontam como um jogo apropriado a raparigas. É de realçar ainda que, apenas as raparigas de 6 anos de Viseu nunca o consideram como pertença a ambos os géneros.

    Quanto às opiniões dos rapazes, também o consideram como um jogo predominantemente característico do género masculino, ainda que também seja considerado por uma minoria como sendo de ambos os géneros, mas nunca como um "jogo de raparigas".

    Apenas as opiniões das raparigas e dos rapazes de 8 anos de Viseu são distintas quanto ao modo como percepcionam o futebol (p= 0.009). Na verdade, apesar de o verem prioritariamente como pertença ao género masculino, as raparigas valorizam mais a classificação "ambos os géneros" do que os rapazes.

    O que fica por conhecer é se, a grande maioria da amostra feminina e da amostra masculina que opina que o futebol é igualmente apropriado a ambos os géneros, quer de facto dizer que também as raparigas o jogam no recreio. Também o que convida a esclarecer é se, caso as raparigas o quisessem jogar, os rapazes as aceitavam nas suas equipas. Evans (1986) refere que as raparigas são muitas vezes excluídas devido a juízos que se relacionam com a sua competência adiantando que, àquelas que entravam no jogo era-lhes atribuído funções de menor importância e relegadas para segundo lugar. Estas considerações aconselham a que se realize um estudo etnográfico.

    O sentido geral dos resultados de Viseu e de Macau segue a tendência verificada no Porto. As diferenças estatisticamente significativas (Porto aos 6 anos, e Viseu aos 8 anos) têm origens diferentes: no Porto a sub-amostra das raparigas de 6 anos declinou-o apenas no masculino, enquanto os rapazes o consideraram também apropriado a ambos os géneros. Mas a diferença encontrada em Viseu (8 anos) parece dever-se à diferença de percentual relativa à classificação "ambos os géneros".

FIGURA 3. FUTEBOL

    O jogo das caçadinhas (apanhada) é considerado pelas raparigas como sendo próprio a ambos os géneros, em todos os contextos e intervalos de idade. Em Viseu, nunca o conotam como sendo um jogo apropriado a rapazes, verificando-se o mesmo com as raparigas de 8 e de 10 anos de Macau.

    Os rapazes percebem este jogo, prioritariamente, como sendo apropriado a ambos os géneros, em ambos os contextos e em todas as idades, opinião que vai ganhando consistência ao longo dos intervalos de idade.

    As diferenças de resposta são estatisticamente significativas quando comparamos as opiniões das raparigas e dos rapazes de Macau, em todas as idades (6 anos, p= 0.02; 8 anos, p= 0.004; 10 anos, p= 0.04). Assim, aos 6 anos, as diferenças de resposta justificar-se-ão na medida em que a percepção do jogo pelas raparigas valoriza a classificação "ambos os géneros", em prejuízo da classificação "género masculino", ao contrário dos seus colegas que percebem este jogo, com alguma relevância, como sendo apropriado a rapazes. Já na comparação das sub-amostras de 8 e 10 anos, parece ser o facto das raparigas nunca considerarem as caçadinhas como sendo um jogo apropriado ao género masculino, que condiciona estas diferenças.

    O estudo do Porto apontou igualmente as caçadinhas como sendo um jogo apropriado a ambos os géneros. No Porto como em Viseu, também não se verificam diferenças estatísticas, nas idades consideradas. O mesmo não se verifica em Macau, mas essas diferenças surgem pelo modo como se distribuem as respostas pelas três possibilidades definidas e nunca por considerarem este jogo como predominantemente característico do género masculino ou feminino.

FIGURA 4. CAÇADINHAS

    Por fim, no que diz respeito a saltar à corda/elástico, e se exceptuarmos o caso das raparigas de Macau aos 6 anos que o consideram predominantemente como próprio a ambos os géneros, em todos os contextos e idades, o jogo é considerado como sendo maioritariamente característico do género feminino.

    Para os rapazes de Viseu, e em todas as idades, o jogo é predominantemente conjugado no feminino, verificando-se que aos 6 e 10 anos nunca o consideram como sendo um jogo apropriado ao género masculino. Em Macau, para os rapazes de 6 anos, o jogo é considerado como próprio a ambos os géneros, e só a partir dos 8 anos de idade é que saltar à corda/elástico é percepcionado como sendo um jogo de raparigas.

    Os jogos de saltar à corda/elástico apenas são percebidos de forma diferente, quando se confrontam as respostas das raparigas e dos rapazes de 8 anos de Viseu (p= 0.05) e de 6 anos de Macau (p= 0.008). Estes resultados parecem ser motivados pelo facto de a sub-amostra masculina também considerar a possibilidade de classificação "jogo de rapazes", ao contrário das raparigas que nunca o vêem como jogo apropriado ao género masculino.

    Saltar à corda/elástico foi também no Porto considerado como um jogo característico do género feminino. As diferenças estatisticamente significativas encontradas não coincidem nos intervalos de idade: Viseu aos 8 anos, Macau aos 6 anos, e no estudo do Porto aos 10 anos. As razões dessa diferença são coincidentes em Macau e no Porto: um maior número de rapazes do que de raparigas consideram-no apropriado a "ambos géneros". O mesmo não será verdade em Viseu: uma maior de raparigas do que de rapazes considera saltar corda também como adequado a "ambos os géneros".

FIGURA 5. SALTAR À CORDA/ELÁSTICO


5. Conclusões

    Para a amostra do presente estudo, podemos concluir que:

  1. Na generalidade, a percepção dos jogos, segundo o género, é coincidente nas raparigas e nos rapazes de cada contexto.

  2. Nos dois contextos, e para todos os sexos e intervalos de idade, a luta e o futebol são jogos característicos do género masculino. O jogo das caçadinhas é apropriado a ambos os géneros.

  3. Em Viseu, a macaca é percepcionada, em todas as idades e para ambos os sexos, como um jogo característico do género feminino. Em Macau, exceptuando a opinião dos rapazes de 10 anos, que a consideram como um jogo de raparigas, é sentida como sendo própria a ambos os géneros.

  4. O jogo saltar à corda/elástico é considerado como um jogo apropriado a raparigas, sendo os rapazes e raparigas de 6 anos de Macau as únicas vozes discordantes, ao considerá-lo como um jogo apropriado a ambos os géneros.

  5. No futebol e na luta, a valorização da classificação "ambos os géneros" aumenta com a idade, tanto nos rapazes como nas raparigas de Viseu. Em Macau acontece precisamente o oposto.

  6. Quando as raparigas de Viseu classificam os jogos no feminino, à medida que avançam em idade, concedem menos espaço à classificação "ambos os géneros". Já quando os identificam como sendo apropriados ao género masculino, valorizam a classificação "ambos os géneros".

  7. Os resultados observados em Viseu seguem a tendência encontrada no estudo realizado no Grande Porto, em 1995.


Bibliografia

  • AMÂNCIO, L. (1994). Masculino e feminino. A construção social da diferença. Edições Afrontamento. Porto.

  • BOTELHO GOMES, P.; QUEIRÓS, P.; SANTANA, P. (1995). Estereótipos femininos e masculinos de jogos de recreio escolar. Revista Horizonte, 11, 179-182.

  • BOTELHO GOMES, P.; MARQUES, A.; NUNES, M. (1999). Female and male stereotypes of playground activities - Study on children from different cultural contexts. Comunicação apresentada no XIV IPA Worls Congress. FMH. Lisboa.

  • EVANS, J. (1986). Genders differences in children's games: a look at the team selection process. CAHPER/ACSEPL Journal, 52, 4-9.

  • LEVY, G.; TAYLOR, M.; GELMAN, S. (1995). Traditional and evaluative aspects of flexibity in gender roles, social conventional, moral rules, and physical laws. Child Development, 66, 515-531.

  • PITCHER, E.; SCHULTZ, L (1983). Boys and Girls at play: the development of sex roles. Bergin & Garvey Publs.. New York.

  • SANTOS, N. (1997). Jogos do recreio escolar de crianças portuguesas e chinesas do 1º ciclo do Ensino Básico do Território de Macau - uma forma de observar. Monografia de Licenciatura, Escola de Educação Física e Desporto, Instituto Politécnico de Macau.

  • STODDART, T.; TURIEL, E. (1985). Children´s concepts of cross-gender activities. Child Development, 56, 1241-1252.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 9 · N° 63 | Buenos Aires, Agosto 2003  
© 1997-2003 Derechos reservados