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Dominar a Natureza, Educar o Corpo: Notas Conceituais a partir do tema |
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MEN/CED/UFSC - Universität Hannover/CAPES2
(Brasil) |
Alexandre Fernandez Vaz
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http://www.efdeportes.com/
Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 27 - Noviembre de 2000
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I. Mímesis no prototípico caminho do mito ao esclarecimentoA Dialética do Esclarecimento 3 não é, como se sabe, uma análise histórica no sentido estrito, com dados empíricos e fontes documentais que se preocupem em oferecer "comprovação" àquilo que é apresentado. O caminho é outro, já que Horkheimer e Adorno procuram através de exemplos pontuais, e até certo ponto heterodoxos, entender e criticar o projeto imemorial de domínio da natureza, de modo que se possa sustentar a tese desde o princípio enunciada: que no caminho de dominação da natureza e produção da subjetividade (portanto, da construção da história), a passagem do estágio do mito para o do esclarecimento é produtora da regressão a um novo estágio mitológico, cujo conteúdo será a dominação e a barbárie. Em outras palavras, trata-se de entender o processo civilizatório a partir de seu conteúdo interno.
Mito e esclarecimento se entrelaçam, retendo em suas respectivas estruturas, como se tenta demonstrar, elementos um do outro. Mais que isso, influenciam-se mutuamente, desdobrando-se um sobre outro de forma que, embora pareçam esferas distintas e excludentes, compor-se-ão como lados do mesmo poliedro. O mito, como tentativa de explicar a realidade e de alguma forma nela interferir, é esclarecimento, uma vez que já tem em si o momento de previsão e cálculo. Da mesma forma, ao desencantar o mundo, o esclarecimento cai novamente no estágio mitológico. A razão e a ciência substituem o mito, mas reafirmam seu procedimento sacrificial em favor da autoconservação do sujeito, que introverte o sacrifício originalmente presente em todo ato mágico.
Dessa narrativa meta-histórica - composta por três capítulos, dois excursos e um conjunto de notas e esboços - faz parte o tema da mímesis, expressão da capacidade filo e ontogenética não só de produzir semelhanças, mas também de reconhecê-las.
Tratada de forma peculiar por Horkheimer e Adorno, a mímesis é paradoxalmente expressão do horror representado pela indiferenciação mitológica, mas também esperança de superação da cisão sujeito/objeto. Cientes dessa tensão, Horkheimer e Adorno vão dialogar com diferentes registros, desde a psicanálise até a estética, passando pela antropologia, teologia judáica e educação.
Segundo nossos Autores, a capacidade mimética estaria, em um primeiro estágio, intimamente relacionada a uma autoconservação pulsional. Assemelhando-se a natureza circundante, vista como perigosa e ofensiva, o ser humano pré-subjetivo paralisa seus movimentos, dissolvendo-se no que não tem movimento, no espaço sem tempo e sem história. Com essa adaptação corporal, orgânica - que partilhamos com outros animais, e que a biologia chama de freezing -, o sujeito confunde-se com o que está morto 4. Assemelhar-se e ao meio é a maneira que o humano desprovido de subjetividade - ou com ela danificada - encontra para livrar-se da diferença que traz medo. Horkheimer Adorno referem-se a uma "[...] tendência profundamente arraigada no ser vivo e cuja superação é um sinal de evolução: a tendência de perder-se em invés de impor-se ativamente no meio ambiente, a propensão a se largar, a regredir à natureza. Freud denominou-a pulsão de morte, Caillois, le mimétisme. 5"
Se esse "congelamento" apresenta já um passo em direção à consciência, então está dado o primeiro passo para o domínio da natureza, para a construção da subjetividade e do senhorio 6. Essa assimilação ao que está morto tem algo de ratio, de astúcia e logro.
Lembre-se, no entanto, que a natureza exterior não tem transcendência, o que torna a assimilação ao mesmo tempo alienação, estranhamento. “Quando o humano quer se tornar como a natureza, ele se enrijece contra ela. A proteção pelo susto é uma forma de mimetismo. Essas reações de contração no homem são esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de sua sobrevivência assimilando-se ao que é morto.”7
Também nas várias configurações da magia a mímesis exerce seu papel, e não sem importância. Ao produzir semelhanças, muitas vezes tendo como suporte o corpo, o ato mágico procura apaziguar a ira das divindades, de alguma forma influenciá-las. Danças, máscaras e tatuagens, ou ainda a leitura das vísceras pelo oráculo, tudo indica uma uma “manipulação organizada da mimese” 8, que segue um princípio fundamental do mito, o da repetição.9
Ao mimetizar as forças exteriores no ato mágico, o ego em formação procura afugentar o medo do que lhe é outro, desta vez manejando-se simbolicamente em relação a natureza, já em parte antropormofizada. Entre a diferenciação e o assemelhamento, o ego dá mais um passo no sentido da formalização da razão.10 Coloca-se novamente a tese de que de alguma forma o mito já é esclarecimento, uma vez que nele já está presente o elemento de cálculo, o olhar conseqüente que procura um fim.
Assim como na civilização em geral, também na forja do sujeito individual a capacidade mimética cumpre importante papel. Em suas primeiras experiências educacionais, as crianças travam contato e apreendem os primeiros elementos culturais dos pais e outras figuras identitárias - gestos, modos de andar, sentir, falar ou julgar.11 As criaças não apenas imitam os outros, mas representam e reelaboram o mundo, desenvolvendo com isso, ao brincarem, uma forma de conhecimento não-conceitual.12
A educação será, apesar disso, pródiga em eliminar, em favor da racionalidade, a dimensão mimética. Seus vestígio devem ficar relegados às lembranças infantis. Seguindo a tradição platônica13, nada de intuições, imagens, representações e jogos, mas cálculo e pensamento matematizado, no qual o sujeito, por meio de seu pesamento, acaba por igualar-se ao mundo.14
Por conta disso, escreve Max Horkheimer,
Assim como os primitivos devem aprender que podem produzir melhores safras mais pelo tratamento do solo do que pela prática da magia, também a criança moderna deve aprender a dominar seus impulsos miméticos e dirigi-los para um objetivo definido. A adaptação consciente e o domínio posterior substituem as diversas formas de mimese. O progresso da ciência é manifestação teórica dessa mudança: a fórmula suplanta a imagem, a máquina de calcular as danças rituais. Adaptar-se significa fazer-se igual ao mudo de objetos tendo em vista a autopreservação. Esse deliberado (como oposto a reflexivo) fazer-se igual ao meio ambiente é um pricípio universal de civilização.15
O rompimento com o mito e o desencantamento do mundo - expressão weberiana, de duplo significado - exigem, portanto, não mais uma aproximação por assemelhamento com a natureza ou com as divindades. Ao cindir-se da natureza, o ego em formação torna-a objeto, para o qual a mediação par excellence é a razão subjetiva e instrumental, expressa pelo trabalho, pela técnica e pela ciência. “A técnica efetua a adaptação ao inanimado a serviço da autoconservação, não mais como magia, através da imitação corporal da natureza externa, mas através da automatização dos processos espirituais, isto é, através de sua transformação em processos cegos. Com seu triunfo, as manifestações humanas tornam-se ao mesmo tempo controláveis e compulsivas."16
Enrijecendo-se contra a natureza, afastando-se dela para poder dominá-la - cristalizando, portanto, a cisão sujeito e objeto, já antes prenunciada -, os seres humanos procuram construir sua autonomia frente ao mundo circundante. Prerrogativa para a formação do ego e característica inquestionável do processo civilizatório, o domínio da natureza - e, portanto, a renúncia ao mimetismo que aproxima do inanimado - é interpretado por Horkheimer Adorno em sua plena dialética.
Vale a pena, nesse sentido, verificar como o comportamento mimético encontra seu registro também no contexto das sociedades totalmente administradas.
II. Mimetismo como intercurso de manipulação políticaA renúncia da mímesis em favor do trabalho na relação com a natureza não significa seu completo desaparecimento. Ela permanece a espreita, funcionalizada em nome do progresso e em favor da dominação.
Ao debruçaram-se sobre o Nacional-Socialismo, entendido como uma chave para o entendimento da modernidade, não só em sua versão capitalista, mas em sua condição de sociedade totalitária, Horkheimer e Adorno reencontram o tema da mímesis, não mais em seu registro estético, mas degradada em mimetismo (mimesis qua mimikry) sob o signo da sociedade administrada.
Numa sociedade dominada pela formalização da razão, o eu, em lugar de reconciliar-se com a natureza, sucumbe a lógica da identidade, do sempre-igual,17 o que significa em última instância, a perda da individualidade, da unidade do ego (“Nicht-mehr-man-selbst-Sein”).18 Não há mais devir, e o indivíduo diluído no establishment permanece cindido, incapaz de plena alteridade.
O mimetismo permanece ameaçando a unidade do eu, como pulsão que leva os organismos vivos a desejarem reviver um estágio primevo de desenvolvimento, livres da pressão civilizatória.
Nesse contexto o impulso mimético é reorganizado politicamente. O Nacional-Socialismo produziu a novidade de um novo tipo de submissão: a adesão do indivíduo não mais pelo recalcamento das pulsões, mas pela sua liberação, tornando-os mecanismos de controle e dominação.
O controle e a determinação subjetiva dos indivíduos não mais se restringe a suprimir a rebeldia de uma natureza inconformada, mas trata de incorporá-la como forma de dominação. O recurso ao mimetismo, como manifestação regressiva de uma natureza desprovida de suas qualidades e do trabalho reflexivo, teria servido, em associação com a falsa projeção, para que se obedecesse aos propósitos daqueles que racionalizaram a barbárie. A massa que assiste aos comícios é a fonte de onde se produz a figura do inimigo coletivo, para o qual é imputada a condição de “anti-raça”, “natureza primitiva”, endereço para onde é canalizado todo o ódio à civilização.
O sentido das fórmulas fascistas, da disciplina ritual, dos uniformes e de todo o aparato pretensamente irracional é possibilitar o comportamento mimético. Os símbolos engenhosamente arquitetados, próprios a todo movimento contra-revolucionário, as caveiras e as máscaras, o bárbaro rufar dos tambores, a monótona repetição de palavras e gestos são outras imitações organizadas de práticas mágicas, a mimese da mimese.19
É certo que Horkheimer e Adorno referem-se aos grandes comícios nazistas, mas inclino-me a pensar se também não tinham em mente os Jogos Olímpicos de Berlin, celebrados em 1936, expressão maior do classicismo, da reustaração do mito germânico na constituição de uma Obra de Arte Total (Gesammtkunstwerk).
III. Dominar a Natureza, Enrijecer Ego, Vitimar o CorpoTema central para a Dialética do Esclarecimento, o domínio da natureza é tratado em vários momentos do livro. Em Interesse pelo Corpo, por exemplo, Horkheimer e Adorno identificam uma contra-história, paralela à oficial, que, subterrânea, emerge em momentos fronteiriços da humanidade. Essa história clandestina realiza-se no corpo, vítima de uma civilização que o dilacera, desfigura e recalca seus instintos e paixões, tomando-o como objeto de controle e manipulação.20
Dominar a natureza significa, portanto, antes de tudo dominar-se, ter nas mãos a própria natureza, como é exemplarmente demonstrado na análise que Horkheimer e Adorno empreendem da Odisséia, de Homero. O sujeito esclarecido é aquele que conseguiu sacrificar-se, ainda que isso lhe custe sua expressão mais viva.21
Essa relação com o corpo representa um momento fundamental da cisão entre sujeito e objeto. Ela aqui se afigura como separação entre uma dimensão não corporal (o espírito, Geist) que exerce seu senhorio, e o corpo, próprio e o de outros, visto como objeto a ser conhecido e dominado. De alguma forma, à isso correspondente o processo que cinde o trabalho em corporal e intelectual. “É só a cultura que conhece o corpo como coisa que se pode possuir; foi só nela que ele se distinguiu do espírito, quintessência do poder e do comando, como objeto, coisa morta, ‘corpus’.”22
Se a civilização destina ao corpo reificado sentimentos paradoxais, e o amor pelo corpo permanece modernamente enquanto promessa de realização, mediado pela aparência no contexto da Indústria Cultural, o ódio por ele evidencia-se com mais clareza. A idéia de logro, de perda, de mal-estar já desde logo colocada como decorrência necessária da civilização, não só faz malograr qualquer reconciliação com o próprio corpo, como faz também com que o governo da pulsão de morte continue ameaçador. Ele permanece, na melhor das hipóteses, a espreita. “Na relação do indivíduo com o corpo, o seu e o de outrem, a irracionalidade e a injustiça da dominação aparecem como crueldade [...]”23 Por isso permanece, na relação perturbada e patogênica com o corpo, os traços sádicos reprimidos que vivificam tendências ao descontrole e à violência corporal.24
Tudo aquilo que lembra o corpo orgânico, a unidade indivisível, deve ser recalcado, já que de alguma maneira representa a perda da condição de sujeito, a dissolução do ego que se forja, justamente, no distanciamento para com a natureza, no endurecimento frente a ela. O sujeito como tal só deve ser idêntico a si mesmo, da natureza tornada primeiro caótica, e logo depois classificável,25 deve diferenciar-se.26
Por isso só a astúcia de Ulisses - de sujeito esclarecido, que se adapta conscientemente à natureza para tornar-se mais forte e poder dominá-la27 - faz com que ele possa resistir a Circe, capaz de transformar os homens em animais domésticos, levando-os a um estágio biológico inferior, abandonados ao aparato instintual.28 Perdidos da história e degradados no esquecimento, assim como já acontecera com os comedores de lotos, os marinheiros, é bom que se destaque, nem sofrem, nem são infelizes. É contra essa condição que o ego se forja, é opondo-se a ela que Ulisses empreende toda a sua viagem. 29
Da mesma forma, só astuciosamente é possível resistir à embriaguez narcótica do Canto das Sereias, ao convite a atirar-se ao mar, diluindo-se como sujeito na assimilação ao orgânico e indivisível.30
Ao ser reificado - também pela ciência e várias de suas disciplinas como anatomia e fisiologia, além de suas diversas técnicas, como a vivissecção -, o corpo aproxima-se da morte, atingindo o mesmo estatuto do cadáver, ainda que se mantenha exercitado. A medicina oficia a reificação, imputando ao ser humano uma passividade que o reduz à ser apenas corpo.
Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursionistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como os amantes da natureza com a caça. Eles vêem o corpo como um mecanismo móvel, em suas articulações as diferentes peças desse mecanismo, e na carne o simples revestimento do esqueleto. Eles lidam com o corpo, manejam seus membros, como se estes já estivessem separados. A tradição judia conservou a aversão de medir as pessoas com um metro, porque é do morto que se tomam as medidas - para o caixão. É nisso que encontram prazer os manipuladores do corpo. Eles medem o outro, sem saber, com o olhar do fabricante de caixões, e se traem quando anunciam o resultado, dizendo, por exemplo, que a pessoa é comprida, pequena, gorda, pesada. 31
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