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Cultura popular e planejamento participativo:
uma possibilidade de análise
através dos eventos de Capoeira

Este texto é parte do trabalho monográfico da UERJ,
no Curso de Especialização em Administração
e Planejamento da Educação.

Celinalda Mesquita Santana
celisantana@ig.com.br
Associação de Capoeira Angonal
(Brasil)

    Resumo
     A capoeira representa um rico espaço para estudo e atuação profissional do professor de educação física comprometido com a educação popular. Historicamente, a capoeira vem se modificando e assumindo características estritamente desportivas. Acredita-se que a cultura é o referencial que deve orientar a prossecução de eventos de capoeira que buscam contribuir para a preservação da sua história, rituais e tradições. Este estudo tem por objetivo fomentar a discussão acerca da possibilidade de construção de um perfil de eventos à luz dos pressupostos do Planejamento Participativo entre profissionais que atuam com capoeira. Busca-se, assim, conjugar as diferentes perspectivas de apropriação dos elementos presentes na capoeira para viabilizar uma intervenção pedagógica que vislumbre na singularidade desta prática educativa popular, a maior justificativa para o desenvolvimento do trabalho .
    Unitermos: Educação física. Planejamento participativo. Cultura popular e capoeira.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 28 - Diciembre de 2000

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Introdução

    A cultura entendida como o referencial que possibilita ao homem tornar-se humano, na medida em que o torna um ser social, fruto das interações entre os símbolos existentes em seu meio e os significados a eles imprimidos por cada indivíduo ou sociedade, é o parâmetro norteador necessário à efetivação de uma prática pedagógica comprometida com a reflexão. Esta reflexão traduz o entendimento da sociedade enquanto movimento. A tensão entre os diversos saberes sociais vai situar cada grupo social em uma expectativa de intervenção social própria desvelada por meio da convivência. As manifestações culturais aí produzidas extrapolam para além da perspectiva de comportamentos entendidos à luz da noção da presença de uma "natureza humana" global e consensual. E, ainda, superam a concepção de um "relativismo" que atomiza as produções culturais humanas como fruto da pluralidade das diversas sociedades, ignorando que estão circunscritas a uma idéia de homem e de mundo. Segundo Geertz (1989,p.61), a cultura é muito mais que

"simples expressões, instrumentalidade ou correlatos de nossa existência biológica, psicológica e social: eles são seus pré - requisitos. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas de forma semelhante e muito mais significativamente, sem cultura não haveria homens."

    Para que avancemos em nosso entendimento sobre a cultura e os diversos papéis desempenhados e atribuídos ao indivíduo em nossa sociedade, é necessário que tenhamos clareza sobre os diferentes discursos existentes acerca da cultura popular. Se considerarmos que existem saberes legítimos e ilegítimos em nossa sociedade, pouco caminharemos no sentido de construir uma prática pedagógica que tenha na cultura popular um espaço vívido de relações e experiências humanas. Acreditamos que ao "universalismo descontextualizado" proposto pela pedagogia tradicional, uma prática pedagógica reflexiva, que busque contribuir para a autonomia do indivíduo deve se posicionar

"como suporte do desenvolvimento singular da pessoa ou como preparação para a vida social (e não mais como iniciação a uma ordem humana ideal, ilustrada por um repertório de referências canônicas), a educação dirigi-se doravante a indivíduos particularizados, situados no espaço e no tempo, e cujas capacidades, bem como disposições e expectativas, refletem as características "objetivas" do mundo social e do mundo mental no qual são levados a viver" (Forquin, 1993, p.124).

    É importante enfatizar que, quando nos referimos a cultura popular não estamos pressupondo que existem blocos estanques de culturas que coexistem aleatoriamente no contexto social, sem intercomunicação. Tampouco acreditamos que realiza-se a produção intencional de culturas diferenciadas que, independentemente dos embates culturais existentes no rico tecido social, teimam em se isolar, porém diferenciamos a cultura popular, produzida no seio da diversidade e riqueza cultural existente no nosso país, da cultura de massas que impregna a sociedade hodierna e caracteriza

"a sociedade capitalista, marcada pela distribuição desigual dos bens culturais e pela racionalização da cultura à lógica da industria capitalista, (que) acaba por excluir a maioria da população, tanto do acesso ao saber elaborado, à ciência e à técnica, quanto pela diluição/destruição das formas espontâneas de cultura. Resta para as classes populares as sobras da cultura, os "lixos culturais" popularescos, a cultura de massas, veiculadas pelos meios de comunicação, disfarçada de democrática, trazendo a marca do patrocinador" (Chauí, 1995, p.56).

    Por suposto, as atividades culturais educam e reeducam o indivíduo, humanizando-o, na medida em que existe a possibilidade de confrontar, criticamente, a sua experiência singular no espaço social com a experiência coletiva. Assim, dadas as características específicas de cada sociedade, teremos significados diferenciados atribuídos às suas formas de expressão corporal. Logo, a cultura brasileira, em sua especificidade e diversidade, atribui ao gesto um significado próprio do nosso povo. Através da compreensão da linguagem corporal do povo brasileiro, resultado de uma multiplicidade de fatores sócio-históricos intervenientes na configuração de nossas diversas manifestações corporais, acreditamos ser possível encaminharmos uma prática pedagógica comprometida com a reflexão e pautada no nosso contexto social.


Eventos de Capoeira: encontros e desencontros

    Toda a riqueza gestual e rítmica da nossa cultura pode ser traduzida, se observarmos durante alguns minutos uma roda de capoeira. Para nós, apenas este aspecto já justificaria a sua difusão no Brasil nos últimos anos e a sua importância pedagógica para o professor de educação física que esteja comprometido com as classes populares. Contudo, é fundamental o aprofundamento nas discussões sobre os processos de modificação ocorridos no interior da capoeira que culminaram na abordagem predominantemente esportiva da atualidade. Concordamos com Falcão (1996,p.32) quando aponta que as "mudanças estruturais nos códigos e linguagens da capoeira" devem ser cuidadosamente estudados, pois "enquanto manifestação da cultura popular, não deve ser vista sob a ótica dos enfoques tradicionais que a reduzem a um simples subproduto, negando a dinâmica inerente às manifestações culturais".

    A capoeira enquanto esporte, folclore, arte e luta genuinamente brasileira é uma das fontes inesgotáveis de vivências educativas existentes na nossa cultura popular desde que considerada como uma prática pedagógica que deve ser encaminhada de modos a contemplar "... a riqueza do movimento e de ritmos que a sustentam, e a necessidade de não separá-la de sua história, transformando-a simplesmente em mais uma "modalidade esportiva" (Coletivo de Autores, 1994,p.76). Neste sentido, vislumbramos que o nosso engajamento nesta discussão deve visar contribuir para potencializar as possibilidades de intervenção significativa dos grupos que desenvolvem trabalhos com a capoeira, agindo como "profissionais mediadores". Esperamos fomentar o surgimento de uma "cumplicidade pedagógica", onde saberes diferenciados e não antagônicos, estabeleçam relações de complementaridade,

"relações de trocas de significados de parte a parte, com um teor político manifesto: desenvolvem situações pedagógicas de transferência mútua de saber, significados, valores, instrumentos de reflexão e de capacitação; estabelecem como seus objetivos a participação no processo de conscientização, politização e mobilização política de grupos e movimentos populares." (Brandão, l985, p.17).

    A mediação dos embates existentes nos encontros dos profissionais que atuam com a capoeira se dará através do confronto de idéias acerca das diferentes possibilidades de abordar pedagogicamente sua "multidiscursividade". Não se constitui como escopo deste trabalho a discussão sobre a legitimidade de um ou outro "estilo" de jogo, confrontando as características que seriam inerentes à Capoeira de Angola e/ou Capoeira Regional, pois acreditamos que a atualidade da capoeira, com um intenso desenvolvimento de novas técnicas de jogo e treinamento e uma forte interação das academias de capoeira (...) não nos permite tratar o universo atual desta comunidade como cindido em Regional e Angola ( Vieira, 1996,p.88). Este fato, reitera a importância de além de lutar capoeira, "vadiar capoeira", "brincar capoeira" e/ou "jogar capoeira" (o que nos remete à ludicidade que acreditamos ser resgatada nas rodas), estudarmos a capoeira sem tentar aprisioná-la numa abordagem linear, "ahistórica".

    Nos últimos anos, em decorrência da participação em diversos eventos esportivos de capoeira, percebemos algumas contradições e conflitos relativos à realização destes encontros, que, no nosso entender, deveriam se constituir em espaços legítimos para a apreensão de conhecimentos relativos à nossa "arte brasileira". Isto não ocorrendo, instala-se a insatisfação com estes eventos que habitualmente não conseguem transitar da realidade existente para a realidade desejada através do encaminhamento de suas ações. Julgamos que a relevância de ampliar o nosso entendimento sobre esses Eventos; seus significados, sua efetivação e suas perspectivas, reside na possibilidade de contribuir para a perpetuação da história, rituais e tradições da Capoeira e um melhor entendimento das modificações sofridas em sua prática.

    Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1993), a palavra "Evento" significa eventualidade, acontecimento, sucesso. De acordo com o exposto podemos inferir que, quando nos referimos à realização de um evento desenvolvido por um grupo de capoeira, ou um de seus núcleos, participaremos de um momento bastante representativo para os seus integrantes e, ainda, que a expectativa de sucesso em tal momento é comum a todos àqueles que do grupo participam. Porém, a concretização do evento está sob a responsabilidade direta dos integrantes e, mais especificamente, do Graduado e/ou Mestre que responde pela coordenação de cada núcleo. A avaliação contínua das práticas esportivas, pedagógicas e culturais desenvolvidas pelo grupo torna-se indispensável para que obtenhamos sucesso na prossecução dos eventos que, apesar de acontecerem isoladamente, em cada núcleo, traduzem, ou deveriam traduzir, uma concepção coletiva de atuação. A importância de avaliarmos essa questão está no fato de que podemos, através da atribuição de juízo de valor às nossas futuras ações, retomarmos, com um salto de qualidade, ao rumo da nossa caminhada. Visando colaborar neste caminho, dentro das nossas limitações no entendimento deste amplo e complexo universo sócio-político-cultural da Capoeira, é que apontamos a seguir, algumas questões que julgamos relevantes para aqueles professores e Mestres cuja preocupação central no seu trabalho é a preservação desta manifestação cultural nacional.


Uma proposta de reflexão: planejamento participativo de eventos de Capoeira

    As abordagens tradicionais do planejamento apontam para uma atuação que contribui para perpetuar a desigualdade social, pois atribui um caráter exclusivamente técnico ao ato de planejar desconsiderando a lógica do grupo em questão. Revestido de um discurso alienante que considera a técnica como garantidora do sucesso de planos e projetos, o planejamento educacional não tem conseguido atingir a sua real expectativa, qual seja: a mudança qualitativa dos processos educativos realizados por um determinado grupo no intuito de modificar uma realidade que lhe é insatisfatória.

    Nos últimos anos, as tentativas de enfocar de forma metodologicamente diferenciada o planejamento, seja numa abordagem puramente pedagógica, economicista ou multidisciplinar, seja no descentralizar e regionalizar a administração, deixou claro o "descompasso" existente entre as propostas de planejamento e a realidade educacional brasileira (Sobrinho, 1994).

    O Planejamento Participativo tem se apresentado como uma das alternativas mais viáveis de condução de uma proposta de atuação coletiva voltada para a democracia e eqüanimidade social de diferentes grupos de trabalho. A definição da Missão de cada grupo que passa a acreditar na importância do seu trabalho; o padrão de Qualidade desejado em seu trabalho e a distribuição diferenciada de Poder, são os sustentáculos desta proposta de planejamento. Definidos estes critérios, é possível definir as ações que o grupo tomará no sentido de não destoar destes pressupostos e os processos de avaliação que irão confirmar em que medida os objetivos pré-estabelecidos estão sendo atingidos (Gandin, 1994).

    Considerando que um grupo de capoeira apresenta o seu trabalho principalmente através de diferentes tipos de eventos que irão confirmar a sua proposta de atuação no infindável universo corporal, rítmico e histórico da arte da capoeiragem, apontamos abaixo algumas proposições oriundas do planejamento participativo, que acreditamos, irá contribuir para elucidar algumas questões que encontramos traduzidas de maneira difusa nas ponderações dos participantes da maioria dos eventos esportivos promovidos nesta área.

    Primeiramente, gostaríamos de expor alguns aspectos importantes para analisarmos os diferentes significados que podem ser atribuídos a um Evento dentro de um grupo. Considerando a diversidade existente em cada núcleo e, muito mais ainda no grupo como um todo, é fundamental que levemos em consideração as múltiplas representações que podem adquirir a realização de um evento. Conhecer estas representações é, portanto , condição básica para que os eventos contemplem, minimamente, as expectativas dos diferentes membros do grupo. Por conseguinte, é igualmente primordial conciliarmos a Missão sobre a qual o grupo está fundamentado e as diversas propostas de trabalho realizado pelos núcleos pertencentes ao grupo, incluindo-se aí, portanto, os eventos. Considerando como exemplo o Batizado e/ou Entrega de Cordas tido(s) como o(s) momento(s) de maior relevância do trabalho de um núcleo pertencente à um grupo de capoeira, que deverá apresentar publicamente toda a produção acumulada em um determinado período, questionamos: Face à Missão que foi estabelecida para o grupo, qual é o entendimento que se tem de "Evento "?

    Em segundo lugar, acreditamos que a efetivação de cada evento se dará de maneira diferenciada, pois guardam entre si incompatibilidades que devem ser respeitadas. Por exemplo, uma Roda Promocional não possui os mesmos objetivos a serem alcançados que um Batizado e/ou Entrega de Cordas. Por seu turno, uma Apresentação objetivará outros fins em relação aos diferentes tipos de atividades realizadas por um grupo de capoeira. Propomos que o grupo deverá definir os objetivos, as características específicas e o nível de qualidade desejado em cada uma dessas atividades. Para tanto, vislumbramos que as ações encetadas para a construção destas atividades não deverão ser fruto do improviso ou da arbitrariedade de alguns membros do núcleo em questão ou do próprio professor e/ou Mestre responsável pelo grupo. Acreditamos ser necessário termos como pilares de sustentação da Qualidade do nosso trabalho quatro pressupostos:

  1. eficiência - definição dos caminhos éticos e pedagógicos que o grupo seguirá rumo à satisfação das expectativas dos seus integrantes;

  2. eficácia - competência apresentada pelo grupo para atingir os fins e objetivos a que se propõe;

  3. efetividade - comprometimento do grupo com a comunidade na qual está inserido através da explicitação do papel social que se propõe a cumprir;

  4. relevância - esclarecimento da perspectiva cultural e do caráter humanizador presentes no desempenho das atividades promovidas pelo grupo (Sander, 1995).


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