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Imagens da educação no corpo. |
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Faculdade de Educação UNICAMP |
Carmen Lúcia Soares
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http://www.efdeportes.com/
Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000
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Dos sinais iniciaisOs corpos e sua gestualidade podem ser imaginados como expressão e lugar de inscrição da cultura, e as imagens de corpos, como registro de marcas e de lugares sociais ocupados. O estudo do corpo e de sua gestualidade pode construir uma narrativa integrando imagens que, como expressão de um olhar particular, revelam tanto o que se vê quanto o que não se vê, porque, como observa Vovelle, “os ‘silêncios’ da iconografia são tão significativos quanto a ênfase posta em certas particularidades ou em temas privilegiados”.1
Em épocas distintas e por diferentes aproximações e abordagens, o corpo, morto ou vivo (em movimento), foi sempre objeto de curiosidade, indagação e estudo. Particularmente o estudo do movimento como algo aparentemente técnico e visível, explicável pela ciência, serviu como ponto de apoio para a apropriação, pelo poder, de algo mais profundo: o gesto humano como comportamento total do ser.2
Algumas indagações podem ser formuladas a partir de uma idéia central que sugere ser o corpo e sua gestualidade a primeira forma visível de nossa apresentação ao mundo; vemos e somos inicialmente vistos como um corpo, um corpo em movimento porque vivo.
Qual é a dinâmica de construção dos modos de apresentar-se como corpo? Como diferentes corpos devem apresentar-se? Que técnicas são escolhidas/desenvolvidas para incidir sobre os corpos? Quais marcas devem ser inscritas e internalizadas? Qual é o grau de compreensão da profundidade de um gesto?
Se pensarmos do ponto de vista do poder, o gesto parece ter sido compreendido, desde muito cedo, como um comportamento total do indivíduo e, dessa forma, como objeto de controle. Pelo gesto, em sua exterioridade, são criados diferentes qualificativos para designar diferentes valores morais. A pintura por exemplo revela, até pelo seu silêncio, gestualidades modelares.
As imagens registradas pelos pintores em diferentes épocas são testemunhos da vida social, ou como sugere Baxandall, “as pinturas3 são, entre outras coisas, fósseis da vida econômica”. 4
As pinturas do século XV, por exemplo, em sua grande maioria, são pinturas religiosas que traduzem um conjunto de signos necessários para preencher fins institucionais precisos, dando suporte às atividades intelectuais e espirituais de uma dada sociedade. Para tal, era necessária a existência da “jurisdição de uma teoria eclesiástica consolidada com relação às imagens”.5
No Catholicon, escrito por Giovani de Gênova em fins do século XIII e muito utilizado no Quatrocentos, há um resumo peculiar sobre a função das pinturas religiosas para o imaginário social popular:
Sabeis que três razões têm presidido a instituição de imagens nas igrejas. Em primeiro lugar, para a instrução das pessoas simples, pois são instruídas por elas como pelos livros. Em segundo lugar, para que o mistério da encarnação e os exemplos dos santos pudessem melhor agir em nossa memória, estando expostos diariamente aos nossos olhos. Em terceiro lugar suscitar sentimentos de devoção, que são mais eficazmente despertados por meio de coisas vistas que de coisas ouvidas. 6
Seguindo as análises feitas por Baxandall, cabe ressaltar parte de um sermão publicado em 1492, escrito por Fra Michele da Carcano:
Pois uma coisa é adorar uma imagem, e bem outra é aprender, a partir de uma história narrada por imagens, aquilo que se deve adorar. O que um livro é para aqueles que sabem ler, uma imagem é para as pessoas ignorantes que a contemplam. Porque através da imagem mesmo os iletrados podem ver qual exemplo devem seguir; por meio de uma imagem, mesmo aqueles que não conhecem o alfabeto podem ler.7
A construção das imagens baseava-se em estudos detalhados de luz, cor e gestos. Havia a gestualidade profana e a gestualidade religiosa e embora não houvesse uma distinção nítida entre ambas, parece que aquela de origem religiosa era, com mais freqüência, utilizada também para assuntos profanos. Isto demonstra quais signos deviam prevalecer para a realização de uma educação do olhar sobre o mundo.
O modo como as mulheres são representadas nas pinturas do século XV, por exemplo, é também representativo de gestualidades reforçadas como adequadas e daquelas que devem ser combatidas. O olhar atento às pinturas pode dialogar com os manuais para moças e identificar certos gestos que serão reproduzidos nos quadros. Por exemplo, “o uso excessivamente livre das mãos” 8revela um comportamento a ser condenado, pois é associado à tentação, aos prazeres da carne, contrário, portanto aos preceitos de recato e pureza encontrados na Virgem e adequados à mulher.
Baxandall cita um manual para moças, intitulado Décor Puellarum, publicado em 1471, onde se encontram estabelecidas normas rigorosamente precisas: “Caso estiverdes em pé ou andando, vossa mão direita deve sempre se apoiar sobre a vossa esquerda, à vossa frente no nível de vossa cintura”.9
Na pintura, portanto, o olhar atento identifica a gestualidade do recato como aquela que deve prevalecer. O recato e o comedimento dos gestos vão constituir diferentes formas discursivas de poder que se objetivam também em proibições e interdições revelando, assim, gestualidades modelares, códigos e sentidos sociais desejados pelo poder.
Paralelamente a este universo iconográfico, é possível analisar outras formas discursivas e de intervenção do poder sobre o controle dos gestos. Por exemplo, a classificação e condenação de certas profissões no Ocidente medieval do início do século XIII são elucidativas. Neste momento, a profissão de acrobata, e mais amplamente daquele que apresentava o corpo como espetáculo, é considerada ilícita e perigosa para a sociedade.10
Este discurso e esta prática constituem uma dada mentalidade que, lenta, vai perdurar até o século XIX, quando o acrobata é, ainda, objeto de controle por parte do poder, pois sua gestualidade revela um caráter inútil, de entretenimento, onde o uso das forças físicas não indica a utilidade das ações requerida por um poder que deseja construir uma sociedade prática, pragmática e científica.
Está em curso a construção de uma estética traduzida por uma gestualidade onde o corpo útil e higiênico é afirmado e a Ginástica, versão virtuosa e científica da acrobacia de rua e do corpo como espetáculo, consolida-se como prática corporal a ser seguida.11 O gesto, que implica sempre o ser inteiro, é objeto de análise do poder:
O gesto é objeto de percepção sensorial, interpessoal, o gesto coloca em obra, em seu autor, elementos cinéticos, processos térmicos e químicos, traços formais como dimensão e desenho, caracteres dinâmicos, definíveis em imagens de consistência e de peso, um ambiente, enfim, constituído pela realidade psicofisiológica do corpo de quem provém [...] e do entorno deste corpo.12
A força contida no gesto põe em jogo todos os sentidos daquele que o executa e, também daquele que observa essa gestualidade. É como se a profusão de códigos e sentidos ali demonstrados tivesse uma força de persuasão impossível para a palavra. Talvez porque, “os gestos são signos e podem organizar-se numa linguagem; expõem a interpretação e permitem um reconhecimento moral e social da pessoa [...]. Se o corpo diz tudo sobre o homem profundo, deve ser possível formar ou reformar suas disposições íntimas regulamentando corretamente as manifestações do corpo”.13
No século XVI, Erasmo de Roterdão escrevia que convém a um homem “prestar atenção à sua aparência, aos seus gestos e à sua maneira de vestir, tanto quanto à sua inteligência”.14
Estas são indicações que sugerem uma compreensão da razão, ou das razões da existência de tantas pedagogias que incidem sobre o corpo, pedagogias voltadas para uma educação do corpo que ora deve civilizá-lo, ora deve torná-lo útil e higiênico, ora deve sexualizá-lo.
“[...] o corpo é o primeiro lugar onde a mão adulta marca a criança, ele é o primeiro espaço onde se impõem os limites sociais e psicológicos que foram dados à sua conduta, ele é o emblema onde a cultura vem inscrever seus signos.” 15
Como lugar visível e como registro verdadeiro da cultura, o corpo e sua gestualidade são objetos de intervenção do poder. A intervenção dirigida, forjada por inúmeras técnicas que são aprimoradas para incidir sobre o corpo e o gesto, vai se consolidando como prática social desejada, delineando o que se poderia chamar de uma educação do corpo e controle de seus gestos. Modelos técnicos que viabilizem esta intervenção dirigida, esta educação do corpo, são criados e disseminados.
Imagens da retidãoExpressão bem elaborada de intervenção dirigida é a Ginástica que no século XIX, no Ocidente, afirma-se como modelo técnico de educação do corpo e integra o discurso do poder. De certo modo a Ginástica vai conferindo visibilidade a uma imagem de corpo desejada por uma sociedade que se pauta, na aparência, pela rigidez de posturas.
Voltada para o conjunto das populações urbanas, objeto central de preocupação do poder, a Ginástica garante seu lugar na opinião pública e constitui-se como um saber a ser assimilado, pois ajusta-se aos preceitos científicos e é por eles explicada. Aparece despida de suas marcas originárias do mundo do circo, da gestualidade característica dos acrobatas e daqueles que possuíam o corpo como espetáculo. Em seu discurso e prática alarga-se o temor ao imprevisível que o circo, aparentemente, apresenta com seus artistas de arena em suspensões e gestos impossíveis e antinaturais, a mutação constante de seus corpos que resultam em ameaça ao mundo de fixidez que se desejava afirmar.
A Ginástica apresentava-se então como técnica capaz de ensinar o indivíduo a adquirir forças, armazenar e economizar energias humanas, colocando-se como o contrário do circo, do espetáculo de rua, lugares nos quais julgava haver o uso desmedido de forças, um gasto inútil de energia. Contraditoriamente, porém, é nas atividades circenses que a Ginástica tem um de seus mais sólidos vórtices, sempre negado pelos seus discursos e pelo seu silêncio. Amoros, um dos fundadores da ginástica francesa no século XIX, faz alusão aos exercícios cênicos ou funambulescos em sua obra, afirmando que não os exclui, mas que lhes imprime sempre um caráter de utilidade. Reafirma também que o propósito de seu método não é o de entreter, nem de divertir por meio de demonstrações e usos de força física e muito menos fazer dos exercícios um mero e frívolo prazer.16
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