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Corpo sob a proteção da bioética

   
Universidade Federal de Santa Maria - RS.
(Brasil)
 
 
Silvino Santin
santin@terra.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
    Tomando por começo o pensamento racional, quando se fez a distinção entre o corpo (soma) e mente (psique), pode-se afirmar que o corpo foi reduzido a um simples coadjuvante na história do desenvolvimento e aperfeiçoamento da humanidade. A invenção de um sujeito cognoscente, que se situa acima das manifestações e percepções sensíveis, assegurou um novo projeto de ideal humano. Neste momento, o ser humano, isto é, a especificidade humana passa a ser o pensamento, a psique, o logos, a alma ou a razão; sendo o corpo um quase resíduo da animalidade. Quando o saber humano, guiado por esse projeto de humanidade, já como instância teórica, deixou de ter como objetivo maior a contemplação do mundo, para transformar-se em fundamento da ação prática, as intervenções transformadoras da realidade acabaram sendo a justificativa maior de todo conhecimento. As ciências experimentais tornaram-se o grande acervo teórico para a instrumentalização de todas as ações humanas. O universo, e tudo o que nele está contido, transformou-se num imenso canteiro de obras. Aparentemente, os engenheiros destas obras, parece, não respeitaram limites de qualquer espécie. O último passo, não sei se definitivamente o último, destas engenharias em sua fúria transformativas, é o corpo humano. Começou com as anatomias em cadáveres, o que fez do corpo um objeto de investigação livre, pelos menos sem limites seguros, e culminou com a clonagem. É neste momento que a bioética vem em socorro, não só do corpo, mas da pessoa humana. Talvez seja importante perguntar: É possível salvar a espécie humana? Ou ela seria apenas mais um degrau do processo evolutivo inevitável?
    Palavras chave: Corpo. Ética. Bioética. Ciência. Vida. Pessoa.

Ponencia presentada para el IV Encuentro Deporte y Ciencias Sociales, Buenos Aires, noviembre de 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

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I. O homem e o corpo

    É pensamento corrente que em nenhum momento da história da antropologia o corpo humano foi alvo de tantas atenções como atualmente. Observando esse comportamento contemporâneo, não cheguei a concluir com segurança que o corpo esteja merecendo mais atenção do que no passado. A única coisa que me parece inquestionável é o olhar muito diferente do homem sobre seu corpo. As relações do homem com o corpo mudaram de forma radical.

    Não pretendo fazer uma revisão histórica para comprovar o que acabei de afirmar, mas apenas vou pontuar alguns momentos em que, segundo critérios antropológicos, as relações do homem com o corpo mudam de perfil. Geneticamente, pelo que nos dizem as ciências biológicas, o ser humano não apresenta grandes transformações. Pode-se afirmar que sob o ponto de vista biológico o homem continua o mesmo. Isto não significa que as mudanças de relação não possam provocar profundas modificações na existência humana.

1. O primeiro momento abrange o tempo em que o homem se considerava um simples ser vivo, entre outros seres vivos. Ele não havia formado uma idéia de si mesmo como um eu psíquico e, portanto, muito menos uma idéia de corpo, aliás, ele não tinha idéias de coisa nenhuma, enquanto representação mental. E isto não se deve ao fato de que não tivesse consciência de si como ser vivo, mas porque ainda não havia criado o hábito de formar idéia das coisas. Tudo era presente e vivido ou experienciado. O passo para as idéias como representação mental e abstrata de uma realidade surgem num tempo muito posterior.

    O fundamental da experiência de si como fato vivido se dá no contacto, na presença consigo mesmo e com os outros. Quando se vive algo o que determina as manifestações individuais e as relações interpessoais são os sentimentos de afinidade ou de repulsa. Na presença não há necessidade de mediação do conhecimento teórico que se tornou indispensável para o homem do pensamento racional. Vivia-se a vida na sua originalidade tanto individualmente quanto coletivamente. Ela determinava o que devia estar junto e aquilo que devia estar separado. A unidade era tal que afastava qualquer idéia de partes. Aliás, a idéia de Uno ou de Unidade aparece freqüentemente nas culturas orientais e, mesmo no coração da filosofia grega, está muito presente através de Plotino.1


2. Mas o homem quebrou esta harmonia unitária, que, segundo doutrinas orientais, foi o começo de todos os males. Trata-se tanto da unidade cósmica, quanto da unidade humana. A ruptura da unidade antropológica, o que interessa aqui, habitualmente é atribuída à invenção do pensamento racional, que, num primeiro momento, exigiu a presença de uma capacidade cognitiva abstracionista; num segundo momento, como decorrência deste processo cognitivo, foi possível construir uma realidade idealizada, constituída de representações mentais do real. O homem passou a ser visto numa dupla manifestação, uma física, outra mental, conseqüentemente deveria ter nele dois princípios, um psíquico, outro somático. Esta antropologia dual não é tão original como se pensa, ela encontra antecedentes já nas mitologias, que a filosofia grega se encarregou de traduzir em linguagem racional.

    As mitologias, ao referir-se à formação do homem, apresentam invariavelmente a presença de dois elementos de origem diferente e de natureza diversa. A mitologia bíblica, supostamente a mais antiga a vigorar no Ocidente, fala de um corpo moldado em argila e do sopro divino. Na tradição mítica grega encontramos a centelha de fogo, subtraída de Zeus e entregue por Prometeu aos homens. A lenda latina da Deusa Cura, mostra o homem proveniente, parte da modelagem em argila, obra de Cura, e parte da contribuição de Júpiter infundindo-lhe seu espírito.

    Essas são as raízes mais profundas da história serviçal do corpo, que Roy Porter, ainda que não originalmente e, como ele mesmo diz, de forma simplificada, assim resume: “Até há pouco tempo, a história do corpo tem sido, em geral negligenciada, não sendo difícil se perceber o porquê. Por um lado, os componentes clássicos, e por outro lado, os judaico-cristãos, de nossa herança cultural, avançaram ambos para uma visão fundamentalmente dualista do homem, [...]; e ambas as tradições, em seus caminhos diferentes e por razões diferentes, elevaram a mente ou a alma e denegriram o corpo”. 2 Esta história é apresentada por Edgar Morin de maneira muito mais cruel ao lembrar os sacrifícios cruentos de animais e humanos para salvar a humanidade da maldição, da seca, das inundações, dos terremotos, da incerteza e da infelicidade; para debelar as ameaças das doenças e da morte; por fim, este recurso aos sacrifícios não desapareceu, ao contrário, continua sob formas patrióticas, políticas e ideológicas. 3 A narrativa de Porter pode ser confirmada, sem dúvida, pela maneira como a formação escolar, mesmo atualmente, se faz e como cada um se relaciona com o corpo. A escola, baseada no processo de ensino/aprendizagem, tratou o corpo através de uma pedagogia disciplinadora como suporte das atividades mentais. A história da vida escolar de cada pessoa é apenas a história do desenvolvimento de sua inteligência, a história do desenvolvimento do corpo não aparece, nem poderia aparecer, pois todo programa escolar está centrado sobre as capacidades cognitivas.


3. O terceiro momento acontece com o surgimento da ciência moderna. A antropologia científica, sob a visão dualista, nada mudou para o corpo, ele continuou separado da razão. Neste sentido, a separação foi ainda mais radical, pois, segundo Descartes, o corpo não participa do ato de pensar. Portanto, o corpo não contribui em nada para o conhecimento. Desta maneira os filósofos, preocupados com as questões da verdade e da legitimidade do conhecimento, centraram suas atenções exclusivamente sobre o mecanismos da razão para chegar ao verdadeiro conhecimento. Para que se preocupar com o corpo se a razão é autônoma no seu agir?

    Os investigadores das ciências empíricas, especialmente os anatomistas, assumiram para si o estudo do corpo, inicialmente sem nenhuma oposição por parte dos filósofos; a única resistência vinha da ordem ética de inspiração religiosa, que, por sinal, se valia da poderosa mão dos tribunais da Inquisição.

    As teses vigentes eram de que, sob o ponto de vista teológico, o corpo fora criado por Deus e selado, portanto, inviolável à mão humana; sob o ponto de vista filosófico, não havia propriamente uma interdição explícita, mas admitia-se que a natureza humana deveria ser respeitada tal qual era, pois ela é o fundamento da vida, da ordem social, do comportamento e das relações individuais e coletivas.

    Ficou claro o conflito entre os cientistas, em geral, e os anatomistas, em particular, e os moralistas da época. De fato o avanço das ciências estava brecado pelas normais morais vigentes. Diante da irredutibilidade dos defensores dos princípios da ética tradicional que não permitia desenvolver as ciências empíricas acabou se desenhando o inevitável rompimento entre ética e ciência. Foi o que aconteceu.


4. O quarto momento surge com o reconhecimento de que o fazer científico pode acontecer de forma legítima, independentemente da ética. Diante dos fatos, os cientistas tiveram uma única alternativa; o distanciamento da rigidez moral da época. Sem isso as investigações científicas não teriam atingido, com a rapidez conhecida, o grau de desenvolvimento atual. Os sucessos científicos foram festejados por todos os que, rompendo com a mentalidade de uma ciência baseada na preservação da tradição, pensavam o progresso da humanidade como o projeto futuro de uma nova ciência.

    Realmente, esta separação foi fundamental não só para o progresso do conhecimento sobre o universo e sobre o homem, mas especialmente pelos benefícios que as novas descobertas trouxeram para o bem-estar da humanidade. Em pouco mais de três séculos a humanidade, graças à nova ciência, atingiu tal grau de desenvolvimento que não se pode comparar ao que havia conseguido durante milhões de anos desde sua origem.

    Ninguém põe em dúvida que, nesta primeira fase da separação entre ciência e ética, a humanidade na sua totalidade viu-se diante de uma transformação da sua condição de vida altamente positiva. Os conhecimentos sobre os mistérios da vida e, em particular, a revelação do que acontecia no interior do corpo humano, possibilitaram a produção de um imenso arsenal de medicamentos e de técnicas cirúrgicas. Assim, diante dos velhos problemas, especialmente, referente à subnutrição, ao controle de doenças incuráveis e à eliminação das grandes epidemias, a ciência se apresentava toda poderosa. Para ela tudo era questão de tempo.

    Deve-se destacar que a ciência, como forma de defesa contra os ataques dos defensores da dogmática cristã, foi apresentada como uma atividade neutra, seu único objetivo era conhecer pelo conhecer. Suas teses independiam dos ensinamentos teológicos. A verdade científica pertencia à outra instância distinta, não necessariamente contrária, à da verdade religiosa. Foi em nome desta, diríamos,hoje suposta, neutralidade que os cientistas avançaram em todas as direções sem muitos escrúpulos, até o momento em que começaram ser violados espaços ameaçando a dignidade da pessoa humana e a sobrevivência da humanidade e do planeta. O sinal despertador da consciência moral foi ouvido quando os poderes da ciência sobre o ser humano atingiram a intimidade da dignidade da pessoa humana.


5. O quinto momento se dá com o despertar da consciência sobre a necessidade de rever os possíveis descaminhos da ciência e da tecnologia. O primeiro gesto mais marcante nesta direção, acredito, possa ser creditado à Edmund Husserl manifestado em sua conferência de 1935. O tom de toda conferência gira em torno daquilo que ele identifica como “a crise das ciências como expressão da crise radical da vida da humanidade européia”. Sem a possibilidade de tecer maiores comentários vou ater-me a citar as seguintes palavras da tradução francesa: “La façon exclusive dont la vision globale du Monde qui est celle de l’homme moderne s’est laissée, dans la deuxième moitié du XIXe. Siècle, déterminer et aveugler para les sciences positives et par la `prosperity` qu’on leur devait, signifiait que l’on se détournait avec indifférence des questions que pour l’humanité authentique sont lês questions décisives. [...] Dans la détresse de notre vie, - c’est ce que nous entendons partout - cette science n’a rien à nous dire. Les questions qu’elle exclut par príncipe sont precisamente les questions qui sont les plus brülantes à notre époque malheureuse por une humanité abandonnée aux bluleversements du destin: ce sont les questions qui portent sur les sens ou sur l’absence de sens de toute cette existence humaine”. 4

    Assim, se a ciência passou a ser questionada pela perda do sentido do humano e pelo seu controle absoluto da verdade, a técnica, seu braço intervencionista, também foi colocada sob suspeita. Com muita precisão Ernildo Stein escreveu: “A crítica à ciência e à técnica não parte de um a priori antitecnocrático de românticos desencantados com a dessacralização do mundo. [...] se no começo o progresso técnico era bem e somente bom; se depois o progresso técnico passou a ser bem em si mesmo, mas utilizado mal (ou para mal) pelo sistema social existente; agora são cada vez mais numerosas as pessoas que pensam que a técnica é má em si mesma.” 5 Mais recentemente Henri Atlan, em sua monumental obra A Tort e à Raison, trata de uma série de temas, que a racionalidade científica deixou de fora de suas preocupações, entre eles, os do vivido, do bem e da beleza.


II. O retorno da ética

    No contexto destas denúncias generalizadas parece que se impôs como irreversível um retorno para a ética. Neste rumo podemos lembrar esta constatação apocalíptica de Einstein: “Sem cultura moral, nenhuma saída para os homens.” 6. Alguns anos mais tarde, com muito pesar, Bronowski reconhece que “A ciência não parou desde Hobbes, mas assuntos tais como a ética pararam”. 7

    Diante das palavras destes grandes mestres da ciência, existem outros, a necessidade de um retorno à ética estava reconhecida. Faltavam, apenas, alguns estímulos convincentes, que não tardaram a surgir. Os esforços das éticas cognitivistas para construir uma ética em nome de uma razão universal não chegaram a resultados práticos concretos. Parece que tudo ficou no brilhantismo de discursos acadêmicos, com profusão de argumentos, mas sem conseguir demonstrar sua viabilidade.

    Os discursos mais conseqüentes, que chamaram a atenção de maior número de estudiosos, especialmente na área das ciências biológicas e da saúde, foram os que atingiram as bases das justificativas que conduziram à separação entre ética e ciência. Naquele momento da instalação da nova ciência, a ética, como já foi lembrado, tornara-se um obstáculo para seu desenvolvimento. Agora esta separação está sendo nociva para o ser humano e, talvez, para o próprio desenvolvimento do conhecimento. Hoje o retorno do debate ético está sendo quase uma unidade, como esforço para controlar os possíveis abusos da produção e do uso de conhecimentos.

    Um segundo ponto denunciado com muita insistência é o da falsa neutralidade das ciências. As ciências não têm mais, se um dia tiveram, o objetivo de conhecer por conhecer, da verdade pela verdade; ao contrário, atrás delas estão interesses inconfessáveis e montanhas de financiamentos em benefício do mercado. Aos poucos a denúncia da ilusória neutralidade da ciência, e da ausência de limites éticos em nome do conhecer pelo conhecer cresceram de tal forma que os próprios cientistas sentiram-se na obrigação de se reaproximar da ética. O que, três séculos atrás, fora uma condição indispensável para o progresso da ciência, hoje, a restauração de seus vínculos com a ética tornou-se sua própria salvação.

    Tanto a perda do sentido humano, quanto o mito da neutralidade levaram ao ponto inicial da separação, isto é, o encontro com os juízos de valor, exatamente os excluídos dos juízos científicos em nome da objetividade. Afinal de contas, o cientista, como qualquer outra pessoa humana, fala de algum lugar social e histórico. O cientista pensa dentro de um paradigma de cientificidade, que é uma invenção do homem, portanto, uma construção subjetiva. A ciência, de alguma maneira, trabalha, também, com juízos de valor. Neste sentido, vou traduzir livremente uma idéia de Lyotard ao dizer que a ciência não poderia aceitar o fator verdade como télos determinante, pois uma vez de posse da verdade o cientista tudo regula, domina e critica e então ninguém sabe quando o mestre mente e quando diz a verdade. 8

    Uma vez senhora absoluta da verdade, a ciência passou uma realidade que lhe convinha; repetiu, assim, a mesma atitude das doutrinas teológicas que ela tanto combateu. Instalou-se a “nova religião da ciência”, na expressão de Castoriadis. 9 Seu poder teórico tornou-se ameaçador pelo braço da técnica. Qualquer ação técnica foi aceita como moralmente legítima desde que fosse alicerçada sobre uma verdade cientificamente comprovada. Pelo atual avanço do conhecimento científico foi possível construir um aparato tecnológico capaz de conceder poderes quase ilimitados ao homem.


Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 8 · Nº 57   sigue Ü