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Reinventando a Educação Física: uma introdução |
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Professora do Departamento de Ginástica do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo Membro pesquisador do Laboratório de Estudos em EF (LESEF/CFED/UFES) Doutoranda no Programa de Pós - Graduação em Educação da UFMG |
Fernanda Paiva
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A questão que articula o presente trabalho é argüir sobre a possibilidade de estudo do engendramento/configuração de um campo da educação física no Brasil a partir da perspectiva de análise de Pierre Bourdieu. Buscando transformar o pressuposto em proposição, argumento demonstrativamente a viabilidade teórica de sua colocação. Para tanto, processo a uma revisão que busca reconhecer as lacunas e contribuições dos estudos desenvolvidos nos últimos doze anos. O percurso escolhido é a identificação, concatenação e problematização de elementos já colocados na literatura que, tomando a historiografia como fonte, permite reconhecer os sensos comuns instalados e pensar/construir novas hipóteses de estudo sobre a gênese deste campo.
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http://www.efdeportes.com/
Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000
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Participar de um evento como esse impõe algumas limitações que a prudência recomenda evidenciar. Mesmo atendendo as exigências inerentes ao protocolo acadêmico para comunicações científicas - clareza, coerência, objetividade - um incômodo de outra ordem se faz presente: sou uma brasileira que - ainda - não se arrisca no espanhol. Dessa dificuldade podemos extrair algo positivo: a esperança de entendê-los e fazer-me entender inspira maior atenção e solidariedade para ouvir e falar, trocar em diferentes linguagens aquilo que nossa aventura oral não conseguir abarcar. Mesmo nessa situação pouco confortável, desejo que nos comuniquemos...
Uma outra dificuldade que tive foi a reflexão sobre a pertinência de conversarmos nesse fórum: um evento sobre Esporte e Ciências Sociais. É muito recente meu contato com pesquisadores e pesquisas argentinas, o que me fez várias vezes (me) perguntar se a temática que vou abordar não estar ficaria descontextualizada nesse evento, já que ela remete a configuração do campo da educação física no Brasil...
Mantive minha disposição para conversarmos apoiada em dois argumentos. O primeiro foi a consideração que diferentes países vivem semelhante reclame: a necessidade de melhor compreender os sentidos atribuídos a educação física e ao esporte. Sem reduzir o tema a problemas semânticos e sem querer proclamar incompatibilidade de "objetos", penso que é no reconhecimento da tensão entre educação física e esporte que o arcabouço teórico das ciências sociais é chamado a dar sua contribuição, elucidando a problemática que esta tensão produz.
O segundo argumento foi a ponderação de que essa comunicação, além de um caráter informativo, poderia somar na difusão de uma postura no fazer científico, na divulgação de uma referência teórica, na partilha de dúvidas, impasses e achados que povoam o universo de esperanças e angústias daqueles que se entregam aos diferentes sabores do trabalho científico. Quero dizer com isso que conhecer como venho procedendo no estudo do caso brasileiro pode dar para o - e colher no - caso argentino pistas para o entendimento da constituição do campo da educação física. Não é uma pretensão... é uma possibilidade.
Foi pensando, então, no contratempo da língua e em como estaria o debate sobre educação física, esporte e ciências sociais na Argentina que tomei minhas decisões sobre como expor e me expor a vocês: vou sumariamente explicitar minha posição sobre o debate educação física, esporte e ciências sociais e depois vou falar-lhes do caminho percorrido na produção da minha problemática de estudo.
Brevíssimas palavras sobre a relação educação física e ciências sociais
Grosso modo, no caso do Brasil, tem-se nos anos oitenta um momento importante de reordenação na produção acadêmica da educação física. Nele construiu-se uma forte crítica as ciências biológicas e a forma como estas buscam fundamentar a educação física. As ciências humanas e sociais foram trazidas a cena na expectativa tanto de compreender aquele momento e “instalar” uma crise como de ganhar espaço na produção de conhecimento na área de educação física e no esporte a partir de suas teorias. Esse movimento se deu em dois sentidos: professores de educação física que buscaram se apropriar desse arcabouço teórico e cientistas sociais de formação que ocuparam-se de estudos sobre o esporte, o corpo, e, em alguns casos, a educação física.Hoje se sabe que nesse movimento de apropriação dos professores de educação física alguns percalços se apresentaram. Lovisolo, ao analisar a escrita da história da educação física e dos esportes no Brasil, equaciona-os, dentre outros, na forma mecanicista como teorias foram trabalhadas1 a partir do que ele chama de adoção de critérios exteriores ao campo “dos esportes e da atividade corporal” (g.m). Mas ele mesmo reconhece que nas narrativas históricas em educação física já é possível encontrar produções “[munidas] dos arcabouços elaborados pelos de fora, nas áreas de história e ciências sociais [num] estar dentro que pretende, ao mesmo tempo, construir-se desde fora mediante os caminhos da razão objetivante da pesquisa” (p. 55). Isso implica numa dupla relação2 necessária às narrativas de dentro (educação física) que se constróem a partir de fora (história e ciências sociais) para que se façam reconhecidas pelos de fora.
Sem abrir mão dessa competência para falar com eles, tenho externado minha preocupação de que essa dupla relação precisa ser considerada para que nossas pesquisas sejam reconhecidas pelos professores de educação física, incluindo aqueles que pouco circulam no meio acadêmico. Penso que nossos estudos devem falar mais a nós mesmos enquanto grupo social do que a historiadores e cientistas sociais.
Essa disposição parece importante porque se parte da crítica dos anos oitenta dirigia-se a um conhecimento produzido a partir da matriz das ciências biológicas que pouco ou nada ajudava a compreender a realidade social e as tensões e possibilidades educativas colocadas à educação física, hoje, mesmo melhor transitando em outras perspectivas de análise, parte dos pesquisadores que nelas se aventuraram parecem ter se deixado seduzir pelos encantos de outros objetos, abrindo mão de representarem e se representar como pesquisadores em educação física. Não se trata de uma questão corporativa, mas a constatação de que, com esse quadro, avançamos modestamente. O caso da história é exemplar: com certeza hoje sabemos mais sobre a história do corpo e do esporte - para ficar em dois exemplos. Mas isso não implica numa razão direta em maior conhecimento da história da educação física. Esta última também caminhou, mas sem ser prioridade entre os professores de educação física de formação que fazem pesquisa histórica.
Na aspiração de somar esforços na compreensão do que lhe é fundante é que fui amadurecendo a reflexão sobre a necessidade de repensar como a historiografia da última década produziu o passado da educação física. Busco trabalhar na fértil e desafiadora interface entre a história e a sociologia, buscando inspiração nas reflexões de Pierre Bourdieu .
Explicitando os propósitos do ensaio Reinventando a educação física: uma introdução
Meu ponto de partida foi o incômodo registrado acima: por que os professores de educação física não pesquisam sobre educação física? A colocação dessa pergunta esbarrou em outras: o que é educação física e, decorrência, o que é pesquisa em educação física? Se as perguntas são simples, as respostas não o são, posto que significam entender a educação física na sua história e historicidade; história, que não é passado morto a ser, no duplo sentido, decorado; passado, construção dos homens que o viveram, mas, também, produção daqueles que hoje lhe dão visibilidade.Ao conceber os sentidos "atribuídos" à educação física como processo, como construção histórica, impunha-se uma segunda desnaturalização, qual seja, aquela que permite compreender que esses sentidos legitimados em diferentes épocas e lugares, não são fruto de um amadurecimento espontâneo, mas de enfrentamentos, de lutas simbólicas para legitimação de sentidos. Aqueles que trabalham com a história têm dupla responsabilidade neste enfrentamento tanto pela posição e disposição - no sentido bourdieusiano - com que entendem (ou desconsideram) a educação física hoje, como pela identidade que lhe conferem ao inventar seu passado.
O ensaio Reinventando a educação física: uma introdução pretendeu arguir a possibilidade de demarcar um campo da educação física no Brasil a partir desse olhar. Em outros termos, implicou numa demorada e cuidadosa reflexão sobre a viabilidade de pensar a educação física com a teoria dos campos e da violência simbólica, não se tratando de “aplicar” essas teorias, mas de tomá-las como instrumental instigador de reflexão, provocador de instabilidades e propulsor de objectualização.
Argumentar demonstrativamente a viabilidade teórica da colocação de que existe um campo da educação física no Brasil que se configura por volta dos anos trinta significou, neste ensaio, forjar a historiografia como fonte, o que implicou em ponderação sobre os discursos produzidos e veiculados autorizadamente. De posse desse material3, e com essa predisposição, mapeei as questões com as quais se ocupa a recente historiografia da educação física, as interpretações, argumentos e fontes recorrentes, e identifiquei lacunas e avanços, atentando para a produção de sensos comuns. Decorrente das ações anteriores, esbocei uma avaliação - preliminar - da autonomia do campo a partir do seu "pensar-se". Foi este exercício que me permitiu vislumbrar a problemática com a qual compus um programa de trabalho para estudo da gênese do campo.
O diálogo com as fontes: relendo histórias da educação física
É preciso ratificar que, nos últimos doze anos, a produção acadêmica em história da educação física no Brasil cresceu quantitativa e qualitativamente, a primeira mais que a segunda. Em muitos trabalhos na área de história da educação física - e, mais comumente, fora dela - a principal referência ainda são os textos de Castellani Filho e Ghiraldelli Júnior4, embora críticas ora mais ora menos contundentes dirigidas a eles já possam ser encontradas.No entanto, se já é possível reconhecer o lugar comum que se produziu com a "história das tendências em educação física", tem escapado aos pesquisadores a construção de novo senso-comum que provoca um silêncio dispersor. De certo, Pagni e Melo já atentaram para problemas de nossa historiografia e, partindo de suas colocações, quis identificar e pensar sobre e com alguns argumentos e representações que permeiam e explicam (ou ainda explicam) a nossa história. Eis alguns deles:
As dificuldades de definir educação física e história da educação física advêm da sua polissemia;
A década de trinta do século XX é crucial a institucionalização da educação física no Brasil;
A educação física é influenciada pelas instituições médicas, militares e pedagógicas;
O esporte na virada do século XIX para o XX é um dos símbolos da modernidade;
Os médicos higienistas é que imprimem a educação física um caráter científico legitimador de sua aceitação;
Aos médicos coube a parte prescritiva ao passo que instrutores e professores "aplicaram" (ou deveriam aplicar) essa prescrição;
Os militares não pensaram teoricamente a educação física, cabendo a eles a parte "administrativa" ou gerencial da área;
Os anos 70 e 80 caracterizam novo encaminhamento para a área com a implementação da pós-graduação e/ou com "a crise" da educação física.
Não se trata, entretanto, de julgar se essas idéias que têm se tornado novo senso-comum são aceitáveis ou refutáveis por si só. Enfatizo é que são formulações correntes e recorrentes. Foi na confluência das análises que as elaboram e da incidência repetitiva as tornam idéias que explicam (e não mais aquelas as quais precisam ser explicadas) que encontrei espaço e apoio para problematizá-las e objectualizar a educação física como campo. Dialoguei, então, com autores que me parecem nucleares na elaboração dessas análises. Aqui exponho sumariamente o que pensam e sugerem como interpretação possível e as idéias-força que deles capturo e procuro recolocar.
O exercício de pensar a gênese da educação física está presente num texto de Gebara publicado em 1992. Sua análise procura demonstrar que a constituição da educação física no Brasil se dá a partir do saber médico, complementado5 por instituições como exército/marinha e a escola que se valiam da atividade física para educar. Considera que o esporte moderno, desde a virada do século, rearranja os saberes constitutivos da educação física e que a escolarização (assim como a desescolarização, décadas depois) é um elemento relevante na configuração da área. Observa que a pós-graduação específica pode ser um indício de atingimento de novo patamar no desenvolvimento da educação física. O principal argumento do autor para explicar essas mudanças na educação física é a plasticidade de seu objeto de estudo. Por isso, conclui que a "crise" deve ser pensada como um estado intrínseco a esse plástico objeto, cuja área de conhecimento é marcada por sucessivos acréscimos no plano das técnicas profissionalizantes e no universo de pesquisa. Na sua avaliação, a continuidade e a linearidade não parecem ser os elementos estruturais na constituição da área.
Gostaria de adiantar que, se por um lado, esse autor visualiza questões importantes para pensarmos a gênese do campo, por outro, boa parte do meu esforço intelectual se dá no sentido de desconstruir suas conjecturas e recolocar essas e outras questões em termos mais precisos. Num “roteiro” que lhe tomo de empréstimo, percorro o que está colocado de mais significativo para a problematização do engendramento do campo a partir das discussões sobre higienismo e educação física, militares e educação física, esporte e educação física, educação e educação física e “educação física e educação física”.
No que tange ao higienismo, o diálogo se dá com Soares6 e Góis Júnior. É com esse estudo de Soares que torna-se corrente na educação física brasileira a idéia de que sua gênese está atrelada ao projeto de (re)ordenamento social desencadeado pela implantação do capitalismo, o que necessariamente passava pelas propostas de higienização social, incluída aí sua proposta educacional, de formação moral e disciplinar que garantisse o controle na esfera individual e coletiva, de regeneração e aperfeiçoamento da raça e de inculcação de um sentimento identidade nacional.
Gostaria de observar que, dentre as muitas contribuições trazidas por esse estudo, uma questão importante parece ter escapado, naquele momento, a análise da autora: possíveis distinções sobre a consideração do que é educação física e a ginástica. Seu trabalho não nos insita a captar as tensões envolvidas na construção desses sentidos que, embora inicialmente imbricados, vão se particularizando.
Nunca é demais repetir, com ela, que as bandeiras que flamejaram com e a partir do discurso médico-higienista, não se dirigiam (somente) “a nossa área” e sim a um projeto político, econômico, social e cultural para o Brasil. Entretanto, na historiografia o que se faz presente é a idéia que, “a área” dele teria sido vítima, ou, na melhor das hipóteses, cúmplice. A compreensão de uma educação física “instrumentalizada” pelo capitalismo, ou conseqüência da modernidade ou do processo civilizador (versões explicativas mais recentes na historiografia) parecem deixar escapar a microanálise que possibilita pensar, no detalhe, a construção das condições de possibilidade que permitiram o engendramento do campo, até porque é muito recente a interpretação que levanta voz em sentido contrário. São os estudos de Góis Júnior que tem chamado atenção para considerarmos o higienismo, mais do que influenciador, um movimento consolidador da nossa área.
A idéia de que os militares estiveram a reboque dos médicos, “contribuindo mais administrativamente” do que pensando organicamente para a configuração do campo, também merece ser revisitada. As primeiras pistas para repensar essa relação estão nos estudos de Ferreira Neto que defende a tese que os militares tinham um projeto pedagógico para a sociedade civil e, ao viabilizá-lo, trouxeram contribuições para uma teoria da educação física.
Na sua avaliação, o programa de ações por eles pensado para incremento e implantação da educação física só se conclui na década de 40. Programa esse que incluiu criação de Escolas de formação, preparação de pessoal, implementação da educação física na tropa e na sociedade civil. Além disso, sua interpretação aponta que a criação de uma Escola de formação civil7, não significou desmilitarização da área, mas a extensão do controle militar ao ensino dessa disciplina nas escolas e nos cursos de formação profissional.
Essa discussão da “militarização” da educação física traz novas luzes para pensarmos a constituição do campo. O reconhecimento de um projeto político-pedagógico impõe rever o esteriótipo de que militarização da educação física se traduz/reduz a figura de sargentos que sabiam bem entonar vozes de comando atuando nas escolas. Esse projeto se constrói tendo como pano de fundo uma educação da paz, que perspectivava o Exército como uma escola de consciência defensiva, de civismo e de paz e não de violência ofensiva, o que coloca em cheque a idéia de que a “educação física militarista” objetivava a educação para o suportar o combate, a luta e a guerra8. Mais do que a formação do cidadão-soldado, parece estar em jogo a incorporação de toda a formação doutrinária que sustenta o próprio Exército qual seja a que “ser disciplinado é aceitar com convicção e sem reservas a necessidade de uma lei comum, que regule e coordene os esforços de seus quadros” (p. 22).
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