efdeportes.com
TV addicts (ou por mais
Paulo Freire na Educação Física)

   
Professor universitário (USP e MACKENZIE), educador, e, mesmo querendo,
nunca vê os gols domingo à noite, na mesa-redonda de futebol;
tem saudades da Vila Sésamo, e raiva quando o tricolor do
Morumbi joga ao vivo mas tem que dar aula.
 
 
Jorge Dorfman Knijnik
jk@usp.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
    Crônica à guisa de reflexão sobre a matéria publicada no suplemento "Folhateen" da Folha de São Paulo, em 2002:
Estudo adverte: TV pode viciar e prejudicar a memória.
 
"A televisão me deixou burro, muito burro demais
e agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais" (Titãs")

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 62 - Julio de 2003

1 / 1

    Confesso. Foi uma experiência reveladora, surpreendente, inédita; porque não dizer, edificante. Um insight como poucos na vida. Um marco na minha carreira profissional. Um turning point na minha visão de mundo. Uma situação que, sui generis, mudou para sempre meu jeito de pensar a educação.

    Era mais uma sessão noturna de aulas. Eu estava pronto para começar a falar. O tema, "mulher e gênero no esporte", é um aos quais estou bem afeito, tenho muito assunto, indagações, material sobre a área, transparências; participo de fóruns escrevo ensaios e faço pesquisas sobre estas questões.

    Pois bem, comecei a falar. A turma, de cerca de 40 alunos, com idades entre 19 a 25 anos, aproximadamente, iniciou o tradicional zunzum. Continuei, pedi silêncio, fiz provocações, tentei arrancar comentários. Em vão. O sono parecia abatê-los definitivamente. A concentração era zero. O mutismo dos alunos, absoluto. As piadas não surtiam qualquer efeito. Meu lado ator - que segundo Piaget e a profa. Zélia Ramozzi- Chiarottino, todo professor exercita (e adora) - estava frustradíssimo; o showman que me habita estava derrotado, demissionário.

    Foi quando lembrei. Eu tinha uma carta na manga! ou melhor, um segredo dentro da minha pasta! Bati na mesa, pedi atenção, falei alto e decretei, solene, aos alunos: "Vamos ver um vídeo! Quem sabe como funciona o aparelho?".

    Animados, dois rapazes levantaram rapidamente, e se dispuseram a tentar ligar a aparelhagem. Alguns minutos se passaram, tudo funcionava, eu demorei um pouco mas achei o ponto certo da fita, e, apesar dos protestos, não desliguei todas as luzes, deixando a classe igual a uma festinha da quinta-série, na penumbra, com metade das luzes acesas: eu queria ver o rosto do pessoal, e também evitar que os sonolentos caíssem de vez nas carteiras, e babassem, estragando os próprios cadernos.

    Pois bem, o filme começou. Uma introdução com vinhetas, aparece um apresentador falando do conteúdo do programa, algumas imagens de mulheres correndo e jogando, e entra a cena principal: um especialista falando e dando entrevista sobre o tema da mulher no esporte, seu corpo, preconceitos, história e conquistas.

    Foi aí que se deu o choque! Anafilático, digo, didático, para mim; para os alunos, a corrente foi de alta amperagem.

    Em segundos, a classe pareceu tomada de uma súbita concentração; os corpos se empertigaram, não se ouvia mais um piu, a atenção era máxima, quem ousou espirrar recebeu um enorme pshiiiiu, todos queriam ouvir o que aquela pessoa na telinha falava...

    Vocês já devem imaginar o que ocorreu. Realmente, foi chocante. O "renomado" especialista no tema, o ser que prendeu imediatamente a visão de todos, o anti-soporífero daquela noite, enfim, o entrevistado do programa, era o mesmo professor que tentava, sem qualquer êxito, falar a meia hora, ao vivo e em cores! com os alunos naquela noite. Era o professor que, findas todas as possibilidades, exaurida toda a imaginação, recorria ao seu último recurso didático, e sucumbia perante os atrativos da TV.

    Todos prestaram atenção! Após os quinze minutos da minha entrevista, a aula ficou animadíssima, o debate fluiu, grupos se formaram defendendo pontos de vista contrários, tive que apartar brigas ideológicas, houve congestionamento de braços erguidos pedindo a palavra, gente que entrou no meio cortando os outros...Recebi elogios, dizendo que eu ficava muito bem na TV, as moças comentaram do meu charme (cófcófcóf), dizendo que eu ficava muito elegante com aquela camisa - não,

    Wagner, infelizmente naquela noite da aula eu não vestia a mesma camisa com que apareci na TV. Pensei em ajeitar a situação, poderia usar uma liberdade poética nesta crônica, ninguém iria pegar uma mentirinha desta, mas a minha honestidade intelectual e de pesquisador falou mais alto, você entende, né?

    Esta epopéia é verídica, realmente aconteceu. E o que me impressiona é a influência da "máquina de fazer doido" (como diria o Millôr) em nossas vidas. É possível comparar o grau de atenção de gerações anteriores com a dos Tvmaníacos, com os criados pela babá eletrônica? Meu senso diz que não, os métodos eram outros, o mundo outro.

    Mas já existem pesquisas que comprovam que a TV vicia, atrapalha a concentração, prejudica a memória. Enfim, compromete a cognição de quem assiste muito. Será que nossos alunos estão ligadíssimos na telinha? Apesar de não possuir nenhum dado sobre este assunto, penso que, quem não sabe o que rola na globo fica por fora de muitas rodinhas, perde assunto, fica deslocado. É imprescindível, para se socializar cada vez mais, estar atento ao que passa na grade televisiva.

    E será que isto prejudica a educação? Nossos alunos já não conseguem mais prestar atenção num discurso razoavelmente coeso, se este não for acompanhado de cores, música, ação, intervalos comerciais? O que você acha, Mauro Betti? Qual a resposta, Alfredo Feres?1

    Não tenho respostas. Penso que a TV é uma diversão (apesar do Galvão Bueno) que pode trazer muitos prejuízos. Já ouvi depoimentos, após rebeliões na FEBEM, que o revoltante, para os adolescentes e suas famílias, não são apenas os maus - tratos, mas sim a propaganda, o merchandising que a nossa branca de neve eletrônica, a "rainha" (sic) dos baixinhos (que pobreza!) faz durante o seu programa, falando que é bom para o corpo comer queijo branco (marca X, claro) e iogurte desnatado (marca XX, bem cara); a criança que assiste, o jovem que vê aquilo, não pode comprar. Seu pai tem dificuldades, sobrevive de bicos, ela nunca vai comer aquilo. E então tudo explode, os colchões são queimados, e tudo o que sabemos.

    Claro que não é um processo simplista e direto assim, e nem uma coisa pode justificar a outra. Mas ajuda a entender, e não estamos na busca de maior compreensão do mundo?

    Mas, mesmo sem respostas, no meu insight, pude perceber que, a cada dia que passa, somos mais necessários. O mundo vai ficar sem TV? Não! Vemos imagens da CNN, da Al-jazeera, da lua e de Marte, o tempo todo. Em tudo que é lugar crescem as chances de conexão imediata, as tvs crescem, se multiplicam, se pulverizam, os programas invadem nossas vidas, as pessoas ligam 0300 e pagam para manifestar suas vontades e sentimentos, raivas e paixões. Pensam que a votação é manipulada, mas continuam ligando...

    E nós com isso? O que um professor pode fazer? Se render as mtvs, virar um vídeo - clipe ambulante? Qual a solução? Aumenta o desemprego, e com isso explode a violência no país...o que fazer?

    Educação neles! Educação, educação e educação! Pensar, não tem outro jeito! Refletir sobre os conteúdos que são "atirados" nas telenovelas e nos seus intervalos, questionar sempre! Talvez seja este o nosso papel. Pouco alcance? A Xuxa fala para muito mais gente? Com certeza, mas a nossa vantagem é ser de carne e osso - por mais que eu tenha sido desprezado, e a minha imagem tenha valido mais naquela noite, o exercício da memória vai mostrar quem ficou de realmente importante e influente na mente das pessoas.

    Este é o jeito, e por isso penso que somos cada vez mais imprescindíveis. De outra forma, realmente a preguiça e o relaxamento que as ondas televisivas provocam nos cérebros (vide matéria anexa, vide a música do PATO FU...) irão tomar conta das cabeças para sempre. Talvez educar fosse mais "fácil" quando não tínhamos este "concorrente" formidável. Talvez as pessoas se concentrassem mais do que a "geração vídeo-clipe".

    Porém, é isto que temos agora, a realidade é inexorável, impossível ficar cego perante a TV (isto foi um trocadilho, Wagner?). Temos que partir disto para mudar nosso presente e futuro E, se educar é acreditar veementemente nas mudanças do futuro, deve - se ter clareza que este futuro é projetado, e conquistado, no presente!

    Com a TV, a luta é por idéias - ela envia mensagens ideológicas continuamente para nós e nossos alunos. E contra idéias, não adiantam mistificações - idéias se combatem com o auxílio de novas idéias...Assim, a própria mídia, e a TV, podem e devem ser utilizadas para ensinar a questionar elas mesmas, criando e recriando idéias, num processo...educativo.

    Como diria Edgard Morin, "o dever principal da educação é o de armar cada um para o combate vital pela lucidez"2 . E ser lúcido em nosso país não é nada fácil. Dói. Corruptos vomitam pseudo-idéias, enquanto desfilam com seus carrões importados. Camponeses e crianças são assassinados. Temos medo de voltar para casa e não encontrar mais a família. O analfabetismo ainda grassa. Etc, mil etcéteras.

    "Merda! Sou lúcido!", brada Fernando Pessoa. Mas talvez seja esta batalha, que não está perdida, tampouco ganha, de antemão, que valha a pena.

    Educadores, sim, utópicos, sem dúvida, mas com incertezas, históricas, criadoras, destruidoras. E, como diria a mais profunda tradição brasileira de educação3 , ensinar é sim, intervir no mundo, reproduzindo ou desmascarando a ideologia dominante. Ou mesmo, em dialética contraditória, sendo ambas as coisas, concomitantemente, porém nunca neutros.

    Para finalizar, que o Wagner precisa correr pra dar aula, faço minhas as palavras de La Fontaine4 , que, levemente modificadas, iluminaram e nomearam o último relatório da UNESCO5 sobre educação no mundo:

"Gardez-vous (dit le laboureur), de vendre l'héritage,
que nous ont laissé nos parents
Un trésor est caché dedans - mais le père fut sage
De leur montrer avant sa mort
Que l' éducation est un trésor"*

* Evitai, (disse o lavrador) vender a herança que de nossos pais veio
Esconde um tesouro em teu seio -
Mas ao morrer o sábio pai
Fez - lhes esta confissão:
- O tesouro está na educação.


ANEXOS

PARA OS QUE NÃO CONHECEM, AQUI VAI UM TRECHO DO PATO FU...

"As vezes acho que eu assisto tv,
como um cãozinho que olha o frango rodar
e quanto mais saboroso de se ver,
aguça cada vez mais o meu paladar...
e quando uma gota de óleo cai
como uma novidade que entra no ar...
eu paro tudo! eu paro de pensar!
Só prá ficar te olhando, TELEVISÃO!


Notas

  1. Mauro Betti e Alfredo Feres são doutores e pesquisam as relações da mídia com a Educação.

  2. Edgard MORIN, Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez, 2001.

  3. Paulo FREIRE, sempre ele até o fim. Pedagogia da autonomia, São Paulo, Paz e Terra, 2002.

  4. La Fontaine, " O lavrador e seus filhos".

  5. Jacques DELORS et all. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo, Cortez, UNESCO, 2001.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 9 · N° 62 | Buenos Aires, Julio 2003  
© 1997-2003 Derechos reservados