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Futebol, globalização e identidade local no Brasil
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003 |
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Mesmo com todas estas mudanças, o Clube dos Treze permanece insatisfeito, mantendo a ameaça de criar uma liga independente de clubes, à revelia da CBF (Confederação Brasileira do Futebol). Em 2001, em medida polêmica o Ministério dos Esportes interveio na gestão do futebol, e apoiado pela principal emissora de TV lançou o novo calendário (quadrienal) do futebol brasileiro. Mais uma vez, os campeonatos locais são sacrificados, praticamente extintos, em favor de torneios regionais, muito ampliados em 2002, de 8 para 16 participantes, e de 2 para 4 meses de duração. Como vem reagindo a sociedade brasileira (a identidade local) diante desta série de mudanças, é o tema do próximo e conclusivo segmento.
III. À guisa de conclusão: entre a globalização e a identidade localO lugar vem sendo estudado como contraponto ao processo desterritorializante da globalização, como por exemplo em Marc Augé (1993), ao realçar o caráter identitário do lugar face à impessoalidade do mundo. Embora também saliente a dimensão cultural, o geógrafo David Harvey (1996:295) afirma que o lugar é um conjunto de estruturas físicas e sociais com poder de permanência no terreno. Pensando numa economia política da construção do lugar sob o capitalismo, ele mesmo pergunta "how places get erected as permanences within the flux and flow of capital circulation” (como os lugares se mantém como permanência em meio aos fluxos da circulação do capital). Se por um lado concordamos que globalização não chega a uniformizar o mundo, por outro devemos admitir que os diversos lugares são por ela atingidos. A questão é saber como e em que grau se manifesta esta influência da ordem global sobre o lugar, e como este reage em particular.
O atual momento da globalização incide sobre diversos domínios da vida social, e pode ser estudado pela perspectiva oferecida por Harvey (1989), de mais uma rodada de compressão espaço-tempo: as tecnologias de informação e as redes globais aceleram o movimento do mundo e o comprimem, afetando profundamente nossa experiência local. E quanto maior o grau de extroversão do lugar (em função das redes e nexos globais que o perpassam), mais complexa é a redefinição das identidades locais. Nossa preocupação é justamente refletir sobre o que vem experimentando o torcedor, diante do intenso processo de mudança que vem ocorrendo no futebol brasileiro. Um processo que entendemos como de crescente grau de extroversão da tradicional base local, movido pela nova racionalidade instrumental que re-organiza o futebol em escala mundial.
Dentro do território brasileiro, há décadas se nota o enfraquecimento (ou mesmo desaparecimento) de clubes de pequenas cidades, em função da crescente influência (através dos meios de comunicação de massa e da integração nacional) dos clubes das metrópoles nacionais, que são Rio de Janeiro e São Paulo. Mesmo nas cidades médias e capitais regionais, é visível a crescente adesão local ao reduzido grupo de clubes que formam a elite do futebol brasileiro12. Atualmente, parece estar em curso uma nova rodada de compressão espaço-tempo: um processo que começa a afetar gravemente alguns destes grandes e tradicionais clubes, justamente aqueles de menor torcida (isto é, poder de mercado) ou menor habilidade empresarial nos últimos anos, como Botafogo e Fluminense (Rio de Janeiro), Santos (São Paulo), Atlético (Belo Horizonte) e Internacional (Porto Alegre), excluídos por exemplo da Copa Mercosul. Algumas análises supõem que a internacionalização das competições tende a reduzir ainda mais o número de clubes brasileiros economicamente viáveis.
Cidades com 3 milhões de habitantes, como as supracitadas Belo Horizonte e Porto Alegre, onde a rivalidade local alimenta há mais de meio século toda uma cosmologia particular (como se estas cidades fossem emocionalmente divididas em duas metades antagônicas), são analisadas por “economistas do futebol” como incapazes de manter, por razões mercadológicas, dois grandes clubes. Com base no raciocínio instrumental capitalista, aconselham que um único clube local (semelhante ao modelo europeu e norte-americano, tomado como padrão de organização lucrativa) seria mais poderoso e melhor “venderia” a imagem da cidade para o Brasil e sobretudo para o resto do mundo13.
Entretanto, tais proposições nos parecem totalmente inadequadas à forte tradição de nossa base local. Registre-se que quando participam de competições nacionais ou internacionais, clubes de uma mesma cidades realizam, no plano da experiência do cidadão comum, uma contínua disputa paralela, pois o que realmente interessa ao torcedor é saber qual está melhor classificado. E tanto vibram com as vitórias de seu clube quanto com as derrotas de seu rival local.
O contínuo enfraquecimento dos campeonatos estaduais, já comentado anteriormente, é movido por interesses de lucro das redes de televisão, pois o público alvo é sempre maior quando o jogo envolve clubes de cidades distintas e sobretudo de países distintos. Entretanto, não é esta a perspectiva do torcedor comum, para quem a grandeza e força mitológica de seu clube foi historicamente construída sobre rivais locais. Um grau de extroversão que aliás já nos incomoda desde o início dos anos 1980, quando a seleção nacional deixou para sempre de ser formada por jogadores atuantes no futebol brasileiro, em função da exportação de talentos que desde então não para de crescer, privando-nos da convivência com estes jogadores, algo fundamental para alimentar sua condição de ídolos.
Nota-se no Brasil um crescente esvaziamento nos estádios, sobretudo nas metrópoles. O futebol brasileiro, em suma, vive um momento de profunda reorganização, muito prejudicada pelas mundialmente conhecidas estruturas de corrupção e má gestão14. A lógica instrumental globalizadora vem prevalecendo sobre a tradição local, alterando profundamente a estrutura do futebol, e tentando reduzir o torcedor a mero consumidor. Até que ponto a identidade local resistirá ou sofrerá profundas modificações, é algo que somente o tempo nos dirá.
Notas
Lembremos que das Ilhas Britânicas partiu mais de 1/3 da volumosa onda migratória européia entre 1850 e 1890 (Said, 1995; Hobsbawm & Ranger, 1982). E que, considerando-se o chamado "império informal", aquele formado por estados independentes porém subalternos economicamente à Inglaterra, no final do século XIX "talvez 1/3 do planeta fosse britânico em sentido econômico e, na verdade, cultural" (Hobsbawm, 1988:111).
No Paraná, sul do Brasil considera-se como introdutor do futebol o inglês Charles Wright, que na construção de uma ferrovia. Em Fortaleza, nordeste do Brasil, a primeira partida de futebol oficialmente reconhecida é o desafio da juventude local ao time inglês da Cia. de Gaz. Em Salvador, na Bahia, era formado inteiramente por ingleses o primeiro clube campeão local, em 1905.
Tal avaliação é recorrente em publicações estrangeiras sobre o futebol brasileiro. Uma avaliação crítica da obra da socióloga norte-americana Janet Lever e de outros "brazilianistas", à luz de novos levantamentos sobre a difusão do futebol no Brasil encontra-se em Mascarenhas (2002, mimeo).
Podemos admitir um processo bem mais simplificado em países como Uruguai e Argentina, nos quais o território nacional encontrava-se já em fins do século XIX polarizado por um único grande centro portuário e capital da República. Em outras palavras, Buenos Aires e Montevideo dispunham de grande capacidade de penetração no interior do território através da malha ferroviária radiocêntrica. Sobre a primazia paulistana, ver Mascarenhas (1999).
Percebemos processo semelhante na Espanha, alvo de estudo quando de nossa permanência na Universidade de Barcelona (Mascarenhas, 2001b). Entretanto, a maioria dos países tende mesmo a apresentar um modelo de introdução do futebol mais simplificado, podendo-se identificar nitidamente aquele lugar que primeiro adquire a inovação, geralmente o porto mais ativo e conectado à Inglaterra: Gênova na Itália, Le Havre na França, Valparaíso no Chile, Buenos Aires, Montevideo etc.
Naquele contexto, nossas metrópoles "apenas comandavam uma fração do território, sua chamada zona de influência" (Santos, 1993:89).
O Brasil é, desde 1889, uma república federativa, dividida em 26 estados (unidades territoriais com governo próprio).
O Rio Grande do Sul foi estudado em nossa tese de doutorado (Mascarenhas, 2001), por sua singularidade no contexto brasileiro: um campeonato reunindo muitas cidades, com ampla cobertura espacial, fenômeno relacionado a sua rede urbana e outras características do território.
No ano seguinte, o campeonato nacional reduziu o número de participantes, atendendo à demanda do Clube dos Treze, e contornando as tensões.
Impulsionada pela mídia, e pelo retorno financeiro com direitos de transmissão por TV, a Taça Libertadores adquire valor inédito no Brasil (os clubes desistiram de participar em 1966, 1969 e 1970, alegando prejuízo), que consequentemente melhora radicalmente sua performance técnica: vence 6 edições nesta década, contra apenas duas nos anos 60 (excepcionalmente, graças ao Santos), 1 nos 70 e 2 nos 80. Clubes passam a desejar a participação nesta competição, outrora desvalorizada e tida como violenta, desonesta etc.
Outro exemplo da expansão da escala extra-local é o mundial de clubes da FIFA, cuja primeira edição ocorreu em janeiro de 2000. Podemos citar também as eliminatórias hiper-ampliadas para a Copa do Mundo 2002.
Por esta razão, a Copa dos Campeões vem sendo realizada na região nordeste, embora a grande maioria dos clubes participantes não pertençam a esta região. Trata-se de uma região periférica no contexto nacional, onde a adesão aos clubes metropolitanos (em detrimento às agremiações locais) é muito grande. Ademais, tal competição se utiliza dos imensos (e subutilizados) estádios de futebol, erguidos em sua maioria durante o regime militar.
No caso de Porto Alegre, onde há dois grandes estádios privados, aconselham a reduzir o desperdício, demolindo um deles.
Ver a matéria de capa da Newsweek, de 15 de janeiro de 2001: “The fall of football”.
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