Afinal, para que servem os contratos? | |||
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, cursando Especialização em Administração para Profissionais do Esporte na Escola de Administração de Empresa da FGV/SP, um dos responsáveis pela área de Direito Desportivo do escritório Demarest e Almeida - Advogados, palestrante em cursos e seminários nacionais e internacionais, diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (http://www.ibdd.com.br). |
Luiz Felipe Guimarães Santoro lfsantoro@demarest.com.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 9 - N° 59 - Abril de 2003 |
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Ao contrário do teor eminentemente técnico/jurídico de nosso artigo publicado no número de estréia da Revista Brasileira de Direito Desportivo, optamos agora por desenvolver o tema proposto no título acima, fazendo uma análise argumentativa com base em "entreveros contratuais" que envolveram um dos atletas que integrou a seleção brasileira na última Copa do Mundo.
Recapitulando os acontecimentos que nos incentivaram a escrever este artigo, tal atleta conseguiu na Justiça do Trabalho a liberação do clube com o qual mantinha vínculo empregatício e desportivo, alegando que a empresa constituída para gerir o futebol profissional do clube estava inadimplente em relação aos pagamentos decorrentes do contrato de licença de uso de imagem, verba esta que, no entender do atleta, integraria seu salário.
Ressalte-se que o salário do atleta vinha sendo pago normalmente pelo clube; o que estava atrasado era o pagamento pela utilização de sua imagem, estipulado em contrato celebrado entre a empresa constituída pelo atleta e a empresa constituída pelo clube e seu investidor.
Nesse ponto, faz-se necessária uma pequena digressão para esclarecer aos leitores não tão embrenhados no assunto que os atletas podem firmar um contrato de trabalho com a entidade de prática desportiva (clube) e, por intermédio de outro contrato independente, licenciar sua imagem ao clube ou a terceiros (no caso em tela, à empresa constituída pelo clube e por seu investidor).
Tal atleta conseguiu sua liberação do clube na Justiça do Trabalho, sob o fundamento de que as verbas recebidas a título de "direito de imagem" integrariam seu salário e, como o pagamento de tais verbas estava atrasado por mais de três meses, deveria ser aplicada a regra do art. 31 da Lei nº 9.615 ("Lei Pelé").
Como o assunto a ser abordado no presente artigo não versa sobre a discussão acerca das verbas pagas a título de direito de imagem (se integram ou não o salário do atleta), não iremos nos alongar nessa análise. Em nossa opinião é equivocada a generalização de que tais verbas integrariam o salário do atleta, devendo ser analisado cada caso específico, com base nos termos do contrato e na forma de sua execução.
Em que pese a existência de opiniões contrárias, defendemos a tese de que tais contratos são independentes, sendo perfeitamente legal a celebração do contrato de licença de uso de imagem (de âmbito civil, não se confundindo com o contrato de trabalho), desde que a conclusão e execução do contrato observem determinadas precauções.
Voltando ao nosso atleta, após desvincular-se do clube com o qual mantinha vínculo empregatício, celebrou contrato de trabalho com outra entidade de prática desportiva, na qual permaneceu até a Copa do Mundo. Voltando do Japão, esperado nos treinamentos uma vez que sua equipe estava disputando a semifinal da Taça Libertadores da América, o atleta simplesmente comunicou ao clube que não mais atuaria por temer a ocorrência de lesão que pudesse inviabilizar sua transferência para uma equipe do exterior.
Se no episódio anteriormente narrado o atleta tinha uma parcela de razão, por não estar recebendo o pagamento do chamado direito de imagem (muito embora - repita-se - não concordemos com o meio pelo qual a desvinculação foi concedida), neste último caso não nos parece correta a atitude tomada pelo atleta, que tinha contrato em vigor com o clube e estava recebendo em dia o pagamento de seus salários. E pior: o atleta admitiu que usou o clube unicamente para disputar a Copa do Mundo (alegando que o clube o teria usado, uma vez que celebrou contrato recebendo um salário muito inferior ao que recebia no clube anterior). Ora, sendo o salário estipulado de comum acordo entre as partes, não nos parece plausível tal alegação após a celebração do contrato.
Muito embora a rescisão contratual seja exercício legal de um direito, nos parece que certos princípios gerais de direito estão sendo deixados de lado, notadamente o princípio da boa-fé. A rescisão contratual, que deveria ser uma exceção, vem se tornando regra nos contratos de trabalho envolvendo jogadores de futebol.
Em que pese tratar-se de contrato de trabalho, a doutrina já sedimentou entendimento de que a relação empregatícia entre o atleta profissional e a entidade de prática desportiva é sui generis. Nesse sentido, por expressa disposição legal, diversos artigos da CLT não se aplicam à relação de emprego mantida pelo jogador de futebol.
O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro determina que "quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (grifamos). Segundo Arnaldo Süssekind, "a CLT inclui os princípios gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, entre as fontes a que a Justiça do Trabalho e as autoridades administrativas devem recorrer para sanar omissões no campo das relações de trabalho"1 .
Com isso, pode-se afirmar inequivocamente que o princípio geral da boa-fé contratual deve ser observado pelas partes contratantes, na tendência moderna do que vem sendo estipulado para toda e qualquer relação jurídica. Nos termos do art. 422 do Novo Código Civil, "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Isso significa que as partes devem agir corretamente nas negociações para a elaboração do contrato, durante seu cumprimento e até mesmo após a rescisão contratual.
Como ensina Sílvio de Salvo Venosa, "importa, pois, examinar o elemento subjetivo em cada contrato, ao lado da conduta objetiva das partes. A parte contratante pode estar já, de início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elaboração (a exemplo do que nos parece ocorrer no caso ora analisado). A vontade de descumprir pode ter surgido após o contrato. Pode ocorrer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade de cumprimento. Cabe ao juiz examinar em cada caso se o descumprimento decorre de boa ou má-fé." 2 .
Prossegue o eminente civilista afirmando que "a má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida" 3 .
É importantíssimo analisarmos o princípio da boa-fé. Essa nova tendência do direito civil, aplicável por analogia ao direito do trabalho e a todos os demais ramos do direito é tão marcante, que o art. 187 do Novo Código chega a estabelecer que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
Observa-se, portanto, que o conceito de boa-fé objetiva (regra de conduta que constitui-se num dever de agir conforme determinados padrões de honestidade) também têm a função de controlar os limites do exercício de um direito. Como o leitor há de se lembrar, algumas linhas acima dissemos que a rescisão contratual é um direito conferido aos contratantes. Ocorre que se o contratante, ao exercer seu direito de rescisão contratual, excede os limites da boa-fé (ou mesmo não age de boa-fé na conclusão e execução do contrato) estará cometendo ato ilícito.
Não são poucas as decisões judiciais que obrigam um fabricante a permanecer fornecendo produtos ao distribuidor, mesmo após sua iniciativa de rescindir o contrato, limitando, dessa forma, o direito à rescisão contratual. No próprio Direito do Trabalho existem diversas hipóteses em que o empregador não pode rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, atitude que, se tomada, pode gerar até mesmo o direito de reintegração do trabalhador.
Entende a doutrina e a jurisprudência que a boa-fé é uma cláusula geral que deve estar presente em todas as relações de direito privado, demandando dos contratantes um comportamento fundado na lealdade, um dever de agir conforme determinados padrões de honestidade, para não frustrar a confiança legítima da outra parte. É a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com sinceridade, de modo a não induzir a outra parte a engano ou a erro4 .
Ensina o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que "a boa-fé se constitui numa fonte autônoma de deveres, independente da vontade, e por isso a extensão e o conteúdo da relação obrigacional já não se mede somente nela (vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa ao controle das partes" 5 .
Não estamos aqui sustentando que um contrato não possa ser rescindido. Nossa única intenção é demonstrar, juridicamente, que eventual rescisão deve ser procedida com responsabilidade e respeitando-se os parâmetros da boa-fé objetiva que devem se fazer presentes em todas as relações contratuais.
A FIFA, em recentes alterações introduzidas nas normas relativas à transferência internacional de atletas, consagra o princípio da manutenção da estabilidade contratual, incentivando o cumprimento integral dos contratos e dedicando um capítulo inteiro de seu "Reglamento sobre el Estatuto y la Transferencia de Jugadores" a essa problemática.
Estabelecem as disposições normativas que regulam a transferência internacional de atletas que, em caso de rescisão unilateral de contratos celebrados por atletas menores de 28 anos, durante os três primeiros anos de vigência do contrato, sem motivo justo nem causa desportiva justificada, será imposta uma sanção desportiva, acompanhada do pagamento de indenização. Nos contratos firmados com atletas de idade superior a 28 anos, a única alteração é que a rescisão unilateral injustificada somente será sancionada caso ocorra durante os dois primeiros anos de vigência do contrato.
Além disso, é proibida a rescisão unilateral, sem motivo justificado, durante a temporada, nos termos da alínea "c", inciso 1 do art. 21 do Regulamento.
A rescisão unilateral de um contrato sem motivo justo nem causa desportiva justificada poderá acarretar ao atleta a suspensão por quatro meses de todas as partidas oficiais, contados a partir do início da temporada do campeonato nacional de seu novo clube. Na existência de situações agravantes, como a falta de aviso ou infrações contratuais recorrentes, a suspensão poderá ser estendida a até 6 meses.
É importante se destacar a expressão sem motivo justo nem causa desportiva justificada. Por se tratar de condição subjetiva, a maioria dos casos deverá ser levada à apreciação da Câmara de Resolução de Disputas da Comissão do Estatuto do Jogador da FIFA, que poderá conceder indenizações financeiras ou impor medidas disciplinares. Das decisões da Câmara de Resolução de Disputas caberá recurso ao Tribunal Arbitral do Futebol. Tais órgão são compostos por representantes de clubes e atletas.
Entende a FIFA que a estabilidade contratual é fundamental no mundo do futebol, tanto para os clubes quanto para atletas e torcedores. A relação entre atletas e entidades de prática desportiva deve ser regida por um sistema regulador que responda às necessidades específicas do futebol e equilibre os interesses particulares de clube e atletas.
Sendo assim, as normas da FIFA tratam de garantir que os contratos celebrados entre clubes e atletas sejam regularmente cumpridos. Para se ter uma idéia, o próprio clube pode ser impedido de inscrever atletas em competições nacionais ou internacionais por até um ano, caso induza um atleta a rescindir o contrato com o clube no qual esteja atuando.
Com base em toda a problemática aqui exposta deve ser analisada a atitude do atleta em se recusar a atuar pelo clube durante a vigência do contrato, às vésperas da semifinal da Taça Libertadores da América, sob a alegação de que eventual lesão poderia impedir sua transferência ao exterior. Não nos parece um motivo justo ou uma causa desportiva justificada... Ilegalidade? Nenhuma. Falta de profissionalismo, má-fé (no sentido jurídico do termo) e infração às normas da FIFA? Entendemos que sim, pois, afinal, para que servem os contratos?
PS - Após a conclusão deste artigo, o clube abandonado pelo atleta foi desclassificado na fase semifinal da competição que estava disputando. Não estamos insinuando que com ele em campo a história seria diferente, mas quem pode afirmar categoricamente o contrário?
Notas
Süssekind, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho. Ed. LTr, Vol. I, 14ª edição, 1993, p. 127.
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Ed. Atlas, Vol. 2, 2ª edição, 2002, p. 378.
Op. cit., p. 379.
"Em qualquer negócio, seja qual for a natureza, seja qual for o regime jurídico aplicável, o direito protege a boa-fé. Proteger a boa-fé significa preservar os contratantes de artimanhas e subterfúgios. Como o contrato é lei entre as partes, e uma delas pode - por sua vulnerabilidade ou hipossuficiência diante da outra - ter assinado o instrumento sem compreender por completo tudo o que nele se dispôs ou mesmo por vício, o direito ampara os interesses desse contratante fazendo prevalecer sobre a literalidade do contrato os reais objetivos pretendidos na contratação." (TJRS, APC 70000037408, j. 18.10.2000, Des. Paulo Augusto Montes Lopes, 16ª Câm. Cível. - grifamos).
Aguiar, Ruy Rosado. "A boa-fé na relação de consumo". Revista de Direito do Consumidor, Vol. 14, p. 24.
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