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Lazer: entre o cidadão e o consumidor.
Notas esparsas

   
Universidade Estadual de Maringá
(Brasil)
 
 
Maria Izabel de Souza Lopes
beltramilopes@wnet.com.br
 

 

 

 

 
Conferência apresentada no 1º ELAP - Encontro do Lazer do Paraná. São José dos Pinhais, Paraná, maio de 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 58 - Marzo de 2003

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O lazer hoje

    Nunca se debateu tanto sobre o lazer como atualmente. Embora o tema não seja novo e tivesse permeado a maior parte do séc. XX, penso que estamos diante de novas, polêmicas e intrigantes abordagens. Tomando o lazer, descritivamente, como qualquer atividade prazerosa que o homem pode realizar ou desfrutar, pode-se dispor de um vasto campo de investigação e inúmeras interrogações. Entretanto, nesses termos e neste espaço não é possível dar conta de todas as suas inserções e por isso vamos tomá-lo apenas na perspectiva sócio-LÓGICA fazendo algumas incursões atrevidas em outros campos.

    O surgimento e consolidação do mundo capitalista em alguns países europeus, qualquer atividade prazerosa e descompromissada foi severamente combatida principalmente pelos puritanos europeus, criando uma nova ascese contrária àquela que levava a desfrutar espontaneamente a vida e tudo que ela teria para oferecer.

A aversão do puritanismo pelo esporte, mesmo entre os quakers, não era devido a uma questão de princípio. O esporte tinha que servir a uma finalidade racional: ao restabelecimento necessário à eficiência do corpo. Mas, era-lhe suspeito como meio de expressão espontânea de impulsos indisciplinados, e, enquanto servisse apenas como diversão ou para despertar o orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo, era evidentemente, estritamente condenado. O impulsivo gozo da vida propiciado tanto pela vocação, como pela virtude, era, como tal, também considerado contrário à ascese racional, quer se apresentasse na forma do salão de jogos ou de baile senhorial, quer na forma do tablado e da taberna do homem comum. (Weber, 1983:120)

    No mundo do trabalho, fordista-taylorista (Taylor, 1987 e Ford, 1926), o lazer apareceu como atividade inútil para os trabalhadores já que a rotina fabril não combina com o descompromisso do prazer. O tempo da vida prioriza, nessa ordem social, o tempo de trabalho cujas jornadas passaram de extensivas (longas lidas de 14 a 16 horas inclusive para crianças e mulheres) para intensivas (redução das jornadas com aumento da produtividade cronometradas das tarefas). Assim não só o trabalho é controlado pelo relógio, mas a vida cotidiana também passa a ser regido por ele já que todas as demais atividades (sociais, culturais e religiosas) se tornam subordinadas ao tempo de trabalho. Mas, ao longo do século XX, a qualidade de vida engendrada pela produção social levou a que todos os segmentos sociais reivindicassem também tempo e condições para a fruição dos bens culturais. Eis que tais reivindicações oscilam hoje entre o direito do cidadão e o serviço ao consumidor de lazeres. As políticas de lazer decorrentes dessas demandas são hoje produto da apropriação de manifestações culturais e administradas como produtos alienados.


Tempo (de trabalho) e Conteúdo (conhecimento alienado)

    Temos duas questões: o tempo e os conteúdos que aspectos não excludentes. Como já afirmamos, o tempo foi uma condição para que houvesse produção em larga escala baseada em atividades cronometradas cujo objetivo, além da acumulação do capital, visava também atender a uma população crescente. Quanto mais horas se trabalhava mais se produzia. Nessa condição o trabalhador e os que viviam de seu trabalho não tinham tempo para outros afazeres que não fossem os de trabalho.

    Entretanto, para que houvesse essa produção em massa era necessário que houvesse consumidores. O próprio Ford (1926) encontrou a saída: os trabalhadores teriam que ser também consumidores. Aumentou os salários de todos, obrigou outros empresários a fazer o mesmo e os trabalhadores começaram a ter acesso a produtos até então impensáveis. Mas para usufruí-los era necessário tempo. Assim, o conjunto dessas situações levou a que grande parte dos trabalhadores ganhasse, ao longo do séc. XX, melhores salários e mais horas livres do trabalho representado na redução da jornada de trabalho, no descanso semanal (remunerado posteriormente), nas férias de ano em ano, na aposentadoria e outras conquistas indiretas tais como melhoria nas condições de trabalho. Outros direitos conquistados permitiram a esse segmento aprender mais não só sobre sua profissão ou qualificação, mas também sobre novas fruições. O mercado de consumo crescia para atender a todo tipo de necessidades materiais e espirituais imediatas e a novas necessidades vinculadas ao prazer pessoal ou ao conforto da vida. A população se torna mais educada, com mais saúde e mais exigente.


Democratização da fruição

    Do outro lado, o dos que já usufruíam desses confortos ou prazeres se vêem na condição de ter que dividir com mais pessoas seus confortos. A história mostra que isso não se deu sem conflitos. Houve, e ainda há, uma resistência tenaz contra a popularização de práticas de lazeres. Nesse sentido, duas características se desenvolveram:

  • A instituição de diferenças (ideologia) qualitativas em atividades fruitivas e,

  • A mercantilização da oferta tornando seu fruidor apenas quem tivesse condição de compra.

    Assim nasce a indústria do lazer como desdobramento do mundo da produção industrial e de serviços criadores de necessidades de toda natureza para que possa atender, inclusive distintamente no interior dos segmentos sociais, crianças, adultos, velhos e outros.

    A indústria do lazer, ao se tornar um produto de consumo, faz de seu produtor um sujeito do mundo da produção dá ensejo a inovações tecnológicas, sociais e ambientais e estimula novos desejos. Assim:

  • Surgem novos empregos, com todas as implicações sociais e econômicas conflitivas existentes no mundo do trabalho;

  • São criadas novas profissões, novas qualificações, novas especializações;

  • São descobertos novos objetos de estudo com campos teóricos-metodológicos particulares.

  • Vê-se expandir e inovar os meios de transporte como trens, carros, ônibus, motos, bicicletas;

  • Vemos emergir construções especiais como verdadeiros templos de lazer do passado e do presente tais como museus, teatros, cinemas, hotéis, shoppings, ruas especiais, praças, campos, ginásios e quadras esportivos; livrarias, restaurantes, cafés, charutarias, bares;

  • São produzidas novas indumentárias tais como: roupas e calçados e outros acessórios pessoais. A moda desportiva torna-se dominante.

  • Surge uma nova categoria de fabricantes/negociantes/proprietários que são os empresários e os empreendedores do lazer: construtores, industriais, prestadores de serviços, jornais e revistas especiais, profissionais como professores, técnicos, engenheiros, editores, administradores e, claro, os voluntários.

  • Há uma gama de recursos em dinheiro, tecnologia e conhecimento sendo movimentado no mundo para dar conta dessa nova situação de vida que é a fruição do lazer.


Direito ao Lazer

    Mas se há essa magnitude que se transformou na atividade mais diversificada e de maior rentabilidade do planeta ficou ainda uma questão em aberto: o direito ao lazer.

    Havia um segmento que detinha, privilegiadamente, a fruição das artes, do esporte, da política. Afirmamos que a extensão dessa cidadania política e cultural às massas excluídas (mulheres, pobres, trabalhadores, portadores de deficiência, crianças, velhos) não foi sem resistência das elites privilegiadas. Mas se a extensão à fruição se deu muito mais pelo mercado pondo à disposição dos novos consumidores serviços que pudessem adquirir, a questão tem outra dimensão quando se trata do cidadão usufruindo um direito.

    O conflito/confronto entre consumidor e cidadão é um aspecto relevante a ser pensado no âmbito da oferta e da demanda sobre lazeres. É também uma faceta bastante camuflada pelas políticas sociais de lazer dirigidas às massas.

    O lazer como ócio, cresceu como negócio e quem o usufrui o faz, na maior parte das vezes, como alienado. São as contradições decorrentes desse fenômeno social que precisam ser detectadas, lidas, analisadas e problematizadas. Até então, o tema vem sendo discutido da forma como segue.


Consumidor e cidadão

    Retomando a questão do tempo verifica-se que a importância da economia do tempo sempre foi conhecida por quem soube tomá-lo de outros a seu favor. Conforme Ramos (1981), o mundo do trabalho dicotomizou o tempo. Buscou-se assim, minimizar a contradição entre tempo livre e tempo de trabalho fazendo acreditar que ambas situações podiam ser compatíveis. O autor, entretanto, denuncia a falsidade dessa conciliação quando afirma que na verdade o que vai haver é um tempo liberado da própria condição do trabalho alienado como “mal necessário” e não como sua superação. Marcuse (1968:58-9) afirmava que o tempo de trabalho, que ocupa maior parte do tempo de vida de um indivíduo, é um tempo penoso, visto que o trabalho alienado significa ausência de gratificação, negação do princípio do prazer.

    Podemos, partindo dessas observações, refletir sobre os seguintes pontos:

  • A prisão temporal significa a prisão da imaginação.

    Ramos(1981) trata da função libertadora da imaginação e de seu perigo para os segmentos dominantes, como a imaginação [que] pretende antecipar o depois no agora, tornar presente a mudança (p.52) o que é de domínio burguês. A imaginação precisa de liberdade para se realizar e, nesse sentido é tão perigosa para uma determinada ordem como o foi o riso para o século XII.

    Embora a redução do tempo de trabalho já tivesse se tornado uma realidade, até mesmo para os economistas clássicos, tornou-se para a classe dominante um problema manter a missão civilizatória do mundo burguês, calcado no tempo de trabalho, num mundo que se anuncia com um aumento de tempo livre. Entretanto, a elite aprendeu, e depressa, a lidar com esse “problema”. Como disse Marcuse (1968: 60):

Só quando se atingiu o mais recente estágio da civilização industrial, quando o crescimento da produtividade ameaça superar os limites fixados pela dominação repressiva, a técnica de manipulação das massas criou então uma indústria de entretenimentos, a qual controla diretamente o tempo de lazer, que o Estado chamou a si, diretamente a execução de tal controle (...).

  • O controle do tempo e forjou políticas sociais reguladoras

    O controle do tempo passa a se dar através de políticas sociais reguladoras. O reconhecimento desse tempo não é dado como tempo livre, emancipado, mas como tempo liberado, medido entre o tempo que sobra entre as jornadas de trabalho tido “como mal necessário”, descontado o tempo de repouso e de alimentação. Por isso ele incide nos tempos previamente determinados pelo ritmo de trabalho semanal (domingos), anual (férias) e feriados esporádicos. É sobre esse tempo liberado que as políticas sociais de lazer, através dos diferentes serviços e espaços de entrenimentos, se inserem para o conjunto da população trabalhadora.

  • O redimensionamento do tempo por um novo conteúdo.

    O redimensionamento do tempo - livre e de trabalho -, por conquista ou por desemprego, é um indicador novo e pode repor na pauta do movimento social um novo valor societário e reorganizativo para a fruição do lazer. De Masi (1999:12) afirma que a eventualidade de suprir a humanidade de bens e serviços de que ela precisa, com um uso mínimo de trabalho humano, implica a necessidade de se projetarem novas formas “políticas” de alocar as tarefas e de distribuir a riqueza.

    O que pensam, hoje, as organizações de trabalhadores? Se esta é uma questão complicada para os organizados trabalhadores do mundo rico o que se pode dizer dos não-ricos? Distribuir riqueza é uma necessidade imperiosa e ela não virá somente mediante salários porque, ainda segundo De Masi (1999:12):

Tendo em vista que um número sempre maior de pessoas irá usufruir bens e serviços sem se envolver em sua produção, serão preciso novas formas de bem-estar (welfare), para atender às necessidades daqueles que não trabalham, e novas formas de gratificação, para atender às necessidades daqueles que trabalham.

    Entretanto, há que se ficar atento. Um novo ordenamento baseado no reconhecimento da redução do tempo de trabalho pode ter diferentes matizes:

  1. pode estar voltado para um novo projeto de inclusão social apontando para o surgimento de um novo homem, passando pela necessária melhoria de sua qualidade de vida, calcado em sua emancipação e reconhecimento da auto-determinação

  2. pode permanecer, como estamos verificando, na intensificação do consumo desse novo e fascinante “produto” alienado.

    O espectro social, sob a ótica do lazer, é complexo porque as categorias de análise sob as quais está assentado ainda não estão esgotadas. Avançar para uma condição de cidadania maior do que a do consumidor exige romper com o preconceito e desprezo arraigado, em nossa cultura, à preguiça, ao prazer, à criação.

    No entanto, a mesma condição de consumidor forja, contraditoriamente, a questão da cidadania. Por que?

    Pelo lado da demanda a sociedade civil está não só se tornando complexa, mas se educando. A população, nos seus diferentes segmentos (homens, mulheres, étnicos, portadores de deficiência, crianças, jovens, adultos e velhos), países desenvolvidos e em desenvolvimento, está aprendendo, se organizando e exigindo qualidade nos serviços ofertados.

    Pelo lado da oferta já se acena para a preocupação da gestão social com todas as implicações de um novo welfare (bem estar) envolvendo o setor privado, público e terceiro setor. Isso significa que se já avançamos bastante no aprendizado de como produzir, a estamos ainda muito lentos na arte de aprender a distribuir.


Referências bibliográficas

  • DE MASI, D. Desenvolvimento sem trabalho. 2ed. São Paulo: Esfera, 1999

  • FORD, H. Minha vida e minha obra. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1926

  • LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Kairós, 1980

  • CHAUÍ, M. “Introdução”. In: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.9-56.

  • MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968

  • RAMOS, C.A. “História e reificação temporal”. In: História : Questões e Debates. Curitiba 2(2): 37-62, 1981

  • SUPEK, R. “A época da automatização vista por Marx”. (Artigo publicado no número de abril, 1967, da revista juguslava Praxis. Tradução sobre a versão francesa.).s/d.

  • TAYLOR, F.W. Princípios de administração científica. 7ed. São Paulo: Atlas, 1987

  • THOMPSON, E.P. “O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo”. In: SILVA, T.T. (org.) Trabalho, educação e prática social. Por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991, p.44-93.

  • WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 3ed. São Paulo: Pioneira, 1983.

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