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O Futebol como Objeto de Investigação Acadêmica

   
Professor do Curso de História das Faculdades Objetivo (Manaus, AM)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia
Universidade Federal do Amazonas
 
 
Tarcisio Serpa Normando
tsnormando@bol.com.br
(Brasil)
 

 

 

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 58 - Marzo de 2003

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I. A polêmica literária

    Nos idos dos anos sessenta o jornalista Sérgio Porto açoitava a elite brasileira com suas observações incisivas, boa parte delas embebidas em uma implacável verve humorística. Assumindo o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, cuidou de revelar o festival de besteiras que assola[va] o país, identificado por ele no termo febeapá. Nesse ínterim, escreveu uma das mais provocantes frases para aqueles que se interessam em analisar o futebol. Afiançava Ponte Preta: Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol ou não sabe o que é lógica.

    Esta assertiva bem humorada pode servir de pontapé inicial para pensar o futebol enquanto objeto de análises científicas, suscitando reflexões que possam dar a medida da lógica apregoada por Ponte Preta, remetendo a uma questão de fundo: seria realmente o futebol tão imponderável em sua constituição e em sua prática que desafiaria quaisquer modelos explicativos?

    Para buscar esta resposta se faz necessário entender como este esporte, que atrai amantes na ordem das centenas de milhões de pessoas e que “só admite dois sentimentos fortes e antagônicos: o amor e o ódio”1, foi percebido na sua dinamicidade e na sua temporalidade própria.

    As principais cidades do Brasil que, na passagem do século XIX para o XX, viviam um momento de vitalidade econômica - como, por exemplo, Rio de Janeiro, São Paulo e Manaus -, viram fervilhar entre seus jovens as práticas esportivas mais variadas: o rowing (remo), o tênis, a luta greco-romana, o turfe, a pelota, o boxe, o ciclismo, a esgrima, o golfe, a patinação, o hipismo, o bilhar, o pedestrianismo, além do rugby, do cricket, do base-ball, do hand-ball, do tiro ao alvo, dos alteres, da peteca, do automobilismo2. Algumas destas modalidades rapidamente espraiaram-se por setores da sociedade local. O football - tanto quanto os demais esportes trazidos por migrantes de boa estirpe do velho mundo -, enquadrou-se nos anseios elitistas de transformar as cidades brasileiras segundo representações das metrópoles européias. Para tanto, absorveram os elementos necessários para identificação da elite urbana com uma vanguarda científica e/ou artístico-cultural. Nesse sentido, jogar futebol simbolizava estar conectado com um novo modelo de homem e, também, numa perspectiva macro, com um novo modelo de sociedade, no qual as otimizações físicas e urbanas davam a medida de inserção num padrão “civilizado”.

    Assim, o homem que viveu na Belle Époque, presenciou uma época de estranhamentos, na qual os emblemas de modernidade - como o futebol o era -, causavam grande inquietação, pois moldavam uma nova paisagem que desconstruia modelos e apontava para novas formas de interação social3.

    O jogo de bola envolvia um significativo contingente de jovens maravilhados com a dinamicidade daquela prática esportiva que aliava ritmo e vibração, movimento e velocidade de maneira bastante peculiar. Razões não faltavam para que a assistência se tornasse cada vez maior: a plasticidade inerente a um jogo que excluía, exceto para o goleiro, o uso dos membros de maior habilidade motora; a postura dos players em campo - um goleiro, três defensores, dois homens apenas no meio campo e cinco para atacar - voltada prioritariamente para o sucesso da coletividade; por um lado a incessante busca por gols que garantiriam as vitórias; por outro, os placares não muito dilatados que marcavam a emoção da disputa, não raras vezes, até o trilar final do apito do juiz. Se em 1901 o público presente na primeira partida disputada no Rio de Janeiro era menor que o número de atletas em campo, já em 1905, no campo do Fluminense, cerca de mil e quinhentas pessoas aglutinaram-se para ver um match entre brasileiros e ingleses4. Em 1914, o jornal O Tempo, de Manaus, já chamava atenção das autoridades para demora dos bondes que se dirigiam, nos domingos, ao Bosque Municipal - um dos principais palcos da vida esportiva manauara -, além da indevida cobrança dobrada do valor da passagem, o que prejudicava todos aqueles que gostariam de presenciar os jogos:

Um dos maiores obstáculos ao progresso do “foot ball” em Manáos, não se pode negar ser o preço exorbitante da condução para o bosque municipal, nos vehiculos electricos da “Manáos TramWays”, a única via de transporte para aquele logradouro publico. (...) É uma das aspirações que esperam alcançar nossos “sportsmen”, da “Manáos TramWays Limited” por intermédio da “Liga Amazonense de Foot Ball”5 .

    Esses eventos foram, obviamente, avaliados a partir de olhares diferenciados, alimentando polêmicas entre defensores e detratores do esporte. Todavia, tais polêmicas não ficaram restritas a espaços sociais não formais e foram parar nos jornais, nos ambientes literários mais destacados e nas penas dos mais respeitados intelectuais da época. Com efeito, os jornais do período expressam um redirecionamento deveras significativo da inserção futebolística no cotidiano urbano.

    Talvez a mais contundente dessas controvérsias envolveu, entre as décadas de 10 e 20 do século passado, Lima Barreto, Coelho Netto e a bola.

    Henrique Coelho Netto6, um dos mais destacados intelectuais brasileiros do período, ficou indelevelmente associado ao Fluminense Football Club, do qual foi o grande orador e chegou mesmo a compor seu primeiro hino. Seu fervor de torcedor pode ser comprovado em diversos momentos de sua vida, mas um fato pitoresco, em especial, é bastante elucidativo de seu envolvimento emocional com o (futuro) clube do pó-de-arroz e com o próprio futebol: o então deputado federal foi protagonista, bengala à mão, da primeira invasão de campo que se tem notícia por conta de um pênalti marcado em prol do Flamengo quando placar já era desfavorável em 3X2 ao Fluminense. Acompanhou Coelho Netto, o delegado Ataliba Dutra e boa parte da torcida forçando, dessa forma, a anulação do jogo7. Recurso extremo, cuja utilização só é considerada por aqueles que não admitiam, em hipótese alguma, que sua agremiação fosse injustamente penalizada por árbitros de má fé. E estes já não eram poucos.

    A pesar de, inicialmente, o literato ter percebido o esporte bretão, como era conhecido o jogo, tão somente como um passatempo dos imigrantes ricos, assumiu-se, alguns anos depois, como um verdadeiro sportsman, um amante dos esportes, um propagador das benesses físicas e morais que estes trariam aos seus praticantes. E mesmo em que pesasse sua paixão clubística exacerbada, Coelho Netto teceu uma série de argumentos para enaltecer o futebol enquanto prática de aprimoramento físico e instrumento de otimização social. Assim, seu papel era:

(...) criar no país uma “nova raça” que deixasse definitivamente para trás a sua malfadada herança cultural. O modo pelo qual isto poderia ser conseguido fica (...) bastante claro: abrindo mão dos interesses pessoais, todos deveriam trabalhar por uma mesma causa, por um mesmo ideal, como o de “pátria” - não por acaso uma das preocupações básicas dos defensores da melhoria da raça brasileira, que faziam da “propaganda cívica uma das estratégias básicas de sua atuação.8

    A percepção era de que uma melhoria de corpos e mentes seria um resultado da prática esportiva e, em especial, futebolística, visto seu senso de coletividade. Segundo esse discurso eugênico, o espraiamento do futebol facilitaria a intervenção no cotidiano de diversos grupos de trabalhadores, propagandeando os “sentimentos nobres” atribuídos as “raças superiores”, como o senso de disciplina, a harmonia social e o amor à pátria.

    O escritor explicitou esse pensamento em trechos da letra do primeiro hino do Fluminense, em 1915:

(...)

  • Lutando em justos de alegria

  • O nosso esforço se congraça

  • Em torno do ideal viril

  • De avigorar a nova raça do Brasil

(...)9

    Tão certo estava Coelho Netto de que as práticas esportivas eram excelentes formadoras do caráter individual que educou seus filhos dentro do ambiente esportivo do clube do coração, o Fluminense. Fez deles exemplos de sportsmen. O filho Preguinho talvez tenha sido seu maior orgulho, além da melhor personificação de seu pensamento esportivo.

    Preguinho ou João Coelho Netto, nasceu em 1905. Aos oito anos de idade, numa brincadeira com companheiros, foi jogado num rio e, nervoso por não saber nadar direito, atrapalhou-se e afundou como um prego. A anedota que esteve muito próxima de transformar-se em tragédia, além de legar ao garoto o indefectível apelido, colaborou para que o pai lhe possibilitasse uma educação esportiva variada. O jovem assumiu de tal maneira essa educação esportiva que seu desempenho em múltiplas modalidades foi deveras respeitável e, aquela altura, o pior castigo que o pai poderia lhe impor era afasta-lo das atividades clubísticas10. Preguinho foi campeão de basquete nos anos de 1924, 1925, 1926, 1927 e 1931; foi campeão de atletismo em 1931; praticou com destaque o pólo-aquático, o vôlei, a natação e o hóquei sobre patins. Contudo, suas maiores glórias vieram dos gramados: foi campeão carioca em 1933, 1937 e 1938 pelo clube tricolor que defendia desde 1925. Como atacante marcou 184 gols pela agremiação e teve atuações memoráveis que o levaram a seleção brasileira e o convocaram para primeira Copa do Mundo, a do Uruguai em 1930, na qual conseguiu o feito de marcar o primeiro gol brasileiro nessa competição mundial. Seu preparo técnico e físico fizeram dele nas décadas de 20 e 30 presença obrigatória em seleções cariocas e brasileiras11. Em que pese todo o sucesso, jogou a vida inteira como amador: em 1933 durante o período mais intenso de profissionalização de atletas no Rio de Janeiro, recusou-se a receber dinheiro para defender o clube12.

    Lima Barreto13 - outro eminente nome da intelectualidade brasileira do início do século vinte -, ao contrário do fervor apaixonado de Coelho Netto pelo futebol, se mostrou um grande opositor do chamado sport bretão. Ao discurso de regeneração da raça, voltou uma série de artigos nos quais pontuava quanto o futebol contribuía para a desorganização do viver urbano. Esbravejava que,

(...) O Rio de Janeiro era uma cidade civilizada e não pode estar entregue a certa malta de desordeiros que se querem intitular sportsman. (...) Não quero que se acabe com semelhante jogo. (...) É preciso dar nomes aos bois. Essa coisa [o futebol] não é divertimento, não é esporte. Pode ser tudo, nunca isto14.

    O bolapé, como jocosamente Barreto traduziu o termo football e tratou-o em seus escritos, seria um elemento desarmonizador na media em que fazia aflorar rivalidades entre regiões tanto quanto reproduzia dentro das quatro linhas um preconceito racial e social tão presente no Brasil do início do século pretérito. O escritor chegou a lançar uma Liga contra o Futebol, que servisse para debelar do convívio social aquela Caixa de Pandora cujos malefícios seduziam inadivertidamente os homens de bem daquelas metrópoles modernas.

    Para o escritor, os footballers seriam incapazes de utilizar sua capacidade de raciocinar de forma inteligente. Eram ricos, contudo rudes, preocupados somente em competir entre si, discriminando, o máximo possível, negros e pobres. Enfim, almofadinhas que não estavam aptos a serem exemplos de condutas úteis à pátria ou mesmo engrandecer a produção intelectual em campos como, por exemplo, a literatura. Daí que o alvo preferencial de Lima Barreto tenha sido justamente o literato que mais vivamente argumentava em prol do esporte naqueles dias: Coelho Netto. Seus ataques eram, às vezes irônicos; outras vezes buscavam argumentações mais firmes, porém suas críticas eram sempre diretas:

(...) O senhor Neto esqueceu-se da dignidade do seu nome, da grandeza da sua missão de homem de letras, para ir discursar em semelhante futilidade. Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma coisa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias.

    Duas posturas opostas cujo ponto eqüidistante era a bola. Duas formas diferentes de absorver o esporte, nas quais as divergências eram potencializadas pelas posturas apaixonadas de defensores e detratores que, por mais que relutassem inicialmente, não conseguiram ficar alheios ao futebol no seu espraiamento e enraizamento no cotidiano das urbes modernas. Ainda assim, eram posicionamentos reveladores das limitações em dimensionar o futebol nos seus tentáculos sociais mais longos.


II. A relevância temática do futebol no interior das ciências humanas

    É necessário acentuar, entretanto, que este debate literário não foi a primeira “aparição” do futebol enquanto centro de preocupação intelectual. Algumas publicações preocupavam-se, desde a década de 90 do XIX em comentar os esportes mais comuns visando, obviamente, orientar os leitores para eventuais apostas - como no caso do turfe -, mas, sobretudo, decodificar regras, formas de jogar e demais particularidades de práticas esportivas específicas, como o futebol.

    Desde 1903, através da comercialização de volumes como o Guia de Football, constatava-se o interesse desperto pelo jogo de bola. Ainda que estas obras tivessem um público leitor certamente restrito a certas camadas da sociedade, a sua própria existência atuou, ao mesmo tempo, como causa e efeito da sedimentação de uma base de interessados que, na medida de seu crescimento, não tardariam em avançar em direção a páginas de maior circularidade: os jornais.

No que se referia à interpretação, internalização e esclarecimento das regaras e conhecimento das formas de jogar, coube a tais publicações o papel pioneiro de mediadoras na mobilização de um publico interessado, antecipando-se aos próprios jornais - iniciativas que partiram de jogadores amadores, jornalistas ou comerciantes de artigos esportivos16;

    A partir de meados dos anos 20 as transformações no seio do futebol tornaram-se mais complexas e dinâmicas, fazendo-o superar crises de identidade - como a presente na passagem do amadorismo para o profissionalismo -, mas igualmente possibilitaram-no de ser tomado como instrumental de discursos e práticas políticas de diversas matizes, inclusive nacionalistas17. Dali em diante não bastariam apenas publicações divulgadoras do esporte. E nem só literatos polemizariam tentando compreender tão emblemático fenômeno.

    Gilberto Freyre, um dos mais respeitados cientistas sociais brasileiro e entusiasta dos jogos de bola, produziu, a partir dos anos trinta, uma obra de grande densidade intelectual.

    Em livros como Casa Grande & Senzala, de 1933 e Sobrados e Mucambos, de 1936, Freyre trabalhava a perspectiva de elogio da mestiçagem, recuperando o papel das práticas dos diversos grupos étnicos amoldando a cultura brasileira numa identidade coletiva e integradora. Em tais obras preconizava

(...) o papel positivo da mestiçagem brasileira, invertendo o valor que até então lhe era atribuído pelas teorias e análises sociais formuladas. (...) Dessa forma, sua reflexão ‘parecia lançar, finalmente, as bases de uma verdadeira identidade coletiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de laços, até então insuspeitos, entre os diferentes grupos que compunham a nação’18.

    O futebol seria uma dessas expressões culturais comprovadoras de sua teoria na medida em que ele possibilitava uma ascensão social do jogador mulato por conta de seu talento com a bola nos pés. Um talento, aliás, que caracterizaria de forma única esta prática no país e a diferenciava dos europeus em termos de plasticidade e irreverência. Em uma palavra: abrasileirava o football.

(...) nosso futebol mulato, com seus floreios artísticos cuja eficiência - menos na defesa que no ataque - ficou demonstrada (...), é uma expressão de nossa formação social, democrática como nenhuma e rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de geometrização, de estandartização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal.
    No futebol, como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de dança e de capoeiragem. Mas sobretudos de dança. Dança dionisíaca. Dança que permite o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica. Enquanto o futebol europeu é uma expressão apolínea de método científico e de esporte socialista em que a ação pessoal resulta mecanizada e subordinada à do todo - o brasileiro é uma forma de dança, em que a pessoa se destaca e brilha
19.

    Se o brasileiro praticava, de fato, uma dança, não havia parceiro melhor, insinuava Freyre, que a bola. Era, então, uma dança dionisíaca, eivada de negações a formas rígidas, demolidora de retrancas cientificistas, aplainadora das desigualdades vividas cotidianamente. E todo esse poder era emanado do fato desta “dança”, isto é, do futebol, ser mulato, ser aglutinador de eficientes “floreios artísticos” para suplantação de barreiras sociais e/ou esportivas. Características estas tão próprias da “raça mulata” formadora do país e que possibilitava uma extrema aproximação dos brasileiros com essa prática esportiva. Mais que isso: na verdade, habilitava-os, dando-lhes uma excelência futebolística superior a de qualquer outro povo. A apropriação tupiniquim do football criou, para Freyre, um estilo brasileiro de jogar: astucioso, improvisador, ágil, habilidoso - no que concordava, aliás, com a opinião jornalística da época20.

    Essa sedutora perspectiva analítica freyriana se enraizará na década de quarenta e inspirará uma plêiade de pensadores sociais e mesmo jornalistas em suas futuras interpretações futebolísticas. Vejam-se os exemplos de Mário Filho e Anatol Rosenfeld.

    Mário Filho escreveu, em 1947, um livro que se tornaria, para muitos, a pedra de roseta para o entendimento do futebol brasileiro a partir da análise de seus componentes sociais: O Negro no Futebol Brasileiro. Traçando um panorama do futebol no Rio de Janeiro na passagem do amadorismo para o profissionalismo, isto é, entre os anos 20 e 30 do século pretérito, ele reforça o espaço de projeção do negro neste ambiente esportivo e o identifica enquanto caminho para o entendimento da popularização do futebol.

    O livro de Mário Filho traça a história do futebol carioca (...). Ao fazê-lo, toma a presença e o papel do negro como fundamentais para o desenvolvimento do association entre nós, vendo justamente no conflituoso processo de integração - ou mistura - sócio-racial nos gramados a chave para se entender a nacionalização do esporte importado pelas elites. Uma nacionalização que levou não apenas a sua aceitação por todos os grupos sociais, mas principalmente a criação de um modo diferente de joga-lo que, é claro, expressaria, a brasilidade21.

    Note-se que a aproximação da tese de M. Filho com a de Freyre é tamanha que este prefaciaria a obra do jornalista esportivo carioca. Prefácio, aliás, que gabaritou o livro nos meios acadêmicos inclusive com seus comentários que aquela era uma dos mais sugestivas obras escritas em qualquer época22. Apesar das palavras, o impacto da obra de Mário Filho não foi tão determinante naquele momento - o que estudiosos contemporâneos hoje retificam:

(...) por sua vez, O Negro no Futebol Brasileiro é uma obra de significativa importância para a história do futebol brasileiro (talvez a mais completa fonte historiográfica já levantada sobre nosso futebol) e, mais que isso, uma contribuição valiosa para a compreensão de nossa identidade e cultura23 .

    Influência menos visível encontra-se na obra de Anatol Rosenfeld. Este irrequieto escritor, em fins dos anos 30, auto-exilou-se no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista. Aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política e antropologia.

    Sua contribuição mais interessante e, digamos, mais didática sobre a paixão esportiva nacional é o texto O Futebol no Brasil, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden24.

    Depois de comentar sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol: da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube. Explicitou ao público germânico que em terras brasileiras,

(...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação25.

    O arcabouço teórico para análise do futebol era, até então, fortemente marcado pela percepção que este esporte seria um útil instrumental para avançar sobre desigualdades sócio-econômicas na medida em que possibilitava um espaço de interação entre indivíduos de origens étnicas e camadas sociais diversas. Da mesma forma, a bola tinha no indivíduo negro (e/ou mulato) o seu parceiro mais edificante. O seu “dom natural”, o seu espírito acostumado a enfrentar com insuspeita habilidade as agruras do viver cotidiano, faziam dessa relação algo mágico, que encantava platéias mundo a fora e faziam, no Brasil, os clubes serem olhados como verdadeiras instituições religiosas. O sucesso internacional da seleção brasileira elevaria este esporte a uma condição ímpar de elemento de orgulho nacional. A habilidade individual - e não os estratagemas táticos - era o segredo que o brasileiro tinha como nato e que lhe conferia uma liberdade de atuação dificilmente superável. Assim sendo, os intelectuais que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol até meados do século XX, construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva.

    O futebol, por volta da segunda metade do século XX, deixou de freqüentar a pauta de interesse acadêmico ou, pelo menos, teve drasticamente diminuído as pesquisas e a divulgação do trabalho intelectual sobre a temática. À exceção mais notória de um punhado de cronistas esportivos - dos quais o maior exemplo talvez tenha sido Nelson Rodrigues -, poucos se dignaram a olhar o jogo de bola com uma perspectiva investigativa mais profunda.

    Os historiadores, tanto quanto os demais cientistas sociais, emudeceram por um longo período, deixando que um silêncio desconcertante se espraiasse pelos gramados, pelas arquibancadas, pelos meandros do esporte nacional. Um silêncio superado, a bem da verdade, a cada final de semana, a cada torneio, a cada Copa do Mundo: enfim, quando os gritos de gol foram multiplicando-se em escala geométrica e quando o cotidiano do brasileiro foi amoldando-se ao calendário, às polêmicas, às disputas, às jogadas e a tudo mais que era peculiar ao esporte-rei26. As ciências humanas, por quase meio século, tornaram-se insensíveis aos sujeitos, às experiências sociais, à dinamicidade e temporalidade processual que envolve este esporte.

    Essas gerações que cresceram, de uma forma ou de outra, vivenciando o futebol foram emanado questionamentos e assumindo a necessidade de agregar novos valores acadêmicos ao futebol através da investigação científica. Nesse sentido, um primeiro e necessário movimento visou elencar as dificuldades teórico-metodológicas, aclara-las e traçar estratégias para supera-las. A mais inicial talvez tenha sido aquela que se relaciona a própria relevância da temática:

Se se supõe que as ciências sociais devam responder, primeiro, às indagações da cabeça dos intelectuais, claro que não. Nelson Rodrigues escreveu, com razão, que não há um só personagem da nossa história que saiba bater um mísero corner. (...) Seria fácil demonstrar - e tanta gente já o fez - que o conhecimento intelectual do Brasil se move em redoma. Nada sabemos do nosso próprio povo embora, freqüentemente, falemos em seu nome. Ora, o futebol se transformou, aqui, em arte popular, caiu numa gigantesca zona de sombra que dificulta a compreensão de nossa própria realidade27.

    Verticalizando a problemática em direção a argumentos ainda mais concernentes aos historiadores:

Importante também afirmar que a tarefa de pesquisar o futebol torna-se complicada em virtude de ser ele entendido como um assunto menor, que não mereça maiores preocupações. Mesmo entre os pesquisadores que defendem a necessidade de uma disciplina histórica voltada para questões não tradicionais, notamos uma certa indiferença. Mas por que o futebol? Esta indagação, ainda que implícita, renova-se constantemente28.

    A ausência, nos anos pós-Vargas, de discussões em níveis não somente jornalísticas e/ou memorialísticas sobre o futebol impregnou o tema de preconceitos que o desvalorizou na sua potencialidade de conexões com a realidade nas amplas perspectivas social, política, econômica, ideológica, etc. As ciências humanas, e, em especial, a História precisou reavaliar seus paradigmas e, de certa forma, buscar rupturas epistemológicas para dar vazão a demanda de inquietações que se excluíam dos tradicionais arquétipos de uma historiografia metodologicamente muito ortodoxa.

    O futebol era duplamente renegado: tanto por uma História de cunho mais positivista, mais rankiana, modelo que dava ênfase no campo da diplomacia e da política29, quanto por abordagens marxistas, mais austeras e pouco instrumentalizadas para refletir sobre as experiências de lazer de uma coletividade. Em comum a estas duas concepções, destacam-se alguns referenciais analíticos que levaram-nas a subestimar o tema:

Sem valor econômico e considerado vulgar, os historiadores, tal qual os sociólogos, insistem em não perceberem o esporte como um objeto de estudo capaz de mostrar as mais tênues nuanças das relações sociais que, fora da lógica esportiva, parecem excludentes, como a competição e a cooperação ou o conflito e a harmonia.

    Entretanto, uma nova perspectiva historiográfica foi se alicerçando a partir dos anos sessenta, dando o espaço teórico, o paradigma necessário para nova emersão do futebol no ambiente acadêmico. A História Social, na medida em que se firmava, foi quebrando tabus intelectuais e amealhando temáticas até então pouco atraentes para outras correntes interpretativas. Esta flexibilidade temática se pauta, dentre outros elementos, numa maior aproximação, a partir dos Annales, com a sociologia e a antropologia social, formulando questões pertinentes ao comportamento e às relações entre os diversos grupos sociais31. Estas dúvidas conduziam a História Social a analise das durações mais curtas32.

    Pauta-se também no entendimento que quaisquer que sejam as formas de exploração e/ou dominação sobre os homens, estas jamais se limitam à formalidade das fábricas ou de organizações oficiais, mas delas desprendem-se e avançam para o viver dos grupos sociais, se imiscuindo, das mais diversas formas possíveis, nas experiências humanas.

Investigar, portanto, o todo social para compreender a necessidade de organizar, regular e controlar o mercado de trabalho para o capital, sobretudo industrial e urbano não pode se restringir a estudos técnicos dos componentes desse mercado (...), mas deve passar necessariamente pela investigação da crescente necessidade de reorganizar, para controlar todos os aspectos da existência do trabalhador, principalmente aqueles que dizem respeito às condições de vida fora da fábrica, a família, a alimentação, a saúde, a educação, o transporte, a habitação, o lazer, etc.33.

    Uma outra problemática que se impôs ao futebol enquanto tema da História Social precisou ser metodologicamente superada: a questão das fontes. Selecionar os instrumentos que permitissem enxergar os sujeitos sociais na suas experiências, por assim dizer, de maior informalidade, possibilita construir um entendimento mais holístico dessa coletividade que simboliza seus comportamentos sociais nas práticas desportivas.

    A História Social potencializou o uso das fontes orais uma vez que estas representam, quase literalmente, a oportunidade de fazer falar os mais diversos grupos sociais, as pessoas comuns que não dispõe habitualmente de grandes espaços de reverberação de seus anseios. Além do que, a interação com a antropologia transformou em importantes fontes históricas os mitos, os rituais, as imagens, os emblemas, as ferramentas de trabalho e lazer.

(...) É preciso estar atento para a grande variedade de fontes disponíveis: das mais convencionais (jornais, revistas, fotos, atas de reuniões, livros de contabilidade dos clubes, cadastro de sócios, etc.) às menos formais (emblemas, uniformes, hinos, gritos de guerra de torcidas, etc.). Além, é claro, das possibilidades das fontes orais, envolvendo relatos de antigos e novos ídolos34.

    Um tipo de fonte que assume uma especial importância quando se deseja olhar para os momentos iniciais do futebol são os periódicos. Na medida em que estes são arquivos do quotidiano35, guardam uma impressão mais direta dos acontecimentos e refletem, no âmago dessa cronologia memorialística, as opiniões dos responsáveis pela publicação permitindo-nos depurar dessa escrita subjetiva os alicerces ideológicos das camadas sociais às quais estão ligados repórteres, articulistas, editores, etc.

    Efetivamente, ao ampliar seu horizonte temático e recuperar ferramentas metodológicas mais reveladoras, a História habilitou-se para assumir a tarefa de desvelar das sombras o futebol.

Só uma disciplina como a História, que correlacione fenômenos de ordem variada - da economia, da política, da cultura -, mergulhando-os no ‘tanque do tempo’, nos conduzirá a uma resposta sólida. A verdadeira ciência social, entretanto, é a que responde às indagações coletivas; para elas não há temas nobres ou cafonas - e suponho que para entender um pouco nossa sociedade chegou a hora de fazermos a história de seu futebol, de sua mística popular, etc., ao passo que se inicia a revisão da história convencional, aquela em que se movem, exclusivamente, as classes privilegiadas (...)36.

    Com efeito, nem mesmo na História Social o futebol - e numa ampliação temática, o esporte -, se fez rapidamente compreendido37. Somente no fim dos anos 80 é que ele será retomado mais seriamente pela investigação científica.

    Em 1977, Luís Baeta Neves38, chamava atenção para a forma como a paixão esportiva nacional poderia ser interpretada de maneira a expressar em si formas aparentemente contraditórias de demonstrar ideologias de reprodução e transformação social. Vaticinava ele, ao fim do trabalho dedicado a Roberto DaMatta:

O futebol surge, assim, como um universo de possíveis ideológicos - e de traços ideológicos já definidos - que ora se aproximam, ora se afastam profundamente. (...) É, antes, um universo em aberto, onde as linhas gerais de uma ideologia crítica da sociedade, de uma possível ideologia da transformação parecem estar ancoradas na torcida em sua ampla variedade de representações39.

    Este universo permaneceu ainda uma década codificado: esporadicamente os interessados pelo jogo de bola dos anos oitenta leram sobre o futebol brasileiro, exceto em interessantes memórias jornalísticas que relembravam causos dos boleiros tupiniquins. Há de se ressaltar que a Editora Brasiliense, em sua popular coleção voltada ao público universitário, publicou em 1981, uma História Política do Futebol Brasileiro, de Joel Rufino dos Santos, obra extremamente significativa, menos por avançar numa sistematização do conhecimento empírico sobre o tema e muito mais por clarear e socializar aos futuros historiadores essa possibilidade de estudo. Com argumentos incisivos, J. R. dos Santos aproximou um tema lúdico, tão repleto de experiências individuais prazerosas a possibilidade teórico-metodológica de constituir o futebol num sério ferramental para o entendimento de momentos históricos, através do exercício de elencar ao futebol temas transversais como o preconceito racial, a interferência do estado, a modernização dos esquemas táticos, a crise de identidade do jogo brasileiro.

    Um ano depois outra obra trataria do tema, infelizmente, com uma circularidade bastante restrita: Futebol e Cultura, coletânea de artigos organizados pelos historiadores José Sebe Bom Meihy e José Sebastião Witter, cuja publicação refletiu por um lado certamente a proximidade com a Copa do Mundo da Espanha, mas por outro, a inquietude desse campo temático. Em que pese os esforços, poucas alternativas ao silêncio - o que não se justificava naquele que, afinal, era o país do futebol. Certamente havia um latente interesse sobre a temática, mas este não conseguiu alcançar, naquele momento, a lógica tacanha das editoras, tornando raras as publicações. Estes foram os pontos de chegada da reflexão intelectual sobre o futebol nos anos oitenta.

    A década de noventa inicia com dois novos horizontes para o futebol na academia. A editora Brasiliense, quase dez anos depois, publica, de J. Witter, O que é Futebol. Nesta pequena obra, o autor, à maneira de um jogo de campeonato, tece considerações sobre a história do esporte no país, apontando para várias possibilidades de compreensão do jogo de bola inglês: a definição do posicionamento tático na prática futebolística brasileira na medida em que o lúdico cede seu lugar ao competitivo; os papéis desempenhados pelos dirigentes, técnicos e jogadores; a inserção do jogo de bola no cotidiano. Tanto quanto seu antecessor dos anos 80, o livro, até mesmo pelas suas dimensões, apresenta uma visão panorâmica do futebol sem verticalizar para uma sistematização de informações empíricas.

    Ao mesmo tempo, publicou-se o livro do sociólogo Waldenyr Caldas, O Pontapé Inicial - Memória do Futebol Brasileiro; fruto de seus estudos de livre-docência, comenta, principalmente, o processo de profissionalização dos jogadores. Este trabalho representava, então, um considerável avanço, pois ao publicizar o resultado de uma pesquisa de pós-graduação, na prática, dava a medida da viabilidade do tema. Ainda que a matriz acadêmica de Caldas seja a sociologia, O Pontapé Inicial faz um percurso de recuperação, no tempo e no espaço, dos agentes responsáveis pela implementação do futebol profissional na região sudeste do Brasil, mergulhando nas tensões políticas entre as representações oficiais dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo.

    Talvez o resultado mais significante dessa retomada tenha sido a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, institucionalizar, em 1990, o Núcleo de Sociologia do Futebol40, tornando-se, assim, a primeira universidade a estudar, em caráter permanente, o tema. O desenvolvimento de tal grupo acabou por desembocar - numa conjuntura anterior ao da copa do mundo da Itália -, na publicação da Revista Pesquisa de Campo, espaço no qual são publicados estudos, das mais diversas matizes acadêmicas, sobre o esporte.

O Núcleo é aberto a docentes e discentes de qualquer unidade acadêmica, na medida em que é um centro transdisciplinar de estudos e pesquisas em torno das problematizações plurais, multissignificativas, emergentes do futebol. (...) Abrimos a concepção do Núcleo para diferentes áreas do saber, além da sociologia, por considerarmos o futebol um conjunto múltiplo de objetos interativos, que já se oferece como interpretação, uma vez que tudo já significa, conforme postulado inspirado na filosofia de Nietzsche.41

    Por outro lado, tanto em centros universitários paulistas quanto cariocas, principalmente, houve um significativo aumento de dissertações e teses expressando legítimas preocupações com a popularização do esporte, com a violência da torcida, com a apropriação do esporte por discursos e práticas políticas, com a origem social dos seus praticantes, com o preconceito racial embutido na prática futebolística, etc. Tomando a própria UERJ como exemplo, verificar-se-á que entre os anos de 1998 e 2000 foram apresentadas 10 monografias discentes de vários cursos - Língua e Literatura Espanhola, Educação Física, Comunicação Social, História, etc.; foram publicados 18 artigos em jornais e/ou revistas especializadas; escreveram-se 7 livros; produziu-se 1 mapa; defendeu-se 1 dissertação - em Ciências da Motricidade Humana; publicizaram-se 4 resumos em anais e houve 4 participações em conferencias ou seminários42.

    Em nível nacional, duas importantes instituições superiores já dedicaram números de suas revistas ao tema esporte, em particular, ao futebol. A Revista USP, da Universidade de São Paulo, em seu número 22, de 1994, dedicou seu dossiê ao futebol. Intelectuais da monta de Roberto DaMatta, Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo e Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes empreenderam discussões associando ao tema maior reflexões de pesquisas, aquela altura, recentes sobre a violência das torcidas, a inserção histórica, a relação entre a prática futebolística codificada (futebol oficial) e a espontânea (pelada), a imprensa esportiva. Há ainda presentes na publicação memórias pessoais, poesias e poemas visuais.

    Cinco anos depois, a revista Estudos Históricos, editada pela Fundação Getúlio Vargas, publicou seu número 23 dedicado ao tema Esporte e Lazer, na qual mais da metade dos textos trata do futebol. Esta obra, entretanto, fornece espaço para divulgar as recentes pesquisas de estudiosos com relativa visibilidade nacional - ao menos até aquele momento. As discussões giram desde a análise da identidade do torcedor regional/nacional até a invenção de tradições nos campos de futebol43.

    Além do alargamento teórico-metodológico sedimentado na última década do XX, é inegável que a conquista do tetracampeonato mundial reavivou os interesses comerciais sobre o esporte, o que possibilitou que muitos estudos - na verdade, pesquisas gestadas ao longo de anos - viessem à tona com uma distribuição e divulgação mais eficiente. Mais do que isso, na verdade, permitiu um espraiamento do tema para camadas sociais e faixas etárias bastante amplas, algo facilmente constatável pelos catálogos de editoras e livrarias.

    Obras voltadas para os ensinos fundamental e médio passaram a ter o futebol como mote. Dos álbuns de figurinhas tão típicos dos horários de recreio, o futebol migrou para dentro das salas de aula e passou a dividir, então, espaço com temas clássicos. Em 1993 foi lançado o volume da coleção A palavra é... Futebol, organizado por Ricardo Ramos e publicado pela editora Scipione, inicialmente, para um público de pré-vestibulandos. Ali foram reunidos contos de alguns dos mais significativos autores brasileiros e que até então não obtinham seu reconhecimento exatamente por escreverem sobre tal tema... Lima Barreto e João do Rio, por exemplo, foram agrupados ao lado de importantes contistas e romancistas contemporâneos como Graciliano Ramos, Orígenes Lessa, Fernando Sabino, dentre outros.

    Para um público mais jovem, J. Witter lançou, dezesseis anos depois do O que é futebol, o paradidático Breve História do Futebol Brasileiro. Com uma linguagem editorial extremamente simpática adaptada para alunos entre a 5ª e 8ª séries do ensino fundamental, o livro apresenta uma síntese do desenvolvimento do futebol no país, chamando atenção para questões de gênero e de exclusão social e rememorando a participação brasileira na Copas do Mundo, desde 1930 até a preparação para a de 1998.

    Dentre outras obras emergidas dessa recente proficuidade do tema, é preciso destacar a sólida contribuição historiográfica de Leonardo A. de M. Pereira no seu Footballmania, uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro, ganhador do prêmio Jabuti em 2001. Fruto de sua tese de doutoramento, o livro aprofunda de forma bastante competente e pioneira a visão panorâmica do futebol, lugar comum nos primeiros escritos sobre o tema. O quadro contextual surge do entrelaçamento dos diversos personagens e das variadas condições conjunturais nas quais o Rio de Janeiro estava imerso na passagem do XIX para o XX. O entendimento do significado e do espraiamento desta prática esportiva é alcançado com a interação e compreensão de temas como a modernidade, o processo higienizador, a associação do futebol com a noção de patriotismo. Isto é, como um processo vívido e alentador da dinâmica social.

    Uma trilha potencial de divulgação das reflexões sobre o mundo do futebol é a rede mundial de computadores. Vários sites do mundo inteiro ocupam-se compulsivamente em prover de informações as centenas de milhões de aficionados. Os principais clubes e os jogadores melhor orientados esforçam-se em atualizar suas home pages com curiosidades e demais atrativos. Nesses espaços virtuais estão se tornando mais comuns, como estratégia de fidelização dos internautas, publicações mais qualitativas da história, de estatísticas, de quadros comparativos, de textos críticos, de reportagens investigativas, de contos e poemas sobre o futebol. A internet deve se tornar neste século XXI o campo mais viável de compartilhamento de informações e discussões acadêmicas sobre os jogos de bola - haja visto o exemplo da lista de discussão CEVHIST moderada pelo professor Victor A. de Melo (victor@marlin.com.br ), destacado pesquisador da história do esporte e da educação física no país. Além do quê, para ficar num exemplo sul-americano, a revista eletrônica argentina Lecturas: Educación Física y Deporte - http://www.efdeportes.com - periodicamente renova seu banco de artigos e eventos sobre esportes, dos quais um naco bastante amplo é de trabalhos de pesquisadores brasileiros, argentinos, mexicanos, costarriquenhos, espanhóis, ingleses que debruçam-se sobre o futebol, a partir de variadas matrizes intelectuais.

    Efetivamente, temos, atualmente, uma rede de discussão sobre o futebol que excede as fronteiras da região sudeste. Em Manaus, no Maranhão, no Rio Grande do Sul, discute-se o esporte-rei. As lógicas do futebol não foram ainda totalmente destrinchadas em seus ganchos sociais. O caminho, entretanto, já não parece tão sombrio e solitário. Stanislaw Ponte Preta deve estar menos preocupado agora: nesses dias, nossas buscas tão intensas da compreensão do futebol, possivelmente indicam que a academia já não incorre no erro de pensar que lógica e futebol são caracteres desarraigáveis e excludentes. Afinal, corroborando o pensamento de Nelson Rodrigues, realmente em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.


Notas

  1. Costa, Francisco. “O Futebol na ponta da caneta” In: Revista USP Nº 22 (jun/jul/ago) - Dossiê Futebol. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1994. p. 85.

  2. Verificar a este respeito: NEGREIROS, P. Resistência e Rendição: A gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o Futebol Oficial em São Paulo (1910-1916) São Paulo: Dissertação de Mestrado (PUC-SP), 1992: Pp. 19-41; PEREIRA, L.A. de M. Footbalmania: Uma história social do futebol do Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteria,2000. Pp.23-41; SEVCENKO, N. “A Capital Irradiante” In: História da Vida Privada no Brasil Vol. 3 - República: da Belle Époque à Era do Rádio”. 2a. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pp. 568-571; BURNS, B. E. Manaus, 1910: retrato de uma cidade em expansão. Trad. Ruy Alencar. Manaus: Editora Artenova Limitada, 1966. p. 12; DAOU, A. A Belle Époque Amazônica, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000 p.44.

  3. BERMAN, M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. Trad. Carlos Felipe Moisés. 15ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

  4. Cf. PEREIRA, op. cit., pp.21-36. O autor comenta que o público presente, em 22 de setembro de 1901, para assistir a possível partida inaugural do futebol no Rio de Janeiro entre jovens brasileiros e membros do Rio Criket, teria sido de meros quinze pessoas: o pai, a irmã e dois amigos de um dos jogadores, além de onze tenistas que se encontravam no clube por acaso.

  5. O Tempo, 15/01/1914.

  6. Filho de um comerciante português e uma índia, Coelho Netto nasceu em Caxias (MA) em 21/02/1864 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 28/11/1934. Fundador da cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras, constituiu-se numa destacada figura do cenário literário brasileiro do início do século, exercendo diversos papéis: professor, político, abolicionista, romancista, contista, crítico, teatrólogo. Prolífico, desde sua estréia (Rapsódias, contos de 1891), publicou mais de 25 obras entre contos, romances, crônicas e peças teatrais, entremeadas pelos períodos em que exerceu cargos públicos, inclusive o de deputado federal pelo Maranhão nas legislaturas de 1909 e 1917.

  7. PEREIRA, L. A. de M. “O jogo dos sentidos: Os literatos e a popularização do futebol no Rio de Janeiro” In: CHALHOUB, S. & PEREIRA, L.A. de M. (org.) A história contada - Capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 200.

  8. Idem, p. 201

  9. Coelho Netto apud MATTOS,C. Cem anos de paixão: Uma mitologia carioca no futebol. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 54.

  10. Cf. MATTOS, Op. cit., Pp. 52-53. A autora relembra que em 1920, quando da visita do rei da Bélgica, Alberto I, um incidente diplomático envolveu Coelho Netto e Preguinho: ao tentar matar uns passarinhos próximo do Palácio Guanabara, um disparo do jovem Preguinho atingiu a sacada sobre a qual debruçava-se a rainha. Apesar do acionamento da polícia carioca, o episódio foi minimizado pela presença do eminente escritor e pelo desejo do rei em conhecer o garoto que, no dia anterior, cobriu-se de medalhas em provas realizadas em homenagem a Sua Alteza no Estádio das Laranjeiras, de propriedade do time tricolor. Evidentemente seu castigo foi a proibição de freqüentar o Fluminense por um mês.

  11. Cf. site oficial da Confederação Brasileira de Futebol (C.B.F.), http://www.brasilfutebol.com

  12. Esta atitude é, ainda hoje, motivo de orgulho para ala mais tradicional do Fluminense, que o considera “o maior tricolor dos tricolores” e “glória do clube”. Cf. site oficial do fluminense, http://www.flu.com.br

  13. Afonso Henriques de Lima Barreto, carioca, nasceu em 13 de maio de 1881 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 01 de novembro de 1922. Romancista e cronista de grande qualidade literária, teve, entretanto, uma conturbada vida particular: em 1903 passou a condição de arrimo de família, depois do falecimento de sua mãe e de seu pai ter se tornado mentalmente insano. Foi internado duas vezes (1914 e 1919) no Hospício Nacional, por alcoolismo, e foi compulsoriamente aposentado de suas funções na Diretoria de Expedientes da Secretaria de Guerra. Começou a publicar seus escritos em 1902 e, a partir de 1918, influenciado pela Revolução Russa, passou a militar na imprensa socialista. Com uma obra fortemente marcada por preocupações sociais, Lima Barreto candidatou-se duas vezes a Academia Brasileira de Letras: na primeira seu pedido não foi considerado e na segunda não conseguiu ser eleito.

  14. L. Barreto apud PEREIRA, L. A. de M. “A literatura entra em campo: Lima Barreto e Coelho Neto na Belle-Époque do Futebol”. In: Cad. Cent. Fil. Ci. Hum., V. 12, N. 1/2, Jan/dez .1993. Belém, 1993, p. 35.

  15. L. Barreto apud PEREIRA, O jogo dos sentidos, op. cit., p.208.

  16. Cf. TOLEDO, L.H. No país do futebol. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.Pp. 12-13.

  17. Para uma interpretação da função social que o futebol passou a desenvolver entre os anos 30 e 50 ver principalmente os recentes trabalhos historiográficos NEGREIROS, P.J.L.A nação entra em campo. São Paulo: Tese de Doutoramento (PUC-SP), 1998 e FRANZINI, F. As raízes do país do futebol: Estudo sobre a relação entre o futebol e a nacionalidade brasileira (1919-1950). São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social (USP), 2000; além de CALDAS, W.O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro. São Paulo: Ibrasa, 1990.

  18. FRANZINI,F. No campo das idéias: Gilberto Freyre e a invenção da brasilidade futebolística. Buenos Ayres: Lecturas: Educación Física y Deporte. Año 5, Nº 26 - Revista Digital (http://www.efdeportes.com), 2000.

  19. G. Freyre apud FRANZINI, op. cit.

  20. Cf. FRANZINI, op. cit: “Além disso, ele [Gilberto Freyre] também não era o primeiro a atentar para o aparecimento de um novo estilo futebolístico: quando a seleção brasileira conquistou seu primeiro Campeonato Sul-Americano, em 1919, já houve quem detectasse a criação de um ´sistema novo de jogar asociation´, que, baseando-se no talento individual e na capacidade de improvisação dos seus praticantes, ia no sentido contrário ao padrão coletivo ditado pelos manuais ingleses (...)”.

  21. Idem, p. 05.

  22. Cf. FREYRE, G. “O Futebol e o Negro” In: FILHO, M. O Negro no Futebol brasileiro. Petrópolis: Firmo, 1994.

  23. GORDON JR., C. C. História social dos negros no futebol brasileiro In: Pesquisa de Campo. Nº 2. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, 1995. p. 72.

  24. O ensaio de A. Rosenfeld foi publicado em 1956 com o título original Das Fussballspiel in Brasilien, pelo Staden-Jahrbuch e era dirigido para um público germânico pouco acostumado com o futebol brasileiro, daí que uma parte do texto tenha assumido um caráter informativo.

  25. ROSENFELD, A. “O futebol no Brasil” In: Negro, Macumba e Futebol. Col. Debates: Antropologia. São Paulo: Edusp/Editora da Unicamp/Editora Perspectiva, 1993. Pp.84-85

  26. Cf. expressão utilizada por WITTER, J. S. O que é Futebol. Col. Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1990O que é futebol, p. 11 e passim.

  27. SANTOS, História política do futebol brasileiro, pp. 77-78.

  28. NEGREIROS, Resistência e rendição, op. cit., p. 07

  29. Cf. CASTRO, H. “História Social” In: Domínios da História - ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 47

  30. GENOVEZ, P. O desafio de Clio:o esporte como objeto de estudo da história. Buenos Ayres: Lecturas: Educación Física y Deporte. Año 3, Nº 9 - Revista Digital (http://www.efdeportes.com), 1998.

  31. Idem, p. 48

  32. Sobre a amplitude alcançada pela escola dos Annales, seu significado para a ciência da História e, ainda, sobre a propositura braudeliana a cerca dos três tempos históricos (a curta, a média e a longa duração) ver, dentre outros, BURKE, P. A Escola dos Annales1929-1989: A Revolução Francesa da Historiografia. 3ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 1991; além do artigo LIMA, L.L. da G. “Fronteiras da História” In: História: Fronteiras - Anais do XX Simpósio Nacional da Associação Nacional de História. Vol 1. São Paulo: Humanitas, 1999. Pp. 17-40

  33. FENELON, D. “Trabalho, cultura e História Social” In: Projeto História nº 4: História & Historiografia. São Paulo: EDUC, 1985. p.30

  34. GENOVEZ, op. cit, p. 08

  35. Cf. expressão de ZICMAN, R.B. “História através da imprensa” In: Projeto História 4: História & Historiografia. São Paulo: Educ, 1985. p. 90

  36. SANTOS, op. cit., pp. 77-78

  37. GENOVEZ, op. cit., p. 03, lembra que, ainda em que pese o certo descaso, os estudos sobre o futebol se agigantam frente outros campos do esporte e da educação física

  38. O artigo Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol foi publicado de 1977 na Revista José e republicado dois anos depois numa coletânea de artigos do autor chamado O Paradoxo do Coringa

  39. NEVES, L. B. “Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol” In: O Paradoxo do Coringa e o jogo do Poder & Saber. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979. p. 19

  40. O Núcleo de Sociologia do Futebol conta com pesquisadores de variados campos do conhecimento, onde se destacam, dentre outros, Maurício Murad, Murilo Mendes, Roberto Moura, Ronaldo Helal, Luis Felipe Baeta Neves, Roberto DaMatta, Nelson Rodrigues Filho, Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, Luis Henrique de Toledo.

  41. MURAD, M. “Notícia institucional: Núcleo de Sociologia do Futebol - Uerj” In: Estudos Históricos Nº 23: Lazer e Esporte. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. Pp. 206-207.

  42. Cf. Banco de Produção Científica da UERJ (<http://www.sr2.uerj.br/cgi-win/bpc_uni.exe>)

  43. Despontavam aquela altura os trabalhos de intelectuais de uma geração mais nova que, gradualmente, vai alicerçando suas preocupações acadêmicas: Gilmar Mascarenhas de Jesus, Victor Andrade de Melo, Hugo Lavisolo, Yara Lacerda, Arlei Sander Damo, Antonio Jorge Soares.

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revista digital · Año 8 · N° 58 | Buenos Aires, Marzo 2003  
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