A seca, o sertanejo e a ginástica sueca na II batalha da borracha (1942-1945) |
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Mestre em Educação Brasileira- Faced/UFC Professora de Educação Física-UVA |
Ariza Maria Rocha Lima arizarocha@zipmail.com.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 58 - Marzo de 2003 |
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Podemos ver o corpo humano como uma obra inacabada, se considerarmos a diversidade de abordagens para o seu estudo. Uma delas é tentar apreendê-lo numa perspectiva histórica, que situa o corpo no contexto educacional, político, econômico e cultural em que o mesmo se encontra. Essa leitura possibilita conhecer as interpretações e os registros de uma história impregnada de significados, signos, valores, leis, crenças, sentimentos, imagens, mitos e comportamentos, pois, ao mesmo tempo em que são tatuadas as suas marcas hereditárias, culturais e históricas, o corpo é o locus da produção da identidade e, como tal, se torna alvo das relações de poder e saber.
Sob formas de controle e vigilância através dos regulamentos, códigos e saberes que disciplinam e corrigem as operações do corpo, podemos conhecer a história dos soldados nordestinos levados à Amazônia pela propaganda e discurso ideológico do governo de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, para atender à necessidade político-econômica de garantir a produção de borracha aos Aliados na II Guerra Mundial.
Encontra-se naquele episódio um propósito de reforma do corpo, na sua forma e condição humana, não apenas pelo aspecto da educação militar que envolve disciplinamento, controle e repressão, mas por sua pretensão de desencadear uma reforma social.
A indagação que originou este ensaio surgiu da curiosidade de saber por que os soldados da borracha, antes de irem para Manaus, faziam ginástica dirigida pelos militares, no contexto da seca de 1942, sabendo-se que o contingente recrutado era constituído pelos mais jovens, que eram selecionados por apresentarem melhores condições físicas e saúde. Acostumados a cuidar do gado, cultivar as lavouras e a subir em coqueiros e carnaubeiras, por que os sertanejos precisavam submeter-se a exercícos físicos, que foram criados para combater o sedentarismo de segmentos humanos socialmente afastados de atividades que demandam desgasto físico do corpo?
O que pretendemos aqui é fornecer, em largas linhas, uma discussão sobre o corpo do soldado da borracha na forma como foi representado, desenhado e idealizado como projeto do Governo de Getúlio Vargas e percebido em depoimentos de alguns ex-soldados, na literatura, de cordel e de ficção nas matérias veiculadas nos jornais e alguns estudos historiográficos
De flagelados da seca a soldados da borracha na amazôniaDurante a II Guerra Mundial, os países aliados entraram em pânico quando a Malásia e a Ilha de Borneo foram invadidas pelas tropas japonesas. Tal ação significava que o mercado oriental estava fechado para os aliados, o que representava um corte brusco em 97% de suas fontes de suprimentos, entre eles, a borracha, a Hévea brasiliensis.
As preocupações dos Aliados, principalmente dos EUA e da Inglaterra12, intensificaram-se23 com a crise da borracha34. Desesperados, os americanos adotaram algumas medidas tais como: maior controle de estoques, racionamento e suspensão da venda de carros pela falta de pneus. Além disso, organizou uma comissão especial para solucionar o problema, pois, além dos carros civis e bélicos, a produção de calçados, isolantes, cinturões, peças para rádio e telefones seria afetada.
Assim, em meio à urgência de encontrar uma solução, o governo brasileiro, através de um "boletim informativo", apontou a saída: " a existência de 300 mil árvores da Hévea brasiliensis, mais conhecida como seringa, espalhadas por toda a Amazônia" (O Povo, 21/6/1998). Tal notícia significava "um potencial de 800 mil toneladas anuais, numa área de quase um milhão de milhas quadradas, incluindo o Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia. A metade dessa produção já resolveria a crise dos Aliados" (O Povo, 21/6/1998). A borracha era uma necessidade prioritária para a guerra, emergindo daí o pacto:
...Enquanto eles arcavam com o ônus maior, envolvendo-se diretamente no conflito, o resto da América devia participar do esforço de guerra, no fornecimento de matérias-primas à indústria bélica e na manutenção da ordem interna, para se evitar alterações nos compromissos políticos e econômicos assumidos (O Povo, 21/6/1998).
Tal pacto ficou conhecido como os Acordos de Washingto45. O presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, assinaram os planos para a "operação de guerra" que iria ser travada na Amazônia. Estava traçada a Batalha da Borracha, assim nomeada em alusão à função que a produção de borracha tinha numa conjuntura de guerra.
O plano era de obter o máximo de borracha, em um mínimo de tempo. Para tanto, se fazia necessário o recrutamento de mão-de-obra para essa batalha. Os "soldados da borracha", como foram chamados, seriam heróis de guerra tão importantes, quanto aqueles que estavam nas frentes de combates da II Guerra Mundial, pois, o exército da borracha teria a missão vital de salvar os países aliados do colapso, face à falta da borracha para a indústria bélica. Com base nessa idéa é que foi construído o discurso e a propaganda de valorização do "Soldado da Borracha", para sensibilizar a opinião pública nacional e motivar os sertanejos pra o recrutamento.
Para organizar, orientar e fiscalizar a operacionalização do referido programa, em cooperação com o governo brasileiro, em cumprimento à sua parte no pacto, a Rubber Development Corporation instalou-se no Brasil e assumiu o comando do planoque possibilitaria ao governo americano a obtenção do látex amazônico. Para tanto, de acordo com os cálculos dos técnicos americanos, faltava a mão-de-obra, pois,
...Em toda a região Amazônica, deveriam restar apenas 35 mil seringueiros, remanescentes do primeiro ciclo da borracha. Era preciso trazer, e urgente, mão-de-obra para a extração de látex suficiente para resolver a carência dos países Aliados. Em troca, o Brasil tinha a promessa de ver resolvida uma lista de pendências: 20 tanques leves, 100 tanques de porte médio, quatro metralhadoras antiaérea e ainda US$ 200 milhões para equipamentos militares...(O Povo, 21/6/1998).
Enquanto isso, ocorria a seca de 1942, castigando os cearenses. Como sempre ocorrera em períodos anteriores de seca, a fome, a miséria e a morte se confrontavam com os sonhos da abundância, riqueza e água; ameaçando a classe social abastada pelo crescimento do número de mendigos, flagelados, epidemias, prostitutas e crimes nas ruas da cidade de Fortaleza. A solução consistia na rotineira decisão de descongestionar a cidade, mandando os flagelados da seca para outras regiões, como ocorrera na I Batalha da Borracha, quando foram enviados para a Amazônia. No entanto, com a repetição do flagelo, essa viagem, que antes era forçada, passou a ser decidida no sertão, pois, o retirante tinha as seguintes opções: a mendicância na capital, a II Guerra Mundial, a floresta da Amazônia ou a seca no Ceará.
Por um decreto-lei de fevereiro de 1943, Getúlio Vargas encorajava56 os sertanejos pobres a colaborar com o Brasil naquela luta patriótica, tornando-se Soldados da Borracha; em troca, além do dever cívico e patriótico, ele seria conhecido como o herói da Pátria e receberia uma viagem de caminhão, trem e navio por mais de cinco mil quilômetros até o "El Dorado", além do prêmio67 para aquele que conseguisse extrair mais "ouro branco",e ficavam "isentos" do serviço militar. As famílias dos voluntários, também, seriam amparadas, com alimentos, escolas e assistência médica. E mais:
De acordo com o plano, os sertanejos recrutados, por ocasião da estada temporária nas Hospedarias governamentais, receberiam assistência alimentar e médica, intensivas. Teriam todas as despesas pagas e às suas famílias, seriam assegurados recursos para que pudessem sobreviver durante as suas ausências. Havia, ainda, a previsão de assinatura de contratos legais para os trabalhadores e de assentamento posterior com suas famílias para efeito de povoamento da Amazônia (Cavalcante, 1993: 48).
Além dessas promessas, o voluntário que ia ser o soldado da borracha recebia, como presente de Getúlio Vargas o seguinte enxoval:
Uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandre, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros Colomy. No lugar da mala, um saco de estopa (O Povo, 21/6/1998).
Cavalcante (1993), pesquisando as notícias sobre o assunto nos jornais da época78, encontrou estampado nas primeiras páginas o clima de euforia "dos simpatizantes do plano do ditador Getúlio Vargas". À seguir, encontra-se um exemplo do espírito da empolgação daquele momento em artigo publicado por um jornal local e assinado por Murilo Mota,
A Guerra no extremo-oriente provocou a crise no fornecimento da borracha de que têm necessidade as indústrias norte-americanas.
Todo esforço industrial dos EstadosUnidos gira agora fóra do seu eixo habitual, da fabricação de objetos de fins comerciais, havendo enveredado para o de produção intensiva do material necessário á guerra. Em vez de automóveis, tanks.
A borracha é hoje em dia considerada o produto vegetal de maior aplicação no campo das indústrias. Afirmam os técnicos de economia, sem temor das cifras astronômicas que superam a 40 mil as utilizações atuais da preciosa goma elástica. (...)
Os Estados Unidos consomem da produção brasileira apenas cerca da metade ou seja, aproximadadmente, 10 mil toneladas por ano. No entanto, como já acentuamos, o consumo de uma semana nos Estados Unidos sobe atualmente a cerca de 40 mil toneladas. Por isso se pode ver quão largas e radiosas são as perspectivas da borracha brasileira na presente crise mundial, em que os portos do oriente se interditaram ao comércio americano. Cabe ao nosso governo tomar, sem perda de tempo, as providências necessárias ao acautelamento dos nossos interesses.
Se essas providências derem certas, preparem-se, desde já os cearenses para lavar novamente cavalo com cerveja e acender cigarros com cédulas de 500 mil réis (Murilo Mota, Jornal Correio do Ceará, 22/01/1942, In Cavalcante, 1993: 46-47).
Além do governo federal, o trabalho de convencimento ao sertanejo era feito por aliciadores profissionais, a mando dos patrões-donos de seringais no Amazonas, como também por padres89, médicos e advogados, jornais e os cartazes de Chabloz910. Entre morrer de fome ou morrer na guerra, fosse em campos nacionais ou internacionais, muitos fizeram a troca da seca dos sertões pelas chuvas do Norte.
À caminho do Amazonas, de caminhão, trem e navio, os arigós saíam dos mais diversos interiores, tais como Sobral, Quixadá, Iguatu, Crato e outros. A viagem, às vezes, durava três meses e os soldados eram obrigados a passar pelas mais diversas privações, tais como: as péssimas condições sanitárias-alimentares, maus- tratos, doenças e o perigo dos ataques de submarinos alemães.
Um órgão, o Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará (SNAPP), ficou com a responsabilidade do transporte dos soldados voluntários e que foi calculado, nas "contas do ministro da Mobilização Econômica para o Esforço de Guerra, o tenente-coronel João Alberto Lins de Barros, a US$100 por cabeça " (O Povo, 21/6/1998).
Quando o transporte demorava, significava que os alojamentos construídos para receber os soldados estavam com problemas de lotação em apressadas construções para alojar o elevado número de homens, gerando reclamações das condições destes lugares e muitas vezes conflitos, como ocorreu no Maranhão, como podemos observar no trecho abaixo,
No pouso do Maranhão, por exemplo, a comida ruim causou um motim. Zé Doutor, um amigo de João Amaro, foi morto por um soldado da guarda por causa da reclamação na hora do almoço. Revoltados com oassassinato, cerca de dois mil homens se rebelaram e foram a pé de Maracanã a São Luís, no Maranhão. Quase uma hora na estrada. O exército levou metralhadoras para acalmar o pessoal. O negócio era botar a tropa toda, e rápido, num navio para Belém. Mas nem sempre isso era possivel. O que normalmente acontecia eram longos e enervantes dias de convivência em pousos, nas cidades com postos de baldeação...(O Povo, 21/6/1998).
Se, para o Departamento Nacional de Imigração, esses conflitos tinham jeito de motim, para a população local, era arruaça e muitos passaram a chamar os arigós de " vagabundos, de come-e-dorme, temidos, com suas peixeiras e, mais tarde, facas jebond" (O POVO 21/6/1998). Assim, para abrigar tanta gente, às vezes mil em único dia, o jeito foi construir uma hospedaria-modelo, como por exemplo, a conhecida Getúlio Vargas, perto da igreja São Judas Tadeu, no bairro Olavo Bilac, zona Oeste de Fortaleza. A idéia era construir 40 pontos de pouso para alimentacão, banhos e dormida, além de inspeção e assistência médica1011. Nesses alojamentos exigiam-se disciplina e obediência ao chefe, pois entre os cercados de arames e vigias, era este que controlava e autorizava a saída dos voluntários soldados da borracha, pois, as liberações para um passeio na cidade representavam problemas com a população.
Uma operação grandiosa, como o recrutamento, organização, controle, transporte, alojamento e fiscalização de tantos retirantes em um curto espaço de tempo para uma distância tão grande só foi possível sob uma firme disciplina militar.
No Vale Amazônico, passaram de homens livres a escravos, pois, já chegavam devendo ao patrão, coronel-seringalista; além da dívida interminável, o soldado devia ao seringalista obediência, respeito e a própria vida. A exploração nos preços dobrados era garantia de aumento da dívida.
O patrão escolhia os mais fortes para trabalhar em seus seringais e registrava tudo o que gastava com os migrantes, desde a comida, a roupa, a arma, o material de trabalho, o transporte, o remédio até o suprimento da carência de mulheres naquela região. Jogados no meio da mata tinham que conviver com a malária, febre amarela, beribéri, icterícia e ainda ferimentos ou problemas de saúde decorrentes da intensa e árdua atividade:
... de madrugada, o arigó deixa a palAfita (o barracão), contruída em meio a floresta, para percorrer as "estradas de seringais". No caminho, ele vai cortando árvores, encaixando tigelas para aparar o látex e só depois volta para recolher a produção do dia. A espingarda pode salvá-lo de uma emboscada de índio ou de fera. O lampião, acoplado na cabeça com um suporte de alumínio, clareia o caminho ainda escuro. A faca sangra as árvores sem pertubar a produtividade...( O Povo, 21/6/1998).
A migração de um expressivo número de retirantes chamou a atenção da cidade de Fortaleza e eram freqüentes nos jornais as notícias da "leva dos flagelados", tais como a que segue:
MAIS UMA LEVA DE FLAGELADOS SEGUIRÁ 5ª FEIRA PARA O NORTE
700 PESSOAS EMBARCARÃO PARA A AMAZÔNIA
O Ceará continua a mandar para fora os sertanejos vitimados pela sêca. Por último, os embarques se sucedem quasi consecutivamente. É que temos milhares e milhares de sertanejos, sofrendo os horrores da fome e da negra miséria, espalhados pelos sertões, sem os auxílios e serviços de emergência dêem para todos. Só há uma alternativa e esta é a de enviá-los, em massa, para fóra, principalmente, para a Amazônia, contribuindo, assim, o Ceará, para a realização do plano do governo federal de colonizar aquele vastíssimo trecho do território brasileiro com elemento essencialmente nacional. Por outro lado, contribue o nosso Estado para a intensificação do plantio e extração da borracha, agora que o Brasil se prepara para cumprir os acordos financeiros celebrados com os Estados Unidos, relativos ao aumento da produção daquela matéria prima para abastecimento da grande nação do norte, ora envolvida na luta contra as forças da tirania e da opressão (Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 15/06/1943 In Cavalcante, 1993: 46-47).Não se pode precisar o número de nordestinos enviados para tal operação com destino ao Amazonas, pois, além do recrutamento organizado pelo Governo Federal, havia ainda os aliciadores a mando dos coronéis-seringalistas, no entanto, segundo o jornal O Povo (21/6/1998), calcula-se que foi em torno de 55 mil homens entre o período de 1943 a 1947. Tal volume de gente sendo enviada para trabalhar em outro Estado despertou nos latifundiários locais uma preocupação com uma crise na agricultura. Tal preocupação foi estampada no Editorial de um jornal local da seguinte forma:
Tornamos hoje ao assunto da imigração. Não existe atualmente assunto mais oportuno, mais palpitante para o Ceará. Nossas reservas humanas estão se escoando pelo porto de Fortaleza, rumo à Amazônia.
Deveríamos acrescentar: as nossas melhores reservas humanas! Os flagelados, para serem conduzidos com destino aos seringais, são submetidos a um processo de seleção. Somente o homem forte, musculoso, sadio, é aceito para o trabalho; o Estado que fique com o rebutalho e cuide dêle.
Reafirmamos o nosso ponto de vista anterior: não somos contrários à emigração, mas favoráveis à limitação dela. Da mesma maneira como vem sendo feita, com uma capacidade de embarque de cerca de 3.000 pessoas pro mês, o Ceará corre o risco de enfrentar terríveis conseqüências futuras.
A solução que se deve dar ao amparo das massas atingidas pela sêca, não pode ter em vista apenas o presente, mas também o futuro. Livramo-nos de um peso agora para amanhã senti-lo redobrado, não nos parece bom procedimento. Sem que aos outros Estados nordestinos, também atingidos pela catástrofe climatérica, caiba o encargo de despachar sertanejos para a Amazônia, estamos nos despojando de nossas comunidades rurais, com uma prodigalidade que atinge as raias da dispersão.
(...)Os cearenses é que saem nos maiores contingentes. Em Fortaleza, e não nas demais capitais nordestinas, é que a Madeira-Mamoré manda recrutar trabalhadores para as sua estrada de ferro e os lavradores paulistas, jornaleiros para os seus cafezais. Nossa sangria avantaja-se ás demais, numa desproporção bem pronunciada. Por que não reduzimos o volume dos nossos embarques humanos? Será que não existe outra forma de encarar a situação criada com a sêca? Como cearenses não podemos suportar sem um profundo sentimento de tristeza, o espetáculo doloroso que nos advém desse desbarato das nossas comunidades sertanejas.
(...) Mas, se não embarcar os flagelados o que o governo vai fazer com eles?...(Jornal Correio do Ceará, em 26/6/1942 In Cavalcante, 1993: 50-51).
Terminada a Guerra, a situação nos EUA se normalizou, conseqüentemente, o Brasil não precisava mais do seu exército de Soldados da Borracha e a vida voltou a sua rotina, ou pelo menos quase, pois, dos 55 mil homens enviados para a Amazônia, poucos conseguiram voltar para casa, além do que a distância entre as promessas e os discursos os soldados pagaram com seus corpos e vidas. Daquele período, Souza fez a seguinte análise:
Há apenas um intervalo nesses anos de doença e esclerose; o esforço de guerra em 1942, no sentido de aumentar o estoque de borracha dos aliados. Com a queda de 97% das áreas produtoras asiáticas nas mãos dos japoneses, os Estados Unidos, através de acordos com o governo brasileiro, desencadearam uma operação em larga escala na Amazânia: A "Batalha da Borracha". A operação provocou indícios e possibilidades de um retorno aos velhos tempos. Foram anos de euforia econômica, o dinheiro voltava a circular em Manaus e surgia até uma tímida especulação imobiliária, muito proveitosa, já que era bom negócio alugar casa para os funcionários dos diversos organismos que lidavam com a produção da Hévea.
Ao mesmo tempo que o país atravessava uma dura inflação, motivada pelo racionamento de bens de consumo devido à guerra. No Amazônas, novos empregos e bons salários começavam a ser oferecidos pelos diversos escritórios ligados aos investimentos públicos da Campanha da Borracha. Se bem que os gêneros alimentícios escasseassem, e um pequeno mas ativo mercado negro estivesse em franca atividade, havia uma distribuição controlada pelos americanos, impedindo que faltassem no mercado artigos de primeira necessidade. Os aviões americanos transitavam livremente e os amazonenses sentiam-se melhores e menos isolados.
Quando a guerra acabou e os americanos foram embora, a cidade caiu novamente no marasmo. De todos os investimentos federais voltados para o desenvolvimento da infra-estrutura e indústria-base, a Companha da Borracha é o único que não tem prosseguimento, cessando ao mesmo tempo que a guerra chega ao fim. A Campanha da Borracha não era, na verdade, um plano de valorização regional a longo prazo, embora assim se apresentasse, mas conseqüência do esforço de manter a demanda da borracha e outras matérias-primas da selva, em nível satisfatório às exigências do mercado internacional dominado pelos Estados Unidos. Depois de 1946, os seringais são novamente abandonados, para que os outros investimentos federais tenham prosseguimento, como a Usina de Volta Redonda e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, para somente citar dois exemplos. Mas, enquanto a festa durou, os provincianos se esmeraram na farsa. (...). O Amazonas abandonado era "A terra do futuro, o Vale da promissão na vida do Brasil de amanhã". Falava de "exploração nacional das culturas, concentração e fixação do potencial humano, pois a Marcha para o Oeste integraria a região "no campo econômico da nação, como fator de prosperidade e energia criadora"... (Souza,1977:144-146 In Cavalcante, 1993:59-60).
O corpo do arigó na história da AmazôniaNa luta para recrutar o maior número de soldados possível, o Governo Federal abriu, também, postos de alistamento "com direito ao salário de meio dólar por dia e alojamento até a partida, a tropa vivia sob firme disciplina militar" (O Povo, 21/6/1998).
A convocação para o recrutamento no exército da borracha destinava-se aos cearenses pobres. O governo federal apelava para os sentimentos cívicos e patrióticos, além dos valores "lendários do sertanejo", como por exemplo, identificando o vaqueiro, o aventureiro, o sertanejo com o "forte", " bravo" e "corajoso", o tipo ideal para defender a humanidade. Tais argumentos eram visíveis nos jornais, como por exemplo, o que segue abaixo, O Forte sertanejo cearense
Realmente, o sertanejo é normalmente um forte que se não pode comparar com esses verminados e jecas-tatus de certos estados que gozam de elevada e permanente pluviosidade. A principal indústria do sertanejo é a criação do gado bovino; e, para ser vaqueiro, a moda do nordestino, cumpre ser vigoroso. Para desbravar as matas amazônicas, colonizar toda a parte brasileira da bacia do rio-mar, "amansar a seringa", cercado de mil perigos ( de que o menor era o índio reacionário), para conquistar o Acre e resistir as secas tremendas, é indispensável ser forte, vigoroso de corpo e de alma.....(José Luiz de Castro, Correio do Ceará, 02/03/1942-p 9/10 In Cavalcante, 1993: 9).
Nos desenhos de Chabloz, o estímulo para incentivar o recrutamento dos retirantes da seca; assim, vários mapas dos biotipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos e a decorar a publicidade dos caminhões foram criados. Nos cartazes, havia o desenho da anatomia de um homem normal chamado de Normolíneo que era comparado aos tipos de corpos nordestinos (Disgenopata, Mixotipo e Brevilíneo). Suas características eram:
O normolíneo apresenta pêlos e pescoço longo
Valor tronco= valor membro, valor torax=valor abdômem;
Os pêlos podem não serem abundantes, porém obedecem ao tipo de implantação masculina;
O pescoço é um tanto longo, única nota desharmonica, sob o aspecto morfológico;
Biotipos Nordestinos:1-Disgenopata apresenta traços de inferioridade.
As dismorfias são elementos frequentes. Está aqui presente o joelho varo;
Existem outros sintomas de inferioridade; implantação feminina dos pêlos (cabeça e pube);
Também as faces deste indivíduo exprime uma inferioridade psíquica, que ele, de fato, um débil mental.
2-Mixotipo- tronco longo e pouco volumoso mais próximo do "normal'.
É também um tipo aproximadadmente central;
O tronco, apesar de longo não é tao volumoso;
Os membros inferiores são relativamente curtos.
3- Brevilineo- ventre proeminente, ausência de pêlos desvaloriza o tipo.
Ventre proeminente, ptósico;
Panículo adiposo mal distribuído;
A ausência de pêlos não tem valor aqui, por se tratar de um melanodermo.
Com base nas fotografias referentes ao fato, observou-se que para corrigir o corpo do nordestino, considerado nos desenhos como "biotipos inferiores", os "Soldados da Borracha" faziam sessões diárias de ginástica. Constatou-se que, se tratava da ginástica sueca, pois, esta era dividida por objetivos a serem alcançados, destacando o caráter higiênico e a concepção anátomo-fisiológica do homem. Soares explicitou os objetivos da ginástica sueca na seguinte passagem:
Ginástica pedagógica ou educativa - aquela que todas as pessoas, independentemente de sexo ou idade e até mesmo, de condição material e social poderiam praticar. O seu mais elevado objetivo seria o de desenvolver o indivíduo normal e harmoniosamente, assegurando a saúde e evitando a instalação de vícios, defeitos posturais e enfermidades.
Ginástica militar - deveria incluir a ginástica pedagógica, acrescida de exercícios propriamente militares tais como o tiro e a esgrima cujo objetivo era preparar o guerreiro que colocaria fora de combate o adversário.
Ginástica médica e ortopédica - que também deveria estar baseada na ginástica pedagógica, visando eliminar vícios ou defeitos posturais e curar certas enfermidades através de movimentos especiais para cada caso encontrado.
Ginástica estética - que assim como as demais estaria baseada na ginástica pedagógica e, para além dela, procuraria o desenvolvimento harmonioso do organismo e seria completada pela dança e certos movimentos suaves os quais proporcionam beleza e graça ao corpo (Soares, 1994: 65).
Para o exército da borracha eram selecionados os mais jovens e saudáveis e os requisitos eram os mesmos para o recrutamento dos soltados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como podemos observar pela matéria no jornal abaixo,
Aberto, desde ontem, o voluntariado para preenchimento de cargos existentes(...) Serão exigidas as seguintes condições:
ser brasileiro nato;
Ter boa conduta comprovada;
Revelar aptidão física para o serviço militar
Estar entre 17 e 25 anos de idade;
Não ser reservista de 1º ou 2º categorias;
Não estar chamado para incorporação no Serviço do Exército ou da Marinha de Guerra;
Ser solteiro, ou viúvo, sem filhos (Jornal Unitário, Fortaleza 24.03.1943)
Visando ao fortalecimento dos soldados, ficavam à "disposição dos soldados da borracha as quadras de esporte dos quartéis" (Jornal Unitário, 22/12/1942), além de um trabalho educativo sobre cuidados com o corpo-boa alimentação, higiene, exames médicos periódicos. Este trabalho educativo tinha as seguintes funções: primeiro, o interesse de que os voluntários tivessem boa disposição e saúde para o trabalho duro da extração do látex, mesmo que não fossem oferecidas tais condições. Segundo, a intenção era confundir a condição de trabalhador com a de soldado e os campos de trabalho passam a ser campos de batalha. Os termos exército, alistamento, recrutamento, soldado, batalha, guerra estão sempre presentes. Terceiro, o disciplinamento militar, presente desde o recrutamento como o transporte dos voluntários tem a seguinte doutrina:
Na doutrina do Exército, ser disciplinado é aceitar com convicção e sem reservas a necessidade de uma lei comum, que regule e coordene os esforços dos seus quadros. Por isso, a educação militar considera fundamental o princípio da disciplina, que é a completa submissão aos preceitos regulamentares e a obediência sem hesitação aos chefes,...Nesses termos, o Exército pode ser entendido como uma instituição de obediência e comando...(Ferreira Neto, 1999:39).
Com este propósito, foram construídos os "Dez mandamentos" do exército da borracha, que são:
Cumpriremos as instruções que nos forem legalmente enviadas, sempre recebidas com entusiasmo, procurando produzir mais borracha, porque a extraordinária ação do Presidente Vargas, como uma voltagem de potencial infinito, tem o milagre e a força de contagiar todos os brasileiros para a unidade e a salvacão da Pátria;
Cumpriremos essas instruções, ingressando alegremente nas selvas, porque a palavra do Presidente Vargas, descendo do Catete e o nosso labor, subindo dos seringais, formam o mesmo hino da raça que distribui igualmente o seu sangue e os seus benefícios nos palácios, nas usinas e nas barracas.
Cumpriremos essas instruções, explorando e defendendo a imensidade das árvores, porque o presidente Vargas é um apóstolo da humanidade redimida, porque pertencemos aos 300 milhões de americanos que transformam o seu continente num Sinai, para as novas tábuas da lei e os novos decretos dos homem;
Prometemos convergir todos os nossos esforços na vitória da produção, certos que a nossa inércia seria uma traição aos Aliados que se batem pela liberdade, a irmãos que foram sacrificados pela vilania adversária, aos nossos aeronautas e marinheiros que exercem vigilância no litoral contra tocaias dos submarinos;
Prometemos trilhar diariamente as estradas das seringuerias, porque enquanto honramos os compromissos do Brasil que o Presidente Vargas firmou perante o mundo, também realizamos uma outra de economia, integrando o Amazonas à economia nacional;
Prometemos cumprir as ordens do governo da República, porque arregimentados como soldados, trabalhamos como homens livres, à luz de contratos assinados no Ministério do Trabalho com as garantias das leis sociais, benemerência do Estado Nacional;
Juramos permanecer nos seringais para o que formos designados porque são quartéis do Brasil e deles não sairemos, cometendo crime de deserção, como não sairíamos de uma frente de batalha;
Juramos vive em máxima harmonia e disciplina, ao lado de seringalistas e seringueiros veteranos, porque são soldados da mesma batalha brasileiros dos mesmos ideais porque descendem de pioneiros e desbravadores que soberam resistir e vencer, abrindo caminho para as investidas de hoje;
Queremos proclamar em juramento perante Deus, antes a Bandeira e o Hino da Pátria, o nosso espírito de sacrifício e lealdade ao presidente Vargas de quem cumpriremos as ordens, sejam quais forem as circunstâncias
Queremos tornar bem claro que, pela vida ou pela morte, tudo faremos e aceitaremos em bem do Brasil, do continente americano, das Nações Unidas, na guerra universal contra a tirania e a opressão (O Povo, 21/6/1998).
Nos depoimentos de alguns seringueiros, publicados pelo jornal O Povo, encontram-se os versos de Raimundo de Oliveira, 68 anos, cordelista e ex-soldado da borracha, que sintetiza em versos a saga dos sertanejos:
A origem da minha viagem / a esta santa terra/ é porque em quarenta e três / O Mundo estava em guerra/ Foi a causa de tudo/ Que nesta História se encerra/Eu já ia para a guerra/ Já estava sorteado/ Mas havendo necessidade/ Para a borracha fui tirado/ O bem da Pátria também era/ Um bom serviço prestado/ Sou filho do nordestino, Natural do Ceará; vim embora para o Acre para a seringa cortar, produzir Borracha, ganhar dinheiro, para a sua Terra de origem um dia poder voltar/ (..) Fui seringueiro formado/ Vivendo com os índios em galhos de árvores trepado/ Comendo frutas silvestres/Comendo anta e veado./ O seringueiro é um homem forte/ De uma coragem tamanha/ Enfrenta onça e enfrenta cobra lá no alto / Da montanha, pensando no seu futuro / Corta de noite no escuro, mas, coitado, nada ganha/ (...) Hoje eu não corto mais. (Raimundo de Oliveira, cordelista, O Povo, 21/06/1998).
Considerações FinaisNa história dos arigós, observamos a história do corpo em ligação com um projeto político, que nos revela o tratamento que as autoridades deram ao "corpo" do nordestino. Assim, nestas poucas páginas foi possível expor os "elevados objetivos" retóricos da política, as circunstâncias, as privações e as racionalizações, sob as quais o governo brasileiro enquadrou o corpo do soldado da borracha.
As tentativas das autoridades políticas, religiosas e civis de regulamentar os corpos dos retirantes da seca através dos discursos, das promessas, dos exercícios e da coerção física eram direcionadas para reformar o corpo no nordestino. Isso significava uma intenção muito mais ampla de governar as pessoas, através do controle de seus corpos e nelas incutir a obediência física ou a educação como um processo diante de um estereótipo cultural profundamente estabelecido fosse, nos cartazes de Chabloz, na imagem que se fazia dos rudes nordestinos ou na representação lendária do nordestino.
Os interesses higiênicos, embora muito alardeados, não eram o foco do governo federal, que visava apenas a submissão e a obediência, pois esta era a forma para assegurar uma melhor ordem moral e social; desse modo, através de punição corporal, o objetivo era policiar o corpo para sustentar um estado de guerra, associando educação e disciplina militar com a ginástica de inspiração médico-higienista e militar-nacionalista.
Embora o Estado trabalhasse para produzir homens dóceis e uma força de trabalho obediente, através da disciplina sistemática dos corpos dos sertanejos, este mesmo corpo, também, tem sido signo de resistência, pois, apesar de muitas marcas e cicatrizes, o nordestino com a sua cultura desenvolveu sua linguagem corporal, através dos seus cânticos, poesia, folclore e forró, é uma atitude político-contestatória, apesar de muitos pesares.
Notas
"Primeiro a Inglaterra precisava de divisas para enfrentar a guerra. Em segundo lugar, os ingleses tentavam evitar com isto que os americanos montassem uma poderosa industria de borracha sintética. Também estava em jogo um possível apoio à causa anglo-francesa. Mas, apenas três meses após o ataque a Pearl Harbour- Porto das Pérolas, no Hawai, os EUA proibiam a venda de pneus. Fora da ocupação japonesa, os Aliados ainda tinham como alternativas a Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina" (O Povo, 21/6/1998).
" Antes disso acontecer,no entanto, os EUA tinham feito alguns esforços para evitar um possível desastre. Alarmados pela extensão e intensidade do conflito no Pacífico e temendo um colapso civil e militar, os EUA intensificaram o seu programa de procura e compra da borracha. A iniciativa aumentou o estoque, principalmente através de permutas com a Inglaterra. O negócio era trocar borracha crua por produtos agrícolas, como algodão. O embaixador inglês Lord Halifaz tinha motivos suficientes para satisfazer as necessidades de borracha da indústria americana" (O Povo, 21/6/1998).
De acordo com o jornal, "a crise da borracha atingiu a todos os Aliados. A Inglaterra tinha apenas 100 mil toneladas de estoque. O Canadá, 50 mil. A Austrália, 20 mil" (O Povo, 21/6/1998).
"Acordos de Washington-Sem estoques de borracha e diante de um colapso da principal matéria-prima para indústira bélica, os Estados Unidos assinaram os Acordos de Washignton com o Brasil. O objetivo era extrair da Amazonia, o maior reservatório de látex do Planeta, 100 mil toneladas de borracha por ano. Por causa disso, um plano de atração de mão-de obra foi colocado em ação. Cerca de 55 mil nordestinos foram levados pelo Governo Federal para trabalhar na floresta" (O Povo, 21/6/1998).
Em pauta, um curto trecho do discurso de Getúlio Vargas quando da inauguração da Campanha Nacional da Borracha: "Brasileiros! A solidariedade dos vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória" (O Povo, 21/6/1998).
O maior fabricante de borracha durante o ano levaria 35 mil cruzeiros (O Povo, 21/6/1998).
São eles, os jornais Unitário (1943 e 1945) e o Correio do Ceará (1942).
Tal notícia foi encontrada no jornal O Povo (21/6/1998) da seguinte forma : " Em Fortaleza, onde o trabalho cresceu, o ministro João Alberto realizava missas campais para soldados e familiares. O padre Tiago Zuarthoad era o assistente eclesiástico do Semta. A benção era notíca no jornal Unitário no dia 31 de março de 1943."
" Em 1942, o artista plástico suíco Pierre Chabloz foi contratado pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta). Como chefe da Divisão de Desenhos Publicitários na Campanha Nacional da Borracha teve as seguintes tarefas: criar quatro grandes cartazes para incentivar a produção de látex. Depois, vários mapas de biotipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos e a decorar a publicidade dos caminhões que, periodicamente, levariam as turmas contratadas até metade do caminho" (O Povo, 21/6/1998).
"Os exames de rotina se limitavam a diagnosticar se o soldado havia ou não contraído doenças sexualmente transmissíveis. No ato da admissão, banhos e raspagem de cabelo. Os incapazes e doentes eram dispensados" (O Povo, 21/6/1998).
Referências bibliográficas
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