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Um olhar multicultural sobre o corpo

Escola de Educação Física e Desportos UFRJ
Doutoranda em Educação - UFRJ

Sílvia Maria Agatti Lüdorf
sagatti@rio.com.br
(Brasil)

Resumo
    No contexto da sociedade brasileira, globalizada e consumista, fortemente influenciada pela mídia, insere-se o corpo com o qual o profissional de Educação Física trabalha, contribuindo para neste, inscrever sentidos e significados. Intentamos discutir como o Multiculturalismo pode auxiliar uma melhor compreensão deste corpo e da atuação do profissional de Educação Física.
Unitermos: Educação Física. Multiculturalismo. Corpo.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 25 - Setiembre de 2000


O corpo, a sociedade e a Educação Física

    Pensar o corpo é uma tarefa um tanto complexa, dadas as diversas dimensões que podem ser exploradas. O corpo é a estrutura do ser humano, seu arcabouço físico, segundo Ferreira (1986), contudo não se restringe à sua existência material. Outrossim, compreende as formas de se relacionar, de interagir, de refletir sobre e com o mundo. É uma construção, obviamente concreta, mas moldável, conforme os valores e a cultura provenientes da sociedade onde está inserido.

    A área bio-médica tem tratado o corpo a partir de parâmetros da técnica, da racionalidade e da fragmentação, no sentido de projetar o corpo perfeito e saudável, protótipo da sociedade capitalista contemporânea (Silva, 1999). Entretanto, faz-se necessário tratá-lo além da perspectiva de objeto.

    O movimento e, conseqüentemente, o corpo, constituem-se na essência da Educação Física. Partimos do pressuposto de que a Educação Física deve ser compreendida como uma prática sociocultural. Daolio (1999) reforça que as regras, normas e valores de uma sociedade estão inscritos no corpo, já que o mesmo constitui-se no meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca.

    A sociedade capitalista contemporânea caracteriza-se pela competitividade exacerbada baseada nas leis de mercado, pelo avanço tecnológico e pelo processo de globalização (Muzio, 1999). Na prática, a globalização diminui as distâncias geográficas, supondo uma interação funcional de atividades econômicas e culturais, bens e serviços, onde o que importa é a velocidade com que as informações percorrem o mundo (Canclini, 1999).

    Nesta sociedade globalizada, conforme Chauí (1999), está subjacente a ideologia pós-moderna, a qual apresenta algumas peculiaridades, como a paixão pelo efêmero e pelas imagens, impulsionadas pelo avanço tecnológico e por novos tipos de publicidade. A mídia, neste panorama, passa a exercer papel fundamental não apenas como veículo de marketing e de divulgação de produtos e informações, mas como inculcadora das necessidades consumistas e, conseqüentemente, da ideologia pós-moderna. Giroux (1995) argumenta que o papel da cultura da mídia é central para compreender a dinâmica do poder, do privilégio e do desejo social de uma sociedade.

    Diante do exposto, urge repensar o papel da Educação Física nesta sociedade pós-moderna, cujos valores são intensamente propagados pela mídia. Conforme Betti (1998, p. 01), “... no campo da cultura corporal, a atuação da mídia é crescente e decisiva na construção de novos significados e modalidades de entretenimento e consumo.”

    Uma das questões que merecem reflexão no âmbito da Educação Física refere-se às concepções de corpo, bem como os valores a ele associados. Dentre os variados significados construídos pela mídia, notoriamente, há determinados padrões de estética corporal que são largamente difundidos, assim como um interesse crescente em torno do culto ao corpo.

    Attali, apud Mc Laren (1997), delineia um dos aspectos desta preocupação com o corpo: “Indivíduos em todos os lugares nas regiões privilegiadas do mundo estão aderindo ao culto do saudável e do bem-informado. Padrões de beleza, que eram tão variados de sociedade para sociedade, estão agora se misturando crescentemente em um ideal único e homogeneizado.” (p. 23)

    Pensar a corporeidade neste tipo de sociedade torna-se complexo, visto que o corpo deixou de ser uma referência estável e um dado de identidade fixa e imutável. Passa a ser construído através de discursos de consumo, que homogeneizam padrões estéticos de comportamento e de gosto, dentro de esquemas de aprisionamento e, muitas vezes, de tortura ( Villaça e Góes, 1998).

    O professor de Educação Física, ao atuar com/no corpo social, contribui para inscrever sentidos e significados no processo de construção histórica do corpo. Faz-se necessário, então, repensar como se dá esta interação visando obter elementos para a compreensão do papel deste profissional na sociedade.


Reflexões sobre a perspectiva multicultural

    A Educação Física, na medida em que lida com o corpo na / da sociedade, tende a ser associada à produção, à formação e ao desenvolvimento de padrões, também estéticos. A “ditadura” da estética, na nossa visão, pode ser encarada como uma forma de preconceito e de discriminação social, já que se trata de um modelo de corpo praticamente imposto que não considera a pluralidade, nem as diversas referências culturais.

    Reside aí o cerne de nossas preocupações: afinal, será que a Educação Física não estaria contribuindo para divulgar e reproduzir um modelo universal? Que papel os professores atribuem a si enquanto interventores no corpo? Até que ponto os professores se restringem à questão da estética do corpo e perdem a dimensão maior de sua função no contexto social pós-moderno?

    Suspeitamos que as discussões relacionando o corpo, a cultura e a sociedade ainda não sejam expressivamente contempladas no âmbito da Educação Física. Gonçalves (1999), por exemplo, enfatiza que no Brasil, infelizmente, são praticamente inexistentes estudos que correlacionem multiculturalismo e Educação Física/Esportes, constituindo-se em uma das grandes lacunas da produção acadêmica.

    Observam-se, entretanto, indicativos no sentido de valorização do contexto sócio-cultural e da importância do professor reflexivo. Costa (1994) ressalta que há uma clara tendência em se valorizar as diferentes culturas e sociedades. Este autor acrescenta que o esporte promove o multiculturalismo, mas alerta para a necessidade de se refletir sobre o papel do educador físico considerando os referenciais da cultura global e local, visando recriar seu modo de atuação.

    Além destes aspectos, a mídia, conforme foi anteriormente mencionado, é uma das propagadoras da ideologia pós-moderna e gera impactos na construção da identidade do indivíduo. Se este fato envolve a prática das atividades físicas, é fundamental que os professores desta área tenham subsídios para lançar um olhar crítico sobre estes efeitos.

    Neste sentido, acreditamos que o multiculturalismo deve ser mais discutido na Educação Física. Contudo, é necessário que as discussões ultrapassem a perspectiva conservadora ou humanista, cujos preceitos admitem a existência de diferenças e desigualdades, mas desconsideram o contexto sociopolítico. Outrossim, devem incorporar o multiculturalismo crítico, que assume as diferenças como produção ideológica e sociocultural (Mc Laren, 1997).

    A posição teórica central do Multiculturalismo crítico, segundo este autor, é de que as diferenças são construções histórico-culturais, portanto, produzidas de acordo com a ideologia e a recepção de signos culturais. Desta forma, o educador crítico pode auxiliar a explorar como os alunos são diferencialmente sujeitados às inscrições ideológicas e aos discursos de desejo. Em especial, acreditamos que os professores de Educação Física têm um vasto campo de exploração destes discursos ao lidarem com o corpo dos alunos não só física, mas socioculturalmente.

    É preciso desafiar os estereótipos e padrões hegemônicos de corpo e trabalhar a pluralidade, valorizando, por um lado, a realidade e as experiências dos alunos e, por outro, a prática cultural de outros povos ou regiões. Ou seja, estimulando-se as diversas formas de corporeidade. Esta perspectiva de análise multicultural poderia enriquecer a discussão do papel sociocultural da Educação Física em um âmbito geral.


Referências bibliográficas

  • BETTI, Mauro. Mídia e Educação: Análise da relação dos meios de comunicação de massa com a Educação Física e os esportes. Palestra proferida no Seminário Brasileiro em Pedagogia do Esporte, UFSM, Santa Maria, 1998.

  • CANCLINI, Néstor G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4.ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999.

  • CHAUÍ, Marilena. Ideologia neoliberal e universidade. In: OLIVEIRA, Francisco & PAOLI, Maria C. Os sentidos da democracia: Políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999.

  • COSTA, Lamartine P. Formação profissional em educação física, esporte e lazer no Brasil: memória, diagnóstico e perspectivas. Blumenau: Ed. FURB, 1999.

  • DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. 4.ed. Campinas/SP: Papirus, 1999.

  • FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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  • GONÇALVES, Luiz A. Oliveira. Tempo/espaço dos sujeitos socioculturais na educação física/ciências do esporte: uma perspectiva sociológica. Rev. Bras. de Ciências do Esporte, Florianópolis, v.21,n.1, set/1999.

  • MC LAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1997.

  • MC LAREN, Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio. Trad. Márcia Moraes e Roberto C. Costa. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

  • MUZIO, Gabriele. A globalização como o estágio de perfeição do paradigma moderno: uma estratégia possível para sobreviver à coerência do processo. In: OLIVEIRA, Francisco & PAOLI, Maria C. Os sentidos da democracia: Políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília: NEDIC, 1999.

  • NELSON, Cary; TREICHLER, Paula A.; GROOSBERG, L. Estudos culturais: uma introdução. In: SILVA, Tomaz T. (org.) Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

  • SILVA, Ana M. A razão e o corpo do mundo. Rev. Bras. de Ciências do Esporte, Florianópolis, v.21,n.1, set/1999.

  • VILLAÇA, Nízia; GÓES, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


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