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A lógica da rua - um resgate filosófico da Capoeira

Associação de Capoeira Angonal
(Brasil)

Celinalda Mesquita Santana
celisantana@ig.com.br

     Resumo
    Este texto é fruto das nossas reflexões acerca das possíveis contribuições da cultura popular e dos responsáveis por esta produção cultural - no nosso caso específico, mestres, instrutores, monitores e alunos - para a construção de uma sociedade brasileira mais equânime. A denúncia é, no nosso entender, o primeiro passo para reconhecer as mudanças de referenciais políticos e filosóficos que vêm ocorrendo no universo da capoeira. Referendados na interpretação da atuação política e social das maltas de capoeiras no Rio de Janeiro do século XIX, apontamos para a necessidade de instauração de uma nova racionalidade para pensarmos sobre as questões que nos angustiam enquanto educadores e “capoeiras” baseados no que convencionamos chamar como: “a lógica da rua”. Desta forma, pretendemos fomentar a ação coletiva movida pelo diálogo com vistas a clarificar o nosso papel social.
     Unitermos: História da capoeira. Maltas. Aspectos políticos e filosóficos. Mudança social.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 6 - N° 29 - Enero de 2001

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     A cultura popular brasileira nos seduz com os seus ritmos, gestos e cores. Ao completar 500 anos de seu “desnudamento histórico” para o mundo, o Brasil revê e renova a ampla gama de manifestações culturais que imprimem uma marca singular ao nosso povo. Criatividade e sofrimentos velados, belezas naturais e contrastes sociais compõem o “arco-íris” da cultura popular brasileira.

     A Capoeira se destaca neste universo cultural a partir das múltiplas possibilidades de vivências circunscritas no seu “corpo de saberes”, oferecendo variadas formas de sentir um espetáculo ímpar que se apresenta através daqueles que experimentam ou presenciam uma Roda de Capoeira.

     Música, canto e expressão corporal se unem para revelar toda a historicidade “camuflada” no gingar do capoeira. Este verbo se fez no início para superação de uma realidade social insuportável caracterizada pela escravidão do negro no Brasil Colonial. O sistema escravista e senhorial ditou os contornos da atual sociedade brasileira: desigual, excludente e injusta.

     Mais tarde, durante a Época Imperial, a ginga buscou a transposição da “liberdade concedida” para a “liberdade conquistada” através de “acordos” políticos baseados na navalha. A ‘sardinha’, como costumavam chamá-la nossos antepassados, foi instrumento emblemático da luta do negro na conquista do seu espaço social neste período histórico.

     Veio a República caracterizando a capoeira como um crime social, relegando àqueles que a praticavam o papel de marginal. Fomos para a clandestinidade. Saímos de cena, entretanto como uma lei ou um poder institucional pode aniquilar uma prática social que se constituiu na luta em prol da libertação de um povo?

     Foi por isso que o Estado Novo teve de submeter a lei à pressão social e (re)considerar a capoeira como uma forma de expressão popular. Como, porém, o poder fascista não poderia conceituá-la como linguagem do povo que se manifesta através do corpo, relegou-a à égide de um esporte, uma prática disciplinadora.

     E hoje? Por que gingamos? Por esporte? Por lazer? Por terapia? Por educação? Gingamos por todos esses motivos e muitos outros teremos, se formos buscar os depoimentos daqueles que praticam e perpetuam esta arte, mandinga e malícia, ou, na linguagem do capoeira, vadiação: “Iêêê... vamo vadiá, camará”?

     Política, história e cultura como diferentes prismas de um mesmo mosaico, tinham nas ruas do Rio de Janeiro a sua “galeria de exposição” mais elegante. No limiar do século XIX, pernas, navalhas e “leva-leva”, sinônimo de brados e correrias em perseguição ou fuga do inimigo, compunham uma obra prima meticulosamente entalhada nas entranhas da história do povo brasileiro. Em tempos atuais, estas expressões populares vêm recebendo outras formas de tratamento, contextualizando a “esportivização” da capoeira e a submissão à indústria cultural. As pernas possuem uma nova estética: atlética, a “sardinha” se isolou para apresentações especiais em foros restritos e o “leva-leva” pode ser contemplado se analisarmos o número cada vez maior de academias e profissionais que surgem a cada segundo no Brasil e fora do país, ou “barra afora, camará”!

     Neste sentido, precisamos entender de onde viemos, para esclarecer quem somos e, só então, justificar uma perspectiva de futuro. Coerência, esta é a palavra-chave; C-O-E-R-Ê-N-C-I-A! Temos, então, a capoeira percebida como resultado da relação dialética entre teoria e prática. Nessas palavras, na prática a teoria é um movimento dialógico. Assim, abaixo a ditadura das cordas, cordéis, academias, carteirinhas e conselhos! “Vamo dialogá, camará!”

     Sexo virtual, roda virtual? Em um mundo “antenado” com a tecnologia, a criatividade humana demonstra ser ilimitada. E o encontro? Numa ousadia que só um devaneio literário permite, disparamos: “Que me perdoem os ‘internautas’, mas o encontro é fundamental, idéias podem surgir, das idéias...ideais...e daí? A ação transformadora quando vislumbramos a possibilidade de inversão ideológica de uma sociedade classista como a brasileira é absolutamante viável, ainda mais se delinearmos a realidade pela ótica da cultura popular. Essa busca pode subverter a hegemonia capitalista, possibilitando um novo caminhar histórico não referendado nos valores excludentes que percorrem, do “Oiapoque ao Chuí”, o país em que vivemos.

     “Iê, camará! Vamos à luta! Melhor, vamos à ginga!” No locus privilegiado da Arte da capoeiragem: a rua! Como no século XIX? Não mais. O espaço ideológico da rua, plural e político, deve ser instaurado de forma permanente no coração do capoeira. Com regras e interesses, por que não? Mas, buscando, antes de tudo, o prazer, a conquista, a transcendência em suas diferentes perspectivas: pessoal e social - poesia!!! Resumindo: o encontro. Este é o nosso espaço a ser reconquistado! Não mais em disputas de poder respaldadas pela violência, mas no entendimento das relações de poder onde o público, o coletivo vem perdendo espaço e referências para o privado.

     Desta forma, remetemos novamente ao século XIX, quando afirmamos que é preciso vivificar em nossos corações a “solidariedade das maltas” de capoeiras onde o bem comum dos seus integrantes explicava a união dos diferentes; livres ou libertos, negros ou brancos, brasileiros ou imigrantes e explicitava a condição de “socialmente iguais” - escravos urbanos. Ressaltamos aqui a nossa discordância quanto à pertinência dos “métodos” utilizados por aqueles grupos de capoeiras para a atualidade apesar das similitudes que possamos especular em relação às dificuldades de sobrevivência e adaptação ao reordenamento do mundo do trabalho ocorridos naquele e neste momento histórico que vivenciamos. Contudo, sem negar os conflitos que existiam no interior da população escrava, destacamos a atuação política das maltas e a capacidade de lidar com a diversidade cultural como possíveis parâmetros de engajamento social dos profissionais e artífices desta prática popular.

     Para adiar a discussão temporariamente, acreditamos no gingar pelo direito de gingar. Gingar pela emancipação do homem enquanto cidadão que pode e deve acessar o acervo cultural da sociedade a qual pertence. Sem retaliações pela cor da pele, classe social, idade, sexo ou seja lá qual for a justificativa procedente para qualquer espécie de discriminação. Gingar pelo direito de ser corpo. Corpo que simboliza e desvela a perspicácia do Criador, seja ele Oxalá ou Deus, em nos construir como Diversidade e Unidade. Sagrado e Profano que caminham, distintamente juntos na Totalidade. Ou ainda se preferirmos, sinalizar alguma erudição: tese, antítese e síntese: dialética novamente. Desse modo, o paradoxo é fascinante!!!

     Como diria o velho mestre, em plena vadiação: “ancestralidade, espiritualidade, transcendentalidade!”

     Gingar, gingar, gingar, camará!


Fotos: Projeto "Mãos de Luz" Lumiar/RJ e Alunos da Rede Municipal de Ensino/RJ

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de Celinalda Mesquita Santana

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revista digital · Año 6 · N° 29 | Buenos Aires, enero de 2001  
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