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Educação Física disciplinar e a disciplina Educação Física: um ensaio
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 27 - Noviembre de 2000 |
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Principalmente, "devem-se zelar para que na cultura do corpo também se eduque para a sociedade" (ibid., p. 61), fazendo com que a criança se torne um adulto que reconheça suas potencialidades e seus limites. Assim, é importante que não transpareça a ação de autoridade e superioridade do educador para que o indivíduo forme-se por si mesmo.
A parte positiva da educação física é a cultural. A formação da cultura física é dividida em cultura livre e cultura escolástica. A primeira refere-se ao que é lúdico, ao que dá prazer; enquanto que a segunda trata do respeito às regras, que não necessariamente devem ser impostas de maneira arbitrária, mas podem ser deliberadas pelo grupo, estimulando a participação ativa e o ato político na sociedade.
A educação pode ser impositiva no que tange às potências, ou seja, cultivar as inferiores para que se possa avançar às superiores (valer-se da espiritualidade para o entendimento; da imaginação para a inteligência, da memória para o discernimento, entre outras). A cultura física é um dos pressupostos da formação da cultura geral da índole, assim como a cultura moral. A física deve ser passiva em relação ao aluno e a moral deve ser ativa. No entanto, o que é apresentado é um conjunto de características que atuam simultaneamente e não de maneira fragmentada como parece; então, pode-se fazer com que o aluno se auto-limite sem necessariamente ter que lhe impor regras autoritariamente, "Contudo, devemos proceder de tal modo que busquem por si mesmas estes conhecimentos, em vez de inculcar-lhos" (KANT, op. cit., p.75).
Penso que as idéias iluministas, entre outras coisas, foram sendo disseminadas por ideologias políticas e incorporadas de forma acrítica pelos professores, influenciando a educação e, por extensão, a educação física na escola. Pois esta disciplina acadêmica, em sua maioria, ainda se utiliza de métodos autoritários que ratificam preconceitos, estereótipos e desigualdades sociais e, segundo Tânia Azevedo(1996), ratifica as diferenças sociais contribuindo para a manutenção das estruturas sócio-econômicas e políticas vigentes.
Para Wagner Wey Moreira (In: PICCOLO, 1993.) é importante "refletir sobre o conceito de Educação Física Escolar que tradicionalmente esteve, e ainda está, vinculado aos valores: ordem, disciplina e imutabilidade" (p.15). As formas, historicamente conhecidas pela educação física, de disciplinar o corpo, fogem da proposta de Imannuel Kant (op. cit.) para uma contribuição na formação do homem crítico-participativo.
No Brasil, uma das tendências que reflete bem o mau uso da disciplina é a educação física Militarista. Paulo Ghiraldelli Jr. (1988) nos aponta algumas características dessa tendência. Influenciada pela educação física Higienista, tem como objetivo a formação de jovens capazes de suportar a guerra, tendo como pano de fundo a eliminação dos fracos e premiação dos mais fortes fisicamente, "no sentido da depuração da raça" (p.18). Assim a disciplina exacerbada, entre outras coisas, ajuda a compor sua estruturação inspirada no fascismo. A obediência cega e o adestramento serviria de exemplo para o restante da juventude.
Segundo Vitor M. de Oliveira (op. cit.), no século XX, houve uma reestruturação militar em virtude das missões militares francesas trazidas ao Brasil e a sua aplicação desdobrou-se no ambiente civil. A educação física não escapou do projeto autoritário da Era Vargas; as idéias nacionalistas reafirmavam a ordem burguesa e visavam inculcar nos infantes o amor ao dever militar.
Hoje, apesar do grande avanço teórico que a educação física alcançou, ainda podemos identificar na prática a utilização dessa tendência, "... em qualquer aula de educação física deste país, é possível encontrar resquícios dos princípios norteadores da prática ginástica e desportiva fascista" (GHIRALDELLI JR., op. cit., p. 27). A incorporação nas aulas de educação física de exercícios da ordem unida tornou o professor um disciplinador por excelência (OLIVEIRA, 1984).
É nesse contexto que se faz necessário o questionamento das práticas corporais no sentido de disciplinamento do indivíduo. Algumas posições mais radicais apontam que qualquer técnica corporal, com modelos predeterminados, levam à alienação (MEDINA, 1987).
Alguns autores (OLIVEIRA, op. cit.; LUVISOLO, 1997; FARIA JUNIOR, 1996) reconhecem a possibilidade da educação física 'escolar' estar inserida num contexto mais amplo da esfera social, todavia a interface teoria/prática ainda encontra-se distante da realidade das escolas, principalmente, das escolas públicas, com professores mal pagos e com condições precárias de trabalho.
Em palestra proferida por Alfredo Faria Jr.(op. cit.), ressalta-se que "processos opressores e discriminatórios na educação física têm sido constantemente experimentado em nossa sociedade" (p. 112). Nesse contexto a ênfase dada a disciplina como um mecanismo opressor pode ser um instrumento de manipulação das classes dominantes. Por esse motivo é necessário que os educadores se conscientizem e perceberam que,
"o entrelaçamento da atividade corporal, da ginástica e do esporte com a formação dos homens obriga o educador físico a refletir sobre a educação em sua prática profissional e com sua contribuição possível" ( LUVISOLO, op. cit., p. 3).
Em síntese, acredita-se que a disciplina seja importante para a educação na formação do indivíduo crítico-participativo. A auto-disciplina deve existir no sentido de permitir a conscientização corporal que favoreça o conhecimento dos limites e das potencialidades do próprio corpo. Penso que a educação física pode ser parte constitutiva da formação do homem e que as vivências corporais propiciam bases para a capacidade de criação do ser humano. Porém, não devemos nos reportar às vivências corporais do tipo militaristas, por exemplo, a que ela foi submetida por muitos anos e cujos frutos, ainda hoje, são colhidos. Mas se propõe uma melhor exploração das possibilidades oferecidas por essa disciplina acadêmica, com o comprometimento social, a reflexão, o questionamento e a intervenção necessária.
Notas
Imannuel Kant (op. cit.) refere-se ao projeto de conduta porque o homem necessita do outro até mesmo para a sua sobrevivência, ele diz que o homem "... não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de conduta. Entretanto, porque ele não tem a capacidade imediata de o realizar , mas vem em estado bruto , outros devem fazer por ele." (ibid., p.12)
Lílian do Valle (Mimeo) aborda detalhadamente esta questão.
O termo 'escolar' serve aqui para diferençar da educação física a que se refere Imannuel Kant (ibid.). Especificar a educação física de 'escolar' é adjetivá-la, fragmentá-la e, segundo Alfredo Faria Jr., "assim a educação física escolar não teria existência própria como campo de conhecimento, mas somente referenciada à totalidade da área de conhecimento denominada educação física. " (1996).
Imannuel Kant (op. cit.) era um iluminista e tinha fé na educação. Atualmente sabe-se que a educação é de fundamental importância, mas se questiona seu poder absoluto.
Kant (ibid.) se aprofunda melhor nesse assunto nas p. 66 - 67
Cornelius Castoriadis (1992, p. 227) se refere ao campo psíquico, mas como não comungo da dicotomia corpo/mente, por esse motivo o que ele aborda complementa essa reflexão.
Referência bibliográfica
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BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
CANIVEZ, P. Educar o cidadão? Filosofar no presente. SP. Papirus. 1990
CASTORIADIS, Cornelius. O estado do sujeito hoje. In: CASTORIADIS, Cornelius. Encruzilhadas do Labirinto III. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FARIA JR., A. G. de. O cotidiano do professor de educação física escolar: desafios para a relação teoria e prática. Anais do Encontro Fluminense de Educação física Escolar. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996.
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GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
LUVISOLO, H. Estética, esporte e educação. Rio de Janeiro: Sprint, 1997.
KANT, Imannuel. Sobre a pedagogia. Piracicaba: Unimep. 1992
MEDINA, João Paulo S. O brasileiro e seu corpo. Campinas: Papirus, 1987.
MOREIRA, Wagner W. Educação física escolar: a busca da relevância. In: PICCOLO, Vilma L. N.(ed) Educação física escolar: ser... ou não ter? Campinas: Unicamp, 1993.
OLIVEIRA, Vitor M. de. 3 ed. O que é educação física. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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PAULA. Maria de Fátima C. de. O poder disciplinar da escola sobre o corpo. O potencial da genealogia foucaultiana para a análise do cotidiano escolar. Universidade Federal Fluminense. (Mimeo)
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