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Brasil: futebol e identidade nacional

   
Departamento de História
Universidade Federal do Paraná (Brasil)
 
 
Luiz Carlos Ribeiro
ribeiro@ufpr.br 
 

 

 

 

 
     A presente comunicação pretende analisar a relação, no Brasil, entre futebol e identidade nacional. Momentos diversos da história brasileira serão abordados. Em primeiro, as décadas iniciais do século XX, momento de formação dos clubes de futebol. Em seguida, dois períodos marcados por regimes autoritários: a ditadura de Vargas, de 1937 a 1945, e a ditadura militar dos anos 60/70. Finalmente, a conjuntura da reconstrução democrática dos anos 1980 e 1990. O objetivo, portanto, é o de verificar os diversos usos que o sistema político fez do futebol, em momentos diferentes da experiência histórica brasileira.

Ponencia presentada en el IV Encuentro Deporte y Ciencias Sociales, Buenos Aires, noviembre de 2002

 
 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 56 - Enero de 2003

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Introdução
    O sentido de analisarmos o futebol no Brasil, em períodos históricos tão diferentes da história recente do Brasil, é o de procurar entender a relação entre o futebol e a política. Mais especificamente, o interesse e o de entender qual o uso que o sistema político brasileiro fez do futebol, em diferentes momentos políticos de sua história. Ao propormos essa relação entre futebol e política, não pretendemos reduzir a prática do futebol à da política, como se o primeiro fosse mero reflexo do segundo. Em sentido diverso, queremos demonstrar como há um equilíbrio tenso nessa relação.

    O nosso enfoque inscreve-se no campo da chamada cultura política1, que pressupõe compreender o desenvolvimento do futebol a partir de um campo político que é ao mesmo tempo hegemônico e complexo, inacabado pelas ações constantes dos indivíduos ou dos agentes coletivos. Ou seja uma "estrutura" composta por respostas provisórias - discursos e práticas legitimadores - dadas por uma determinada sociedade aos problemas e crises da sua história. "Respostas com fundamento bastante para que se inscrevam na duração e atravessem as gerações."2

    Nesse sentido, futebol e ideologia nacional estão profundamente relacionados3, seja na expansão cultural britânica do século XIX, no nacional-socialismo alemão ou na formação na ditadura militar brasileira.

O início do século XX
    Marcados de maneira significativa pela presença de uma massa de europeus que migravam desde o final do século XIX, os primeiros clubes de futebol surgiram no Brasil no início do século XX. Apesar dos dados sobre a imigração serem dispersos, estudo recente apresenta o seguinte quadro para o período de 1884 a 19394:


Imigração Brasileira - 1884 a 1939

    Concentrados nas principais cidades brasileiras - principalmente Rio de Janeiro e São Paulo - esses imigrantes contribuíram direta ou indiretamente para a disseminação dos esportes em geral e para fundação de clubes esportivos, em especial de futebol.

    Portanto, a inserção desses imigrantes e da prática futebolística no Brasil, coincide com o movimento de expansão do capital internacional - liderado principalmente pela Inglaterra - pela rápida modernização da economia e da sociedade brasileira. Compõem esse quadro de reestruturação, o fim do trabalho escravo (1888) - que era justamente substituído pelo trabalho livre do imigrante - e a instauração do regime republicano (1889).

    É dessa época a formação dos primeiros clubes, quase todos tendo sua origem entre as elites, tais como o São Paulo Futebol Clube (1888), Fluminense (1902), Grêmio Porto Alegrense (1903), Botafogo (1904), Internacional (1909), Flamengo (1911), Corinthians (1913) e Palmeiras (1914). Contudo, é preciso destacar que um número muito grande de clubes foi criado em todo o território brasileiro, mas não conseguiu sobreviver devido as dificuldades financeiras de manutenção. Afinal, a maioria dos europeus que havia se transferido para o Brasil era composta de homens pobres, socialmente excluídos de seus países originais.

    De qualquer modo, para as elites brasileiras a imigração era um aspecto da modernização civilizadora pela qual passava o país, sendo a fundação de clubes de futebol também reconhecida como parte desse processo.

    Nesse sentido, vivenciando a sociedade brasileira uma forte tensão externa - as pressões do capital internacional que impunha profundas mudanças na economia - e interna - os conflitos de um recém instalado mercado de trabalho livre - a necessidade de um reordenamento geral de todo o tecido social, colocava o futebol como parte do processo modernizador. Apesar da baixa concentração urbana - apenas cerca de 20% da população brasileira vivia nas cidades -, as duas cidades (Rio de Janeiro e São Paulo) concentravam boa parte da governabilidade do país. Concentração política no urbano e o desenvolvimento do futebol pertenciam ao mesmo processo, apesar de contidos de elementos antitéticos.

    Desse modo, o desenvolvimento de práticas esportivas em geral passou a ser considerado uma forma de atenuar as tensões políticas. Fundado em princípios liberais e ainda em fase de constituição enquanto direção política na sociedade de novo tipo - a sociedade de livre mercado - o Estado e as elites não tinham sobre o conjunto da sociedade um projeto ordenado de organização e disciplina, senão aquele colocado pela lógica da modernização capitalista, ainda não suficientemente absorvido.

    O projeto de modernização que as elites locais em associação com o grande capital internacional desejavam, previa uma ação disciplinadora do espaço público, mas legitimada por princípios liberais e de autonomia dos indivíduos e das instituições.

    Assim, apesar da intenção disciplinadora, ao longo das três primeiras décadas do século XX, houve pouca intervenção direta no Estado no esporte. É somente a partir do final dos anos vinte, e principalmente nos anos trinta, que se produz um discurso centralizador e se objetiva uma forma mais atuante do Estado em relação as organizações esportivas. Pelo menos dois fatores contribuíram para essa mudança: a fragilização da até então hegemônica política oligárquico-cafeeira e do liberalismo republicano, e a crescente popularização do futebol.


A ditadura Vargas: 1937-1945
     Os movimentos de mudanças ocorridos nos anos trinta - a Revolução de 1930 e o golpe que instala a ditadura Vargas em 1937 - não foram propriamente grandes rupturas, na medida em que as idéias de centralização política vinham sendo produzidas já desde os anos vinte. Desde esse período, o esgotamento da eficiência acumuladora da economia cafeeira colocava em cheque os frágeis princípios liberais, gestando-se em nome da ordem e do progresso um ideário de inspiração fascista.

    Legitimado por um lado pela idéia de crise que o próprio discurso autoritário produziu e por outro pelo avanço no plano internacional do autoritarismo, o "Estado Novo" varguista desenvolveu um processo de construção de uma nova e verdadeira identidade nacional.

    Um processo ideológico e doutrinário que pressupunha repensar a sociedade como um todo, dando-lhe uma nova fundação. No mesmo movimento que elaboravam o ideário de um passado de crise e de ausência de identidade, davam organicidade à nação definindo elementos como povo e nação.

    Manifestando consciência de seu papel de elite, os grupos hegemônicos definiam com clareza seu papel de classe dirigente e de construtores da nova ordem. Atribuíam para si - diante da "incapacidade" do povo - a tarefa de organizar todo o tecido social, fundando um "homem novo" e, com ele, o povo e a nação. O pressuposto era de que os indivíduos e as classes, isolados, eram incapazes de uma consolidar as raízes da nação. O "Estado Novo" se apresenta como uma solução acabada, capaz de, acima dos conflitos e dos interesses individuais e de classes, constituir a nação.

    Discursando em 1938 para trabalhadores, em São Paulo, o presidente Vargas define com clareza o regime:

    O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade! O Estado, sobrepondo-se à luta de interesses, garante só os direitos da coletividade e faz cumprir os deveres para com ela. O Estado não quer, não reconhece a luta de classes. As leis trabalhistas são leis de harmonia social.5

    É nesse processo que se inscreve também o futebol. Caracterizado já nos anos 30/40 como um fenômeno popular e de massa, o futebol - assim como as atividades esportivas em geral - passou a ser visto pelas elites governantes como um componente fundamental a ser atingido na sua cruzada disciplinadora.

    Ela já se inicia em 1933, com o governo criando a profissão do jogador de futebol e obrigando - como a todo trabalhador assalariado - a sua sindicalização. Na verdade, a profissionalização do jogador de futebol correspondia a um movimento cultural e político mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado, a dinâmica específica do futebol, quanto um clima cultural, que perpassava toda a sociedade, de produção de uma identidade nacional forte. Com relação a situação específica do futebol, a profissionalização correspondia à tensão que existia entre a tradição elitista e amadora dos primórdios da prática esportiva e a necessidade de regulamentar nos clubes - numa conjuntura de popularização do futebol - a crescente participação de jogadores remunerados, de sua maioria de origem pobre e negra.

    O amadorismo correspondia à fase inicial da introdução do futebol e da criação de clubes dedicados a essa prática no Brasil. De tradição européia e elitista, a exigência do far play e do amadorismo era uma forma de distinção das elites com relação às camadas populares. Com a disseminação e popularização do futebol, aumentava nos principais clubes brasileiros a participação de jogadores de origem humilde e negra. Essa dinâmica colocou em xeque o fator de distinção das elites - a exigência do amadorismo - fortalecendo as bases de uma cultura política fundada no populismo das "verdadeiras raízes brasileiras".

    Apesar da resistência de alguns segmentos mais conservadores, o crescimento da ideologia da construção de uma identidade de povo e de nação, fundada no imaginário do mulato, colabora para a profissionalização. A influência negra e indígena, que no início do século era considerada a negação na identidade Brasil, é agora vista como o fundamento de uma ideologia nacional, a brasilidade. Aliás, uma cultura política que não ficou restrita ao período de Vargas (1930 a 1945), mas que perpetrou também a fase nacional-populista subseqüente.

    Vejamos, por exemplo, a relação que Gilberto Freyre - um dos maiores intelectuais brasileiros do período - estabeleceu entre futebol e fundação da identidade nacional:

    Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de futebol, e esse estilo é uma expressão a mais do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, curvas ou em músicas, as técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam elas de jogo ou de arquitetura. Porque é um mulatismo o nosso - psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato - inimigo do formalismo apolíneo sendo dionisíaco a seu jeito - o grande feito mulato.6

     Ou ainda

    O mesmo estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil.7

    Mas o "mulatismo" e a malandragem - a "afirmação verdadeira do Brasil", no dizer de G. Freyre - conflitava com o desejo e a necessidade dos setores dominantes em disciplinar a sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo em que o brilho do esporte nacional advinha de uma "espontaneidade individual" - característica de uma suposta brasilidade - era necessária uma organização que imprimisse disciplina a essa vontade criadora.

    O conceito de "disciplina", aqui, era tanto ideológico e moral - no sentido de uma organização ampla da sociedade - quanto específica ao esporte, como um pressuposto de racionalidade operativa e eficácia competitiva, a partir de uma suposta neutralidade técnica.8

    É com esse espírito que foi criado em 1941 o Conselho Nacional de Desportos. Inscrito na cultura política do estado autoritário varguista, o CND visava todo um ordenamento desportivo, em especial o futebol que vivia uma transição tensa do amadorismo para o profissionalismo e ganhava cada vez mais importância política, enquanto manifestação popular e de massa.

    Do ponto de vista da organização do futebol, a entidade pretendia intervir no campo privado dos clubes, herança de uma autonomia liberal do início do século. Legislar sobre a profissionalização do futebol tinha uma intenção disciplinadora, tanto moral quanto política. A origem do problema encontrava-se nos "pressupostos liberais da ordem desportiva brasileira, originária da associação espontânea de indivíduos em entidades de direito privado, os clubes", até então sem interferência do Estado.9

    Portanto, o programa político de intervenção e controle nos clubes e federações, pertencia a um movimento autoritário que responsabiliza o republicanismo liberal, anterior a 1930, da crise e da instabilidade e, principalmente, da incapacidade de fundar uma verdadeira identidade nacional brasileira.

    Nesse sentido, produz-se um discurso de ruptura, em que a crise é identificada, elaborando-se em seguida a proposta de uma ação renovadora e verdadeiramente fundadora da identidade nacional. A ação sobre a organização desportiva era um dos lugares de produção desse discurso legitimador.

    A construção dessa nova configuração - o imaginário político do homem e da nação brasileiros - sofria, como pudemos observar, uma tensão entre a intervenção disciplinar e a indisciplina criativa do "mulatismo". E é esse hibridismo - com algumas nuances - que já estava presente na antropofagia modernista de Mário e Oswald de Andrade, desde os anos vinte. Ou seja, o desejo de fundir a organização e a disciplina dos europeus com a espontaneidade individual do mulato, a "afirmação verdadeira do Brasil".

    No plano futebolístico, as vitórias do selecionado brasileiro, nas Copas do Mundo de 1958 (Suécia) e 1962 (Chile) - com a presença do negro Pelé e de Garrincha, de origem camponesa e descendência indígena -, representariam a vitória, ao mesmo tempo definitiva e contraditória, desse "mulatismo".


Os anos da ditadura militar
     Pressionado pela expansão capitalista e pelos ideológicos da "Guerra Fria", o Brasil sofre - partir dos anos 50/60 - o impacto de uma nova modernização conservadora. A construção da capital federal, Brasília, a organização de uma malha rodoviária ligando as principais cidades e a instalação de uma indústria pesada e de bens de consumo duráveis, são exemplos dessa modernização. No campo político, a desorganização da estrutura autoritária dos anos 30/40 deu espaço para um nacional-populismo como resposta das classes dirigentes às tensões sociais internas.

    O alto custo social dessa modernização - na medida em que endividava o país, pressionava pela alta da inflação e aumentava a desigualdade social -, colocou em xeque o frágil pacto social populista, que dava, até então, alguma sustentabilidade ao modelo econômico. Dessa tensão derivou - não só no Brasil, mas em quase toda a América Latina - uma nova etapa autoritária: a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985.

    De qualquer modo, o futebol dos grandes clubes e da seleção nacional, na sua maior parte controlado por uma direção conservadora e com baixíssimo grau de transparência - resultado de uma mal resolvida fusão de princípios liberais e intervencionismo na defesa dos interesses privados -, nunca ofereceu qualquer tipo de ameaça ao regime ditatorial. Ao contrário, a repressão às manifestações independentes, da imprensa ou de qualquer agente ligado ao esporte, interessava à estrutura organizacional do futebol brasileiro.

    A estrutura amadora ou dos pequenos clubes profissionais - supostamente mais descentralizada e democrática -, também não representava qualquer ameaça ao sistema, na medida em que era definida a partir de interesses políticos locais, sob a hegemonia dos grandes clubes.

    Ou seja, não houve necessidade de uma ação interventora do regime, no sentido de utilizar-se do futebol na defesa de seus interesses. O uso, quando houve, foi resultado de uma prática há muito enraizada cultura política do país: o Estado intervindo para garantir princípios liberais da propriedade privada e, conseqüentemente, atendendo a interesses de setores hegemônicos.

    Ao mesmo, a característica do futebol como uma "paixão nacional", uma cultura de massa, retirava desde sua base qualquer viés classista ou de interesse diverso da política dominante. Ou seja, o regime que se instalou em 1964 não se definiu apenas pela ditadura aberta dos militares, mas fundamentalmente por se apropriar de uma tradição elitista e autoritária da cultura política brasileira.

    A evidência disso se revela no fato de não se ter realizado qualquer modificação substantiva na legislação desportiva herdada do período estadonovista. Conforme Manhães, a organização das instituições e da legislação desportiva no período da ditadura militar - 1964-1985 - permaneceu inalterada ou sofreu apenas reparos formais ou periféricos.10

    Desse aspecto legal, comenta o autor, as poucas intervenções que se fez foi no sentido de privilegiar o poder local, em detrimento a uma política de fortalecimento do esporte seletivo e competitivo. Através da estrutura federativa e do "voto unitário", as unidades federativas sem expressão na modalidade esportiva tinham o mesmo peso eleitoral e político que aquelas com maior condição competitiva. O voto unitário, portanto, tinha muito mais um efeito de negociação política do que uma suposta melhoria da qualidade esportiva da modalidade. Com o futebol não ocorria diferente.

    Aliás, foi essa mesma fórmula "descentralizada" e baseada no voto unitário que permitiu a eleição de João Havelange - ex-dirigente da CBF - para o cargo de presidente da FIFA, em 1974.

    De qualquer modo, independente dos esforços políticos, os resultados do selecionado brasileiro não necessariamente corresponderam às expectativas políticas do regime. Das cinco Copas do Mundo disputadas entre 1964 e 1985, apenas na de 1970 o selecionado foi vitorioso, conquistando o tricampeonato mundial. A conclusão é óbvia e salutar: apesar de toda a estrutura de controle que havia, visando obter resultados que interessariam ser explorados politicamente, o jogo preservou a sua autonomia.

    Portanto não é possível reduzir os resultados do futebol - ou em qualquer outro tipo de esporte - a mandos políticos. Como toda configuração, o jogo de futebol está contido de um equilíbrio flutuante das tensões, o que lhe dá um grau de autonomia ou aquilo que N. Elias denominou como um "caráter cego, não planejado" da configuração.11 Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o regime militar procurou impor uma estrutura social, a indeterminação do jogo não permitiu o controle. O regime político interfere, manipula, explora ao máximo a estrutura corrupta e centralizadora do futebol, mas não lhe determina.

    Além da estrutura conservadora e corrupta do futebol brasileiro, que o regime militar procurou utilizar como forma de troca política, onde a conivência era a regra, um outro tema marcou o desenvolvimento do futebol nos anos da ditadura. Depois da vitória em 1970, no México, a dificuldade de manter a hegemonia no futebol mundial provocou questionamentos sobre a nossa eficiência.

    Apesar da campanha bisonha de 196612, a vitória em 1970, no México, em plena vigência do regime autoritário, fortaleceu o imaginário de uma nação moderna e reconhecida como potência mundial. "Ninguém segura esse país" era a palavra de ordem que impulsionava o regime militar. Depois da conquista de 70 - a última participação de Pelé no selecionado -, éramos considerados imbatíveis pois, "todos juntos" levaríamos o país "pra frente". Não por coincidência o início nos anos setenta foi um das fases mais violentas da repressão militar.

    Mas o fracasso na Copa de 1974, na Alemanha - quando o Brasil obteve apenas a quarta colocação -, não correspondeu às expectativas de inexorável invencibilidade do escrete (scratch) nacional, descrito pelo imaginário político autoritário. O fracasso na Copa, o fim da "Era Pelé" e as impressões deixadas pelo "carrossel" holandês, naquele período, criaram um clima de crise no futebol brasileiro. Somava-se a isso os primeiros sinais de esgotamento do "milagre econômico" brasileiro, colocando em xeque o regime político.

    Portanto, vencer a Copa seguinte (Argentina, 1978) - alíás, campo de um adversário tradicional -, tornou-se um imperativo político. Como a seleção não podia falhar, o futebol que até então era visto como "arte" e símbolo de nossa "brasilidade futebolística", passou a ser analisado agora como sinônimo de improviso e de desorganização. 13

    Nesse momento de redefinição de nossas metáforas e representações coletivas de um de nossos símbolos culturais, o futebol, iniciou-se uma crise em nossas construções sobre o que seria "tipicamente brasileiro". Nosso estilo anárquico e individualista passou a ser visto como lento, virando alvo de crítica. (...) Aquele "mulatismo" passou a ser visto como um obstáculo para a nossa inserção no primeiro mundo do esporte; aquela malandragem e "irracionalidade" tão elogiadas tornaram-se empecilhos ao progresso.14

    O "futebol arte" de Leônidas, Pelé e Garrincha passou a visto como a causa de nossos fracassos. Uma frustração que não ficava restrita às atuações do selecionado, mas se estendia ao corpo social. Vencer o Campeonato Mundial da Argentina era uma forma de legitimação da eficácia do modelo econômico e político.

    Assim, diferente dos anos trinta a sessenta - principalmente com as conquistas de dois campeonatos mundiais de futebol - agora a emancipação e a consolidação da identidade nacional não se encontrava mais na propalada do "mulatismo", mas no seu oposto. O brilho individual deveria dar lugar à racionalidade e a organização. "Tais temas passaram a ser associados a nossa maturidade como nação".15

    Para realizar essa tarefa - ainda em tempo de se tentar conquistar a Copa da Argentina - os militares colocaram no comando da Seleção Brasileiro uma verdadeira tropa de militares. No comando estava o Almirante Heleno Nunes, presidente da CBD e da Arena - partido político criado pelo regime militar - do Estado do Rio. No comando técnico, o Capitão da reserva, Cláudio Coutinho. O tesoureiro era o Tenente-coronel Cavalheiro.

    Vejamos algumas frases atribuídas a técnico Coutinho, em entrevista de época:

    Nunca tive medo de assumir a chefia da seleção. Afinal, desde que entrei no Exército comecei a ser treinado para comandar. Devo toda minha formação moral e intelectual, e minha própria personalidade, ao Exército. E o Exército é uma grande lavagem cerebral; ali você é preparado para se tornar líder. (...)
    Usamos táticas que aprendemos no Exército, pois entre comandar um time de futebol, um pelotão ou um regimento existe muitas semelhanças quanto a organização, disciplina, entendimento e cooperação.
16

     Apesar de todos esses preparativos, o Brasil obteve na Argentina apenas a quarta colocação. O pitoresco nisso tudo é observar que há um certo retorno aos primórdios do futebol no Brasil, quando a sua prática era vista como forma de a nação inserir-se no mundo civilizado. Era uma forma de alguns jovens da elite imitarem a cultura européia e distanciar-se de práticas esportivas dos homens pobres, como a capoeira praticada por ex-escravos e homens pobres em geral. Enquanto esta era símbolo do "mulatismo" e portanto representativo de um atraso cultural a ser negado, o foot ball, com suas regras e uniformes, era a expressão da ordem e da civilização a ser introjetada.

    Mas o futebol, como uma cultura híbrida, foi tomado pela malevolência mulata e, por isso, precisava ser, agora nos anos 1970, ser conduzido com a racionalidade da técnica.


Participação do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol - 1970 a 2002

     Já os primeiros anos da década de oitenta correspondeu ao início da redemocratização do país. Manifestações nas ruas e greves nacionais exigiam a democratização e realização de eleições diretas. A criação de novos partidos e o surgimento de novas lideranças políticas - entre outros, a criação da CUT-Central Única dos Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores e o surgimento da liderança sindical e política de Luiz Inácio "Lula" da Silva - coincidiam com um movimento futebolístico histórico: a chamada "Democracia Corinthiana", muito provavelmente uma resposta à disciplina militar implantada nos clubes e no selecionado nacional.

     Essa manifestação, uma iniciativa de alguns jogadores e dirigentes de um dos clubes mais populares do mundo - o Corinthians Futebol Clube, de São Paulo - adquiriu um alcance e um significado que ultrapassava "a esfera estritamente esportiva, repercutindo no campo mais abrangente da sociedade para, em seguida, num movimento de retorno, questionar os limites estreitos dentro dos quais o discurso e as práticas de poder pretendiam aprisionar o atleta profissional".17 O testemunho do jogador Wladimir - um dos idealizadores do movimento de democratização do clube - é bastante exemplar:

     A partir daí, votávamos tudo o que se referia ao grupo. Desde a questão polêmica da validade da concentração até a escolha do nosso próprio treinador. Isso tudo sempre foi atribuição de quem comandava, por isso causou estranheza em grande parte da imprensa, e também nos outros clubes. A respeito da concentração, por exemplo, votamos facultativo. Aquele que achasse interessante concentraria ou não. Votamos a escolha do nosso próprio treinador, e sempre venceu a maioria.18

     Os sucessivos fracassos nas copas da Espanha (1982), México (1986) e Itália (1990), quando o selecionado brasileiro nunca passou da quinta colocação, coincidiu com um novo ciclo de modernização acelerada da economia e da sociedade, de modo geral caracterizada por uma política do tipo neoliberal.

     A globalização - com todos os seus componentes, tais como a derrocada do socialismo, a imposição de uma reestruturação produtiva, o questionamento de projetos nacionais etc - não só colocou em xeque algumas utopias - da revolução socialista ao nacional-desenvolvimento -, como expôs a fragilidade das instituições brasileiras, em grande parte fundada numa tradição elitista e autoritária.

     A modernização "a qualquer custo" dos clubes e do próprio selecionado nacional, que com a intervenção dos interesses comerciais das redes de televisão e das empresas investidoras passaram a se submeter aos interesses do mercado, é ainda um capítulo a ser melhor investigado.


Conclusão
     O que se observa, nessa trajetória do século XX, é o papel fundamental que o futebol teve na construção da identidade nacional brasileira, na medida em que foi se transformando numa "paixão nacional", compondo de maneira significativa o mosaico da cultura política nacional. Assim como o carnaval e o samba, o futebol é um dos patrimônios culturais brasileiros.

     O estudo desses movimentos culturais, revela como a política de construção e legitimação de uma identidade nacional dialoga com eles. Percebe-se uma relação tensa, na medida em que há manifestações explícitas de manipulação política do futebol, procurando usar a sua força emocional como forma de dar legitimidade a determinadas ações políticas. Ao mesmo tempo, o futebol guarda a sua autonomia, pois a sua força emocional e ideológica depende muito mais dos dribles individuais do que da vontade política.

     O futebol tem um grau de autonomia que passa necessariamente pela genialidade individual do jogador, assim como aconteceu com Leônidas, Pelé e Garrincha, e acontece ainda hoje com Romário ou Ronaldinho. É essa "incerteza" da ação individual que destrói qualquer possibilidade de determinação e manipulação absoluta da estrutura política.

     Do mesmo modo, é facilmente verificável como as figuras frágeis desses indivíduos são fundamentais na construção da identidade nacional. Os seus desempenhos nos campos determinam em alguns momentos mágicos - como nos campeonatos mundiais - a essência nacional. A nação fica dependente da genialidade desses indivíduos, na sua grande maioria pessoas de origem humilde - negros, índios ou brancos -, quase todos pobres e semianalfabetos, vindos de bairros proletários, de favelas ou de áreas agrícolas.

     O diálogo desses indivíduos com os diversos processos de modernização forçada que o Brasil viveu nesse "breve século XX", evidencia tanto a força quanto a fragilidade da nação Brasil. A frase de Romário, pronunciada antes da conquista da Copa de 1994, nos EUA, expressa com um certo super-realismo essa nossa idéia:

     Acho que depois de tanta coisa ruim e triste que aconteceu este ano (...), o Brasil merece a Copa. Eu posso colocar a Copa do Mundo para o brasileiro como se fosse um prato de comida. Se a gente ganhar esta Copa, estará dando um prato de comida para esse povo que está com fome.19


Notas

  1. Sobre o conceito de "cultura política", ver em BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre ; SIRINELLI, Jean-François. Por uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.

  2. Idem, p. 355

  3. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, p. 56.

  4. OLIVEIRA, Lucia Lippi. O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

  5. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.213.

  6. FREYRE, Gilberto. Sociologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 432.

  7. Idem, p. 421/2.

  8. MANHÃES, Eduardo Dias. Política de esportes no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 31.

  9. Idem, p 34

  10. Idem.

  11. ELIAS, Norbert. O processo civilizacional. 2ª vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.

  12. Nesse campeonato, realizado e conquistado pela Inglaterra, o Brasil teve seu segundo pior resultado, ficando na 11a colocação.

  13. GIL, Gilson. O drama do "futebol-arte": o debate sobre a seleção nos anos 70. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, n. 25, ano 9, junho de 1994, p. 106.

  14. Idem.

  15. Idem, p. 107.

  16. Ordinário, chute!. Repórter, maio de 1978, p. 99.

  17. FLORENZANO, J. P. Corinthians: do time do povo ao futebol empresa. In: COSTA, Márcia R. da et al (orgs.) Futebol: Espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999, p. 98.

  18. WLADIMIR. Democracia Corinthiana. In: COSTA, Márcia R. da et al (orgs.) Futebol: Espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999, p. 9

  19. GUEDES, Simoni L. O salvador da pátria. Considerações em torno da imagem do jogador Romário na Copa do Mundo de 1994. In: O Brasil no campo de futebol. Niterói: EDUFF, 1998, p. 61.


Bibliografia

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  • GIL, Gilson. O drama do "futebol-arte": o debate sobre a seleção nos anos 70. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, n. 25, ano 9, junho de 1994, p. 100-109.

  • GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol. Dimensões históricas e sociológicas do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

  • GUEDES, Simoni L. O Brasil no campo de futebol. Estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: EDUFF, 1998.

  • MANHÃES, Eduardo Dias. Política de esportes no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

  • OLIVEIRA, Lucia Lippi. O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

  • RIOUX, Jean-Pierre ; SIRINELLI, Jean-François. Por uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.

  • VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.


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revista digital · Año 8 · N° 56 | Buenos Aires, Enero 2003  
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