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No campo das idéias: Gilberto Freyre e a
invenção da brasilidade futebolística

Mestrando em História Social - Universidade de São Paulo (USP)
Professor do Centro Universitário Nove de Julho (Uninove) - São Paulo,

Fábio Franzini
ffranzini@uol.com.br
(Brasil)

    A explosão de popularidade do football no Brasil nas décadas de 1910 e 1920 não deixou de suscitar polêmicas no meio intelectual do período. Enquanto os cronistas e literatos que admiravam esse esporte enxergavam-no como reflexo da sintonia do país com a modernidade européia e um caminho para a “regeneração” da raça e da sociedade brasileiras, seus críticos viam-no como um elemento de degeneração cultural e exclusão social. De fato, não havia como negar sua origem estrangeira, nem como esconder os subterfúgios pelos quais grandes clubes e entidades dirigentes oficiais tentavam impedir a participação de membros das camadas populares (notadamente negros e mulatos) em seus quadros e campeonatos. A própria popularização, porém, promovia mudanças nesse quadro a partir de dentro, cujas conseqüências tornam-se mais nítidas a partir dos anos 30. Neste mesmo momento desponta uma nova leitura acerca do futebol, que acabaria por se transformar em uma espécie de senso comum que prevalece até hoje - a leitura feita por Gilberto Freyre. O propósito deste trabalho é abordar e discutir tanto essa interpretação freyreana quanto as relações que ela guarda com o desenvolvimento do futebol brasileiro para tentar apreender as razões de sua força e permanência.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000
Trabajo presentado en el IIIº Encuentro Deporte y Ciencias Sociales y
1as Jornadas Interdisciplinarias sobre Deporte. UBA - 13 al 15 de Octubre 2000

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     Na década de 30, as transformações sócio-econômicas efetuadas pelo governo Vargas levaram o meio intelectual brasileiro a promover reflexões profundas acerca da crise da ordem oligárquica e da emergência do Brasil urbano-industrial. O país foi então “redescoberto” por um “conjunto de autores que representarão os pontos de partida para o estabelecimento de novos parâmetros no conhecimento do Brasil e de seu passado”: Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen (MOTA, 1977: 28). Voltando-se para o estudo da colonização, da sociedade patriarcal e da evolução das relações sociais, políticas e econômicas, suas obras refletem, cada qual à sua maneira, a preocupação de se entender o momento histórico crucial no qual se inseriam.

     Dentre tais obras, é Casa-Grande & Senzala que causa maior impacto à época. Ao retomar a temática racial sob a perspectiva teórica da antropologia cultural norte-americana (leia-se Franz Boas), Gilberto Freyre afirmava o papel positivo da mestiçagem na formação da nacionalidade brasileira, invertendo o valor que até então lhe era atribuído pelas teorias e análises sociais formuladas entre meados do século passado e o início deste por autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna. Dessa forma, sua reflexão “parecia lançar, finalmente, as bases de uma verdadeira identidade coletiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de laços, até então insuspeitos, entre os diferentes grupos que compunham a nação” (ARAÚJO, 1994: 30). Finalmente mesmo, a julgar pela descrição que Manuel Bandeira faz da receptividade encontrada pelo livro no Rio de Janeiro logo após seu lançamento, em dezembro de 1933:

     O sociólogo está na ordem do dia com a publicação da grande Casa Grande. [...] As informações dos livreiros é [sic] que o livro está tendo muita saída. [...] O Roquette [Pinto] também está no auge da admiração. Recebeu o livro há três dias e ontem à noite, na hora educativa da Rádio-Sociedade, encheu todo o tempo falando do livro, classificando-o de obra monumental. [...] Disse o Roquette que à parte qualquer outro valor da obra, só a bibliografia que você reuniu representa uma contribuição inestimável. Fez grandes elogios às suas opiniões sobre miscigenação. Não esqueceu a linguagem e leu trechos inteiros do livro (apud FONSECA, 1985: 13-4).

     Mas não foi apenas na Capital Federal que a obra fez sucesso: entre 1934 e 1938, os críticos literários da imprensa do centro-sul e do Nordeste se debruçam sobre ela com atenção. Nomes como Agrippino Grieco, Affonso Arinos de Melo Franco e Plínio Barreto, dentre outros, eventualmente não deixam de apontar certas restrições ao estilo, às idéias e/ou ao método do autor; houve também quem questionasse duramente toda a antropologia freyreana, como fez José Fernando Carneiro no Diário Carioca, em 1937. Não obstante, o tom predominante nas resenhas do período é o laudatório, a ponto de Lúcia Miguel Pereira definir, na Gazeta de Notícias ainda em 1934, Casa-Grande & Senzala como “o livro definitivo de Gilberto Freyre”, que “faz-nos viver a formação da nacionalidade; faz-nos sentir que temos raízes, e fundas, enriquece-nos de todo o nosso passado”1.

     A calorosa acolhida da nova e “verdadeira” identidade coletiva, mestiçamente definida, proposta por Gilberto Freyre explica-se pelo original traço integrador em sua reinterpretação da história do Brasil. Ao equilibrar os antagonismos sócio-raciais do passado sem anular a especificidade das diferenças2, o escritor pernambucano ia ao encontro da demanda social (e também política) do presente, colocando a velha e problemática questão nacional em novos - e atuais - termos: nossa singularidade enquanto povo vem da mestiçagem e isso é motivo de orgulho, não de vergonha. Assim, ainda que deixasse transparecer aqui e ali uma certa nostalgia das oligarquias, Casa-Grande & Senzala pôde ser interpretado “como uma afirmação corajosa de crença no Brasil, no mestiço e no negro, sobretudo se pensamos no prestígio de um escritor como Oliveira Vianna e no predomínio das doutrinas racistas que dariam base ideológica ao nazismo” (LEITE, 1983: 301).

     Difundindo-se por toda a sociedade, o elogio da mestiçagem vai ajudar, e muito, a legitimar algumas práticas populares que vinham ganhando força no cotidiano do país, transformando-as em expressões da cultura brasileira - dentre as quais o futebol. Atento ao processo de massificação do chamado esporte bretão e, principalmente, à integradora mistura de raças e classes sociais que ela promovia nos gramados, Gilberto Freyre não deixa de mencionar já em Sobrados e Mucambos (livro que, como o próprio Freyre diz em seu prefácio, é a continuação dos estudos apresentados em Casa-Grande & Senzala), publicado em 1936, “a ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro entre os atletas, os nadadores, os jogadores de foot-ball, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços” (FREYRE, 1936: 362). Vista no contexto do livro, esta tímida observação do autor, mais que constatar um fato que vinha ocorrendo há pelo menos duas décadas, sugere que tal ascensão do mulato no meio originalmente elitista e europeizado do nosso futebol implicava uma significativa mudança na forma de praticá-lo aqui nos trópicos: o seu abrasileiramento.

     Dois anos mais tarde, a Copa do Mundo disputada na França apresenta-se como a ocasião perfeita para que Gilberto Freyre explicitasse o que apenas havia insinuado então. A técnica refinada dos nossos jogadores encantava os europeus, e o Brasil todo se mobilizava em torno do rádio para ouvir a transmissão das partidas da seleção, narradas diretamente dos gramados de Strasburgo, Bordeaux e Marselha pelo speaker Gagliano Netto. Após vencer a Polônia, empatar e, numa segunda partida (disputada 48 horas depois), vencer a Tchecoslováquia, a seleção chegava às semifinais do campeonato mundial pela primeira vez, deixando o país eufórico. Pois foi em um artigo para o Diário de Pernambuco escrito após a vitória sobre os tchecos que o sociólogo-antropólogo anunciou o surgimento de um inconfundível estilo brasileiro de futebol:

     O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil (FREYRE, 1967: 432).

     É importante notar aqui que Freyre não era o único a destacar as peculiaridades da nossa forma de jogar e como ela destoava da européia - naquele momento, os próprios jornalistas internacionais que cobriam a Copa faziam o mesmo. Além disso, ele também não era o primeiro a atentar para o aparecimento de um novo estilo futebolístico: quando a seleção brasileira conquistou seu primeiro Campeonato Sul-Americano, em 1919, já houve quem detectasse a criação de um “sistema novo de jogar o association”, que, baseando-se no talento individual e na capacidade de improvisação dos seus praticantes, ia no sentido contrário ao padrão coletivo ditado pelos manuais ingleses (NETTO, 1919: 8). Porém, se a observação das diferenças entre o football e o futebol nada tinha de inédita, Gilberto Freyre é pioneiro em explicá-las (ou apresentá-las) em termos culturais, tomando-as como manifestações próprias daquela singularidade maior que distinguiria o povo brasileiro:

     [...] nosso futebol mulato, com seus floreios artísticos cuja eficiência - menos na defesa que no ataque - ficou demonstrada brilhantemente nos encontros deste ano com os poloneses e os tcheco-eslovacos, é uma expressão de nossa formação social, democrática como nenhuma e rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de geometrização, de estandardização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal.
    No futebol, como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de dança e de capoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca. Dança que permita o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica. Enquanto o futebol europeu é uma expressão apolínea de método científico e de esporte socialista em que a ação pessoal resulta mecanizada e subordinada à do todo - o brasileiro é uma forma de dança, em que a pessoa se destaca e brilha (FREYRE, 1967: 432).

     Baseando-se no trabalho da antropóloga norte-americana Ruth Benedict, Patterns of Culture, de 1935, Gilberto Freyre define a brasilidade futebolística a partir da contraposição entre um padrão de cultura “apolíneo” (formal, racional, ponderado), que seria próprio dos europeus, e outro “dionisíaco” (individualista, emocional, impulsivo), característico da nossa índole mulata. Segundo ele, “sente-se nesse contraste o choque do mulatismo, ou melanismo, brasileiro com o arianismo, ou albinismo, europeu. É claro que mulatismo e arianismo considerados não como expressões étnicas, mas como expressões psicossociais condicionadas por influências de tempo e de espaço sociais” (FREYRE, 1967: 432).

Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 5 · Nº 26   sigue Ü