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Educação Física e as idéias pedagógicas no Brasil: uma breve análise
das concepções que embalaram o século XX e suas
repercussões na formação do professor
Physical Education and the pedagogical ideas in Brazil: a brief analysis
of 20th century's concepts and their repercussions in teaching formation

   
Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Maerando em educação pela Universidade de Brasília (UnB)
(Brasil)
 
 
Wanderson Ferreira Alves
wandersonfalves@yahoo.com.br

 

 

 

 

 
Resumo
    O Objetivo do presente artigo é analisar a repercussão que as idéias pedagógicas gestadas no Brasil ao longo do século XX tiveram na Educação Física, particularmente em relação a formação dos professores dessa disciplina. A intenção aqui é possibilitar uma perspectiva panorâmica da questão e oferecer uma contribuição ao animado debate que tem cercado o tema da formação docente, trazendo a discussão para o campo da educação física. Assim, este estudo procura identificar importantes momentos do pensamento pedagógico brasileiro e, por meio do debate com a literatura e uso de documentos, situar dentro deles a Educação Física e a formação do professor.
    Unitermos: Educação Física. História. Formação docente.
 
Abstract
    The present work aims to inquire the influences of the pedagogical ideas led in Brazil throughout the 20th century in Physical Education, especially in relation to teaching formation in this subject. The intention here is to make possible a panoramic perspective of the issue and to offer a contribution to the debate that has been done about teaching formation, focusing the discussion in Physical Education field. Therefore, this study looks for identifying important moments of brazilian pedagogical thinkings and through agumentation with the literature and the use of documents, take place Physical Education and teaching formation inside them.
    Keywords: Physical Education. History. Teaching formation.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 61 - Junio de 2003

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Introdução

    O Objetivo do presente artigo é analisar a repercussão que as idéias pedagógicas gestadas no Brasil ao longo do século XX tiveram na Educação Física, particularmente em relação a formação dos professores dessa disciplina. A intenção aqui é possibilitar uma perspectiva panorâmica da questão e oferecer uma contribuição ao animado debate que tem cercado o tema da formação docente, trazendo a discussão para o campo da educação física.

    Em um texto como este que analisa as "idéias pedagógicas" de determinado período, cumpre esclarecer o que se está entendendo por esse termo. Assim cabe distinguir, conforme indica Saviani (1999), idéias educacionais e idéias pedagógicas. Idéias educacionais são as que implicam uma análise explicativa dos fenômenos educacionais, bem como uma concepção de homem e sociedade a partir do qual se focaliza a educação. Idéias pedagógicas são idéias educacionais consubstanciadas no movimento da própria prática educativa. São, portanto, idéias que emergem da prática social e no movimento histórico produziram relações pedagógicas concretas. Deixo claro, então, que ao me debruçar sobre as idéias pedagógicas no Brasil do século XX, não pretendo um análise idealista. A prioridade é da história.

    A realização de um trabalho que focaliza um período histórico tão amplo, obriga a identificar os movimentos mais significativos no pensamento pedagógico brasileiro do século XX. Tendo por base alguns relevantes estudos desenvolvidos por autores brasileiros (Ribeiro, 1986; Saviani, 1997, 1999, 2001; Xavier, 2002; e Romanelli, 2002) é possível apontar três importantes momentos no pensamento pedagógico de nosso país, a saber: a pedagogia escolanovista, a pedagogia tecnicista e o surgimento das pedagogias críticas, com destaque para a concepção histórico-crítica.

    Para a realização deste trabalho foram utilizados textos dos períodos estudados, documentos ministeriais e a literatura relacionada a história da educação e da Educação Física no Brasil. Por último, penso que é importante salientar que este estudo não pretende esgotar a temática proposta, pois, ela é demasiadamente ampla para ser discutida aqui. Trata-se, na verdade, de uma breve síntese e de uma contribuição preliminar.

    O texto está dividido em quatro partes e em cada uma delas procuro em um primeiro momento situar o contexto histórico do período e fixar os traços essenciais das idéias pedagógicas, para em seguida localizar nele a Educação Física e a formação do professor. Assim sendo, abordarei na seqüência o escolanovismo, o tecnicismo e a pedagogia histórico- crítica, reservando a quarta parte do texto para uma reflexão do que foi observado e apontar algumas perspectivas.


A pedagogia escolanovista e a Educação Física

    As décadas iniciais do século XX no Brasil são marcadas por modificações na estrutura econômica e tensões no campo social1. Nesse quadro, novos personagens entram em cena representados pelo operariado, burguesia industrial e pela crescente classe média. Era um período de agitação. Os setores sociais emergentes sentiam-se prejudicados pela política vigente e queriam que suas reivindicações fossem ouvidas2. Nesse ambiente de tensão e contestação o modelo educativo da época também foi objeto de crítica, momento em que ganha expressão o movimento dos educadores. Como aponta Ribeiro, Já não eram apenas ou predominantemente os políticos que denunciavam a insuficiência do atendimento escolar elementar e os conseqüentes altos índices de analfabetismo.O problema passava a ser tratado, agora, por educadores de"profissão"(Ribeiro,1986, p.93).

    A década de 20 vai cada vez mais sendo permeada pela idéia de que o Brasil está em atraso em relação aos outros países tidos como desenvolvidos. A duas características da economia são imputadas as causas: o fato de centrar-se em um modelo agrário de exportação e este ser de caráter dependente. A Revolução de 30 marca o conflito entre o grupo dominante ligado ao modelo agrário-exportador e o grupo dominante a ele desligado. A vitória do grupo opositor permite o desenvolvimento de um outro modelo econômico-político direcionado ao mercado interno, ponto que persistirá até entre 1955 e 1964, quando entrará em crise (Ribeiro, 1986). É desse contexto marcado por mudanças sociais, políticas e econômicas que emerge o movimento que ficou conhecido como Escola Nova..

    Movimento encampado pela elite intelectual brasileira que propunha conduzir o país a modernização por meio da educação, o escolanovismo e, particularmente, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, representam um marco na redefinição da educação no Brasil e na construção da escola pública (Xavier, 2002). No quadro das significativas mudanças que ocorriam no período era preciso criar um Brasil novo. Um Brasil que deixasse para trás as mazelas do passado e vislumbrasse o futuro. Nesse sentido, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova lançado em 1932 consubstancia-se em um corpo de medidas delineadoras de um novo sistema educacional, de caráter único, laico, em base científica e sob a responsabilidade do Estado. Tais proposições, contudo, lograram efetivação conforme a correlação de forças existentes na sociedade e assim constituiram-se em um movimento com avanços, recuos e permanências. Porém, o saldo dos embates entre renovadores e conservadores, como assinala Romanelli (2002), não foi positivo para os primeiros e expressou o modo como o poder estava estruturado no contexto brasileiro.

…a vitória dos antidemocratas e conservadores, sendo mais constante, colocou os destinos da educação, sua expansão e rumos sob o controle desses gropos. Esse controle se exerceu de duas formas. Primeiro, através da contenção da expansão do ensino em limites mais estreitos (…). Segundo, através da criação de uma estrutura de ensino baseada em valores própios desses grupos dominantes, valores, portanto, ligados à velha ordem social aristocrática e oligárquica … (Romanelli, 2002, p. 191)

    O escolanovismo representa uma proposta pedagógica de caráter humanista e que tem seus pressupostos constituidos a partir da chegada ao Brasil de idéias oriundas da Europa e Estados Unidos que traziam uma concepção liberal de educação e sociedade. Assim, o eixo do ensino que na escola tradicional estava centrado no professor foi no escolanovismo deslocado para o aluno, buscando atender suas necessidades e interesses. A intenção era formar um homem integral por meio de uma educação adequada e que apoiada na ciência levasse em consideração o desenvolvimento psicobiológico dos educandos (Xavier, 2002). Dentro desse contexto é que procurarei situar a Educação Física.

    A gênese da Educação Física em nosso país remonta ao Brasil do século XIX e está ligada as instituições médicas e militares (Soares, 2001). Essas instituições contribuiram para a consolidação e reconhecimento da Educação Física - inicialmente entendida como ginástica - como algo socialmente importante. Em um contexto onde o discurso científico vai adquirindo cada vez mais legitimidade, a Educação Física foi edificada sobre uma matriz fundada nas ciências biológicas e sob o signo da ordem e do disciplinamento corporal. Aqui é importante ressaltar que tanto os médicos como os militares pensavam a ginástica não em si mesma, mas a partir de um interesse pedagógico, embora o fizessem orientando-se pelas ciências biológicas (Bracht, 1999).

    O campo da pedagogia nas décadas iniciais do século XX era bastante receptivo aos pressupostos da ciência e esta era permeada por uma fundamentação originada da biologia. Tomando como exemplo um importante documento do período, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, fica evidente a crença no progresso e na ciência que nutria muitos educadores da época. Acreditava-se que se podia …ser tão científico no estudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças (Azevedo, 2002, p.88), bem como, que a educação deveria desenvolver as aptidões "naturais" do indivíduo :

De fato, se a educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao máximo a capacidade vital do ser humano, deve ser considerada "uma" só a função educacional, cujos diferentes graus estão destinados a servir as diferentes fases de seu crescimento, "que são partes orgânicas de um todo que biologicamente deve ser levado a sua completa formação " . Nenhum outro princípio poderia oferecer ao panorama das instituições escolares perspectivas mais largas, mais salutares e mais fecundas em conseqüências do que esse que decorre logicamente da finalidade biológica da educação (Azevedo, 2002, p.96)

    Ora, dentro desse contexto e a partir dessa fundamentação é que se buscava uma educação que pudesse construir o homem integral. A Educação Física caberia educar os alunos no que se refere a moral e ao robustecimento dos corpos. Era essa sua contribuição e, desse modo, a formação do professor de Educação Física (ou de ginástica) vai organizar-se para atender ao tipo de intervenção que era requerida. As palavras de Fernando de Azevedo, apoiado no médico francês Philipe Tissié, mostram muito bem o corpo de conhecimentos que o professor deveria dominar :

Deve ter os mesmos conhecimentos que o higienista, não bastando ser um pedagogo, mas sendo mister que seja um médico, não bastando que sua competência se estenda aos mais sólidos conhecimentos didáticos, mas importando vitalmente que a sua propedêutica abranja noções seguras de higiene e anátomo-fisiologia (…) porque em sua fórmula precisa (…) a educação física é higiene e higiene é medicina (Azevedo, apud Soares, 2001, p.125)

    É interessante notar que o conhecimento que o professor de Educação Física trabalha tem sua legitimidade conferida por profissionais de outras áreas, como os da medicina. Tal fato é, segundo Bracht (1999), explicado pela ausência do campo acadêmico da Educação Física e este vai começar a ser estruturado à medida que a formação profissional passa a ocorrer em nível superior.


A pedagogia tecnicista e a Educação Física

    Entre 1955 e 1961 o Brasil vive anos de significativo desenvolvimento econômico. A intervenção do Estado e o fluxo de capital internacional proveniente da instalação de indústrias de bens de consumo duráveis e equipamentos, favoreciam esse crescimento. Contudo, o período também é marcado pela concentração do lucro e pela tensão entre uma política de caráter nacional-desenvolvimentista e um modelo econômico que contava com o investimento estrangeiro (Ribeiro, 1986). A agudização da tensão aí gerada foi um dos fatores mais importantes para a ocorrência do Golpe de 64 e demarcou uma nova fase no capitalismo brasileiro. Um capitalismo do tipo associado e subordinado ao grande capital. O crescimento do parque industrial necessitava de mão-de-obra qualificada e existia uma demanda crescente da sociedade por mais escolarização. Nesse sentido a educação vai sendo enfocada e percebida como portadora de desajustes - altos índices de repetência, evasão, baixa oferta - ao passo que o discurso economicista obtém cada vez mais espaço. A educação precisava avançar para que não fosse um entrave a ideologia do Estado Revolucionário que defendia "o desenvolvimento econômico com segurança" (Kuenzer & Machado, 1984, p. 29). Contudo, o discurso que permeou o campo educativo do período, longe de conceber a educação como entrave, trata a educação como fator de produção. Peça fundamental para o desenvolvimento do país. As palavras de Arlindo Lopes Corrêa, então diretor do Centro de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral na década de 70, ilustram bem essa questão:

Não há ação mais devisiva e duradoura no sentido de acelerar a mobilidade social, do a que se empreende através da democratização de oportunidades de acesso à educação. Não há fator mais palpável para acalentar a esperança individual de ascensão na escala econômica do que a capitalização intelectual e a qualificação obtida através da educação. Não há modo mais eficiente de aumentar o poder nacional do que investir maciçamente na formação de recursos humanos. Não há melhor canal para transmitir valores morais, formar para a cidadania, preparar para uma vida feliz, do que o sistema educacional (Corrêa, 1971, p.88)

    Tal concepção correspondia a uma visão economicista do campo educacional e era oriunda do que ficou conhecido por " teoria do capital humano ". Criada entre o final da década de 50 e início dos anos 60 nos Estados Unidos por Theodoro Schultz, a teoria postulava que um investimento marginal em educação resultaria em um acréscimo marginal na produção (Frigotto,1999). A teoria do capital humano influenciou decisivamente os anos que se seguiram ao Golpe de 64 e deixou uma marca indelével na educação brasileira, ajustando o país às exigências do grande capital e delineando a política educacional.

O conjunto dos postulados básicos da teoria do capital humano teve profunda influência nos (des) caminhos da concepção, políticas e práticas educativas no Brasil (…). No plano da política, de forma autocrática, o economicismo serviu às forças promotoras do golpe, da base conceptual e técnica à estratégia de ajustar a educação ao tipo de opção por um capitalismo associado e subordinado ao grande capital. A Reforma Universitária de 68, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 71, corporificam a essência dese ajuste (Frigotto,1999, p.43).

    Dessa forma, cria-se um ambiente favorável a racionalização da educação e a implementação de uma tecnologia educacional capaz de responder às exigências do mercado, ao passo que produz-se a despolitização das práticas de modo conveniente a ideologia da segurança nacional.

    A Educação Física no contexto dos Governos Militares pode ser entendida a partir de uma perspectiva que tornou-se símbolo do período: a idéia de desenvolvimento e segurança.

    Em um período em que Brasil se associa - de modo subordinado - ao capital internacional e grandes corporações chegam ao país, à Educação Física coube a função de cuidar do corpo do trabalhador, ou melhor , da força de trabalho. Não há nesse momento a concepção humanista das primeiras décadas do século e sim uma concepção instrumental e voltado para o atendimento das necessidades do mercado. Expressão maior disso, como mostrou Castellani Filho (1994), é o surgimento do discurso que aponta a importância das práticas de atividade física serem incentivadas pelas empresas, afim de revigorar o trabalhador e aumentar sua rentabilidade. Ganha destaque cada vez mais a figura do esporte.

    De acordo com Castellani Filho (1994), o esporte foi elemento importante no quadro brasileiro do período e cumpriu, além do aprimoramento físico, a tarefa de desviar a atenção do ambiente coercitivo vivido pelo povo durante a ditadura militar. Dessa forma, o investimento e o apelo feito pelo Estado a instituição esportiva foi na direção do quesito "segurança", por meio do mascaramento da realidade. Nesse contexto, o professor de Educação Física fica incumbido da melhoria da "aptidão física" e da pirâmide esportiva, pois, o esporte nos anos 60 e 70 ganha cada vez mais espaço e passa até a legitimar a Educação Física (Bracht, 1999).

    Observando a legislação do período Castellani Filho (1994) mostra que o Decreto n° 69.450/71 concebia a Educação Física como uma "atividade" escolar, caracterizando uma prática que seria válida por si mesma, ou seja, um fazer pelo fazer. Em um momento em que o esporte emprestava prestígio a Educação Física o professor teve sua imagem confundida com a de um técnico. A ênfase nos meios de ensinar que caracterizam a pedagogia tecnicista cobrou forte efeito em sua formação, como também em sua prática pedagógica, agora esterilizada politicamente.

    Na verdade a questão pedagógica no âmbito da Educação Física brasileira sofreu um arrefecimento nos anos 70, ao passo que a instituição esportiva alcançava uma maior importância econômica e política. Teorizar na Educação Física era pensá-la em termos da biomecânica ou da fisiologia do exercício, enquanto o aspecto pedagógico era preocupação apenas dos que buscavam um método mais eficiente para ensinar determinada destreza (Bracht, 1999). Em um horizonte como esse em a Educação Física estava inscrita, a formação do professor na concepção de educador era cada vez menos necessária, afinal, se o objetivo correspondia a melhoria da aptidão física e aos resultados esportivos, restava pouco espaço para pensar a educação.


A pedagogia histórico-crítica e a Educação Física

    O cenário brasileiro que viu surgir a pedagogia histórico-crítica entre o final da década de 70 e início dos anos 80 é o de um regime ditatorial cada vez mais deslegitimado. A insatisfação popular com um regime político opressor, o colapso da economia e a submissão ao Fundo Monetário Internacional são o pano de fundo onde a sociedade civil mostra cada vez mais sua força3. Alguns desses protagonistas podem ser identificados nas Comunidades de Base da Igreja Católica, em uma esquerda marxista dispersa e na emergência do novo sindicalismo (Sader, 1988). Focalizando particularmente a década de 80 é possível perceber os avanços conseguidos pela sociedade civil: fundação do Partido dos Trabalhadores (1980), criação da Central Única dos Trabalhadores (1983) e elaboração e promulgação da Constituição Federal (1988). É dentro desse quadro onde os ventos democráticos começam a soprar e se intensificam, que melhor pode ser localizada a emergência da pedagogia histórico-crítica e o impulso que obteve nos anos 80.

    A pedagogia histórico-crítica tem sua origem nos estudos do professor Dermeval Saviani, que procurando melhor delimitar a pedagogia dialética entre as pedagogias críticas (abordagens crítico-reprodutivistas e a abordagem de Paulo Freire) , sistematizou-a entre 1979 e 1983. Inspirando-se em Marx, Saviani fará uso do materialismo-histórico e da compreensão dialética da realidade para propor uma pedagogia que avance para além das teorias da reprodução e possa contribuir no processo de transformação social. A pedagogia histórico-crítica faz uma clara opção em favor da classe trabalhadora e dá ênfase ao aprendizado do conhecimento sistematizado, pois, defende que a instituição escolar está ligada ao problema da ciência (SAVIANI, 1997). Outro ponto importante é que em oposição a neutralidade da prática educativa, propalada pelo tecnicismo, Saviani traz uma pedagogia com forte sentido político e que aponta na direção de uma sociedade sem classes. Por último, cabe acrescentar que a tarefa da pedagogia nessa perspectiva é a sistematização dos métodos e processos de ensino, enquanto a produção do conhecimento ensinado é uma atribuição dos cientistas (Saviani, 1997). O professor deve organizar o processo educativo de tal modo a possibilitar ao aluno a apropriação da cultura historicamente elaborada pela humanidade. Tendo procurado caracterizar a pedagogia histórico-crítica em seus aspectos gerais, procurarei agora abordar sua repercução na Educação Física e na formação do professor.

    A Educação Física até a década de 70 não encontra oposição a perspectiva conservadora que reveste suas práticas. A perspectiva da aptidão física, a esportivização e a idéia de neutralidade da prática pedagógica eram o ideário da época. Eram estes os elementos balizadores da formação do professor. Contudo, a partir da década de 80, como vários autores assinalam (Bracht, 1992; Coletivo de Autores, 1992; Castellani Filho, 1994; entre outros), a Educação Física passa por movimentos renovadores e é nesse âmbito que se pode localizar a concepção conhecida por pedagogia crítico-superadora.

    A pedagogia crítico-superadora representa a repercução da pedagogia histórico-crítica no campo da Educação Física. Foi sistematizada por um Coletivo de Autores4 e publicada em livro em 1992, constituindo-se em uma importante contribuição para essa área do conhecimento no Brasil. Nessa perspectiva de Educação Física o objetivo não é o aprimoramento das capacidades físicas ou o rendimento esportivo, mas sim o de propiciar aos alunos a apropiação crítica da cultura corporal históricamente produzida pela humanidade.

Na perspectiva d reflexão sobre a cultura corporal, a dinâmica curricular, no âmbito da Educação Física tem características bem diferenciadas das da tndência anterior. Busca desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de representação o mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizados pela expressão corporal : jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como forma de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, históricamente criadas e culturalmente desenvolvidas (Coletivo de Autores, 1992, p.38).

    Sendo inspirada na pedagogia histórico-crítica a pedagogia crítico-superadora incorporou alguns de seus pressupostos e nesse sentido a educação é compreendida como uma prática social com forte sentido político. Ademais, existe um claro posicionamento de classe em favor dos trabalhadores, compreendidos como privados em conseqüência das relações sociais desiguais, do acesso ao conhecimento elaborado e de cujo o qual a Educação Física faz parte.

    Na perspectiva crítico-superadora a formação do professor não pode mais ser confundida com a formação de um técnico. As questões mais amplas que perpassam o processo educativo, como a relação educação e sociedade, currículo, projeto político-pedagógico, passam a fazer parte de sua formação em congruência com as novas necessidades que uma proposta pedagógica crítica impõe. Essas novas necessidades evidenciam-se quando o Coletivo de Autores aponta que

Todo educador deve ter definido seu projeto político-pedagógico. Essa definição orienta sua prática no nível da sala de aula (…). É preciso que cada educador tenha bem claro : qual o projeto de homem e sociedade que persegue? Quais os interesses de classe que defende? Quais os valores, a ética e a moral que elege para consolidar através de sua prática? Como articula suas aulas com este projeto maior de homem e sociedade? (Coletivo de Autores,1992, p.26).

    Dentro dessa perspectiva de formação do professor um currículo radicado nas ciências biológicas torna-se estreito e limitado. Assim, as ciências humanas foram valorizadas e chamadas a contribuir na formação do professor de Educação Física.


Síntese provisória e perspectivas

    A Educação Física nunca esteve apartada dos contexto histórico brasileiro e, por conseguinte, acompanhou em maior ou em menor medida os diferentes momentos do pensamento pedagógico em nosso país. Neste texto foram destacados três importantes momentos: a pedagogia escolanovista, a pedagogia tecnicista e a pedagogia histórico-crítica.

    Tendo como referência as décadas iniciais do século XX e suas décadas finais, é possível perceber uma Educação Física que vai de uma concepção ingênua de educação a uma concepção crítica, de uma concepção harmoniosa de sociedade à uma concepção dialética, de uma concepção pautada na saúde à uma concepção pautada na cultura corporal. A base original positivista que marca a Educação Física brasileira tem seu ponto de partida no século XIX, mas tem sua dimensão ampliada à medida que a Educação Física estrutura-se como uma área do conhecimento. Desde então, passa a ser marcante na área a perspectiva da Aptidão Física, concepção de eixo acrítico e despolitizado, voltado para o desenvolvimento das capacidades motoras e da saúde, entendidas de modo estrito. Isto implicou toda uma organização curricular na formação docente para essa disciplina.

...desde que a Educação Física é Educação Física neste país (desde 1930, de forma mais organizada), desde que existe essa estrutura, enquanto disciplina pedagógica ou área de conhecimento temos como parâmetro desta Educação Física, como referência para o seu desenvolvimento, como objetivo, a melhoria e o aprimoramento da aptidão física dos educandos, pelos Sistema Esportivo e por todos os Sistemas Educacionais. A vinculação de uma prática pedagógica ao objetivo da melhoria da aptidão física, fez com que toda uma ação pedagógica fosse delimitada por parâmetros que levassem em conta esta necessidade (...). Se o objetivo era a aptidão física, nada melhor que ir buscar no âmbito das ciências biológicas, mais precisamente no universo de disciplinas como fisiologia (do exercício e do esforço), biologia, anatomia, biomecânica, bioquímica, etc., e assim foram inseridas nos currículos das Escolas de Educação Física (Castellani Filho, palestra na Faculdade de Educação da UFG, em 28/06/1996).

    Essa perspectiva de Educação Física limitava bastante o perfil profissional do professor dessa disciplina, tornando os professores alheios as questões pedagógicas. Contudo, apartir da década da década de 80 essa perspectiva começa a ser contestada.

    A década de 80 representa um importante momento na história do pensamento pedagógico brasileiro. É o momento de debate de grandes temas: Saviani (2001), discutia Escola e Democracia; Cury (1997), defendia a Educação e Contradição; e Mello (1982) afirmava o Magistério de 1° grau. Da competência técnica ao compromisso político. Estes e outros autores fizeram parte de um movimento crítico e que explicitava o sentido político da educação. De inspiração marxista o movimento denunciava o papel conservador do sistema educacional e sua função em uma sociedade capitalista. No bojo desse processo é que as pedagogias progressistas vão se delineando e procurando formular alternativas para a prática (Bracht, 2001). É na década de 80 que emerge a pedagogia histórico-crítica (Saviani, 2001, 1997), inspirando na área da Educação Física, no início dos anos 90, o surgimento da pedagogia crítico-superadora (Coletivo de Autores, 1992). Ambas as concepções muito profícuas e colaboradoras para desenvolvimento da educação e da Educação Física. Contudo, é importante saber qual é o saldo que os movimentos inovadores da época deixaram para a educação no Brasil em relação à formação de professores.

    O balanço do pensamento pedagógico brasileiro das décadas finais do século XX - e que cobra efeito ainda nos dias de hoje - revela uma situação ambígua. Por um lado avançou em relação a compreensão das complexas relações sociais que cercam a escola, explicitando o aspecto político do ato docente e a necessidade de uma densa formação para o professor. Por outro lado permaneceu excessivamente preso as dimensões políticas e sociais amplas, desvalorizando o professor e seu cotidiano de trabalho.

Na década de 80, a dimensão sócio-política dominaria o discurso pedagógico (...). Os saberes escolares, os saberes docentes tácitos ou implícitos e as crenças epistemológicas, como destaca LInares (1996), seriam muito pouco valorizados e raramente problematizados ou investigados tanto pela pesquisa acadêmica educacional como pelos programas de formação de professores. Embora a prática pedagógica de sala de aula e os saberes docentes tenham começado, neste período, a ser investigados, as pesquisas não tinham o intuito de explicitá-los e/ou valorizá-los como formas válidas e legítimas de saber. Ao contrário, procuravam destacar, como diriam Ezpeleta e Rockwell (1986) e Geraldi (1993), a negatividade da prática pedagógica... (Fiorentini et al, 1998, p. 313-314).

    A formação docente reivindicada no discurso crítico do período defendia que a formação deveria ser um processo "sólido". De acordo com Lellis (2001), a formação do professor deveria contemplar uma bagagem teórica que permitisse uma ação coerente, o desenvolvimento de uma aguda consciência da realidade e a instrumentalização técnica para a ação eficaz. Contudo, ressalto novamente, o professor e seu trabalho escolar foi desvalorizado. À medida que se adentra a última década do século XX, novas perspectivas surgem no cenário brasileiro e embora longe de lograr hegemonia no debate educacional trazem um novo olhar para a profissão docente

    As perspectivas que emergem nos anos 90 são ainda plenamente contemporâneas e são marcadas por uma valorização da pessoa do professor (Nóvoa, 1991, 1992) e de seus saberes (Tardif, s/d e 2002). Aqui convém, particularmente, fazer referência ao texto pioneiro de Tardif: Esboço de uma problemática do saber docente, publicado originalmente em 1991. Nesse texto, já ao início da década, Tardif argumentava que os professores não eram apenas transmissores de conhecimentos.Não era somente essa a relação dos professores com os saberes.

... a relação dos docentes com os saberes não se reduz a uma função de transmissão dos conhecimentos já constituídos. Sua prática integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantêm diferentes relações. Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experiências (Tardif, 2002, p. 36).

    Assim, processa-se uma mudança de idioma pedagógico, como indica Lellis (2001), no que diz respeito a educação e a formação do professor. Para a Educação Física, especificamente, os avanços parecem tímidos. A vigência de um pensamento ligado a ciência positiva ainda permeia a área e tem forte presença, como atesta o estudo de Lüdorf (2001), que constatou que 56,5% da pesquisa científica desenvolvida na Educação Física brasileira da década de 90 é de cunho empírico-analítico. Ademais, o movimento inovador na área parece demasiadamente voltado para uma lógica de formação docente que muito lembra a preconizada nos anos 80. Não se trata de abandonar os avanços do passado e sim de compreender algumas de suas limitações e seguir adiante buscando o desenvolvimento profissional do professor.

    À medida que novas concepções vão chegando no campo da Educação Física, novos estudos e enfoques também vão surgindo. Alguns exemplos são o trabalho de Borges (1998), que mostra o professor de Educação Física em sua relação/construção com os saberes no contexto escolar; o de Almeida Júnior (2002), que focaliza o ensino do esporte e os saberes docentes; e de Bracht (2001), que delineia uma perspectiva inovadora e emancipadora para a formação continuada do professor de Educação Física.


Notas

  1. Sobre as modificações do campo econômico no Brasil e sua relação com a educação ver Ribeiro (1986).

  2. As décadas de 10 e 20 foram particularmente agitadas: entre 1917 e 1918 o movimento operário ganha força e faz uma greve de 30 dias em São Paulo; em 1922 funda-se o Partido Comunista do Brasil (PCB); em 1922 os militares fazem a revolta do "Forte de Copacabana" e entre 1924 e 1927 ocorre a "Coluna Prestes".

  3. Um excelente estudo sobre os movimentos da sociedade civil na década de 70 pode ser visto em SADER (1988).

  4. São eles: Lino C. Filho, Carmen L. Soares, Valter Bracht, Celi N. Z. Taffarel, Michele O. Escobar e Elizabeth Varjal.


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revista digital · Año 9 · N° 61 | Buenos Aires, Junio 2003  
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