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A obra cinematográfica O Pequeno Príncipe e o 

pensamento deleuziano: um encontro para pensar Infâncias

La obra cinematográfica de El Principito y el pensamiento de Deleuze: una reunión para pensar Infancias

The cinematographic work The Little Prince and the Deleuzian thought: a meeting to think childhoods

 

*Licenciada em Pedagogia e Matemática

**Professor do curdo de Educação Física e do Programa

de Pós-Graduação em Educação da UNEMAT

***Professora do curso de pedagogia e do Programa de Pós-Graduação

em Educação da UNEMAT e coordenadora do Ateliê de Imagem e Educação – AIE

(Brasil)

Fernanda Tüxen Azevedo*

fernandatuxenazevedo@gmail.com

Kleber Tüxen Carneiro**

kleber2910@gmail.com

Maritza Maciel Castrillon Maldonado***

maritzacmaldonado@gmail.com

 

 

 

 

Resumo

          O presente texto dedica-se a conjecturar, ou melhor, é um convite ao leitor a pensar, sobre infâncias e seus sentidos, de modo especial a observar os paradoxos que recaem sobre a temática. Alentados pela inebriante trama que compõe o filme “O Pequeno Príncipe”, do diretor Mark Osborne que se baseia no livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), buscou-se analisar alguns conteúdos (elementos) presentes na obra, na tentativa “problematizar” a ideia idílica que tangencia a constituição da infância idealizada. Subsidiados pelas obras “O enigma da Infância” de Jorge Larrosa e a “A lógica do Sentido” de Gilles Deleuze, nos aventuramos a pensar a importância dos encontros, para constituição da subjetividade e alargamento das experiências humanas, do mesmo modo que, a plenitude da infância está intrinsecamente vinculada ao brincar em suas diferentes roupagens.

          Unitermos: Infância. O Pequeno Príncipe. Encontros. Brincar. Pensamento Deleuziano.

 

Abstract

          The present text dedicates itself to conjecture, or rather, it is an invitation to the reader to think over the childhood and their meanings in a special way observing the paradoxes, which fall about the thematic. Motivated by the intoxicating plot that make up the movie "The Little Prince" by director Mark Osborne that builds on the book by French writer Antoine de Saint-Exupery (1900-1944), we sought to analyze some contents (elements) in the work, in the attempt "problematize" the idyllic idea that touches the constitution of idealized childhood. Based by the works "The enigma of Childhood" by Jorge Larrosa and "The logic of sense" of Gilles Deleuze, we venture to think the importance of encounters for the constitution of subjectivity and extension of human experience, the same way as the fullness of childhood is intrinsically linked the play in its different drapery.

          Keywords: Childhood. The Little Prince. Meetings. Play. Deleuzian thought.

 

Recepção: 09/05/2016 - Aceitação: 16/06/2016

 

1ª Revisão: 09/06/2016 - 2ª Revisão: 15/06/2016

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 21 - Nº 217 - Junio de 2016. http://www.efdeportes.com/

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Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.

Antoine de Saint-Exupéry

    O Pequeno Príncipe1 é um clássico da literatura universal, publicado em 1943, por Antoine de Saint-Exupéry. Originalmente escrito em língua francesa, figura-se como um dos livros mais vendido no mundo, provavelmente porque sua natureza poética e metafórica seja um chamado, ou melhor, um clamor, ao conteúdo cuja natureza, transcenda aos limites dos sentidos biológicos e suscite novos olhares, ou por assim dizer, certo “despertamento” aos elementos subjetivos da existência humana.

    A trama e conteúdos presentes na obra são tão amplos e promissores, que permitiram a transposição das fronteiras literárias, para forma imagética de cinema. A despeito de não ser um retrato fiel do livro, sua adaptação, ampliara significativamente os conteúdos e aprendizados que podem ser extraídos e associados a partir do contato com o mesmo.

Cena de O Pequeno Príncipe (Mark Osborne, 2015)

    Deste modo engendrou-se o presente texto, cujo principal objetivo é analisar alguns conteúdos (elementos) presentes na obra cinematográfica O Pequeno Príncipe, de modo especial, na tentativa “problematizar” a ideia idílica que tangencia a constituição da infância idealizada, sob a égide dos diferentes argumentos (instrumentais e utilitários).

    Não obstante, destacar a importância da potência dos encontros, para constituição da subjetividade e alargamento das experiências humanas, com inspirações teóricas deleuzianas, e igualmente, reordenar, ou melhor, redimensionar o quão a natureza do conteúdo lúdico (por vezes negligenciada, desvalorizada e pouco compreendida), pode ser fundamental para a constituição de sentido outros, sobretudo no tocante da plenitude das infâncias.

    Vale uma ressalva inicial, apesar de se tratar de um ensaio textual, cuja natureza tenha uma conotação científica e recorra a constructos teóricos, se faz necessário (sendo fiel à proposta da obra cinematográfica e também literária) um olhar, em que o enxergar sobreponha aos impostos pelos limites biológicos da visão. Dito de modo mais simples, será preciso enxergar para além da superfície visual, que embora lance luz e compreensão aos elementos, neste contexto em específico, será preciso ao leitor, se permitir perceber, para além das aparências, se permitir ser guiado pelo “coração” (aferentes afetivos).

Entre riscos e perigos da infância idealizada

    Uma garota acabara de se mudar com sua mãe, uma mulher com traços de personalidade marcante, extremamente controladora e diretiva, sempre justificando, ou reportando seus exageros cuidadores, ao argumento do futuro promissor e brilhante que esperara para sua filha.

    Para que houvesse êxito em tal objetivo, a mãe elabora um planejamento de estudo rigorosíssimo, cuja sistematização, obedece a uma sequência com datas e horas milimetricamente calculadas, e com conteúdos extremamente densos. Uma rotina mais intensa do que a de muitos adultos, e que se assemelha com a vivida pela mãe e seu cotidiano profissional.

    Evidentemente nesta rotina não há lugar para questões efêmeras da vida infantil, inexistindo tempo livre para brincar, ou simplesmente para conversar com amigos... Isso porque, a menina necessitava passar em um teste para o ingresso num renomado Colégio, tendo em vista seu futuro promissor. Segundo a narrativa da mãe: amigos, brincadeiras não contribuem para o seu desenvolvimento intelectual, o que atualmente é primordial para se estabelecer profissionalmente em uma empresa de renome, como a de seus pais.

    Bem, aqui temos dois pontos que merecem destaques, o primeiro deles, diz respeito ao entendimento que se apresenta a respeito do brincar (que mais a frente será melhor abordado, no tópico intitulado: Quando brincar ressignifica o viver e o tempo), compreendido como atividade desprovida de importância, quiçá, por sua natureza frívola, ou mesmo, ao considerar que o brincar não produz bens de consumo, o que para os mais pragmáticos o torna improdutivo, e portanto, para o senso comum, algo desprovido de importância. O outro aspecto que merece atenção decorre do furto da infância sob a égide da ideia futurística, isto é, o não permitir viver o tempo tão precioso da infância, em nome de assegurar um futuro alvissareiro, como se houvessem garantias ontológicas para o mesmo.

    Na continuidade da trama cinematográfica, se percebe que o enredo, em sua maior parte, gira em torno da pequena garota, cuja vida é bastante regrada, tendo em vista à obsessão da mãe em controlar absolutamente tudo a sua volta, conforme já dito anteriormente. Para situar ainda mais este universo austero, a animação computadorizada ressalta sempre o quanto tudo é retangular e cinza, tornando o universo empobrecido de imaginação e contemplação.

    Visivelmente, a rotina exacerbada da menina, apresenta desdobramentos em seu comportamento, dentre muitos facilmente perceptíveis, alguns se destacam: a extrema organização nas vestimentas, com os pertences, no cumprimento dos deveres. Ao passo que, ao término do dia a mãe se orgulha de sua diligência, pois cumprira com excelência a extenuante rotina. Além disso, as realizara sem a interferência e supervisão (presença) de um adulto, pois sua mãe trabalhava do amanhecer ao anoitecer. Notemos neste ponto, que a ingerência da mãe, revela tacitamente uma concepção de infância em que a criança é um adulto em miniatura, um “protótipo” adulto, compreensão que se aproxima à apresentada por Ariès (1981), ao situar a construção histórica da infância nos séculos XVI e XVII.

    Ora, a princípio não parece haver elementos perniciosos ao se propor uma rotina, ou mesmo que os pais almejem um futuro promissor aos filhos. Ao passo que inclusive, parece salutar contribuírem para que os filhos sejam: organizados, estudiosos, ou ainda, que desfrutem de orientações ainda que mínimas, para realização das atividades habituais. Contudo, o cerne da questão, ou melhor, o grande questionamento, se assente na forma e nos conteúdos que se elegem para alcançar tais desígnios. Isto é, até que ponto a preparação para futuro seria mais importante que a plenitude do tempo presente? E ainda, de que maneira as preferências, ou escolhas, para as atividades e afazeres instituídas a partir do universo adulto, contemplam ou possuem significados inteligíveis para o universo pueril?

    Tomemos como exemplo a garota mencionada. Seu comportamento, a principio, soa como exemplar, tendo em vista a obediência, dedicação aos estudos, vestimenta sempre impecável, organização irretocável, características a princípio, perfeitas. Se não estivéssemos aludindo ou descrevendo uma criança, quiçá, tais adjetivos pudessem ser pensados quando se alvitrar uma promissora carreira profissional, para um adulto. Notem, os adjetivos que descrevem a garota são a personificação, ou melhor, as características indeléveis da mãe, no desenrolar do filme.

    A mãe, convencida do ideal (lê-se futuro) promissor, “delineia” na filha o seu projeto, sob a égide do tempo vindouro, ou por assim dizer, em busca do bem sucedido, isto é, “desenha” um universo (mundo) idílico. Para tal, a criança nada mais é do que um adulto em miniatura, que necessita ser moldado, constituído conforme suas idealizações. Percebe-se que a mãe da garota revela tacitamente uma ideia, ou melhor, uma concepção do que venha a ser a infância, pois já fora capturada por signos presentes socialmente, uma vez que as ingerências pedagógicas, psicológicas, neurológicas, entre outras, “deliberam” o modus operandi na/da infância, como observa Larrosa:

    A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher. A infância, desse ponto de vista, não é outra coisa senão o objeto de estudo de um conjunto de saberes mais ou menos tecnicamente controlada e eficazes, ou a usuária de um conjunto de instituições mais ou menos adaptadas às suas necessidades, às suas características ou às suas demandas .(Larrosa, 1999, p.184)

    Em consonância ao pensamento do autor, percebe-se o quanto o mundo adulto se coloca como detentor dos saberes que devem governar as ações da criança, dizendo e ditando como devem ser conduzidas. Reduz-se a infância à matéria prima para a realização de sonhos “adultizados”, sob a égide das idealizações promissoras e por justificativas técnicas/pedagógicas. Ora, não estamos negando, nem tão pouco desconsiderando que possam haver projetos, ou que não sejam importantes os cuidados dedicados ao universo pueril. O que queremos destacar, são os perigos do furto da infância, frente aos modelos idealizados, desconsiderando o estado de direito da criança. Há nesse modelo idealizado alguns riscos eminentes, pois, se reduz as possibilidades desse sujeito pensar diferentes possibilidades frente às situações cotidianas, ou seja, através de nosso “bom senso” que é definido como razão, o impeçamos de se abrir à potência dos encontros (assunto que será melhor explanado no próximo tópico) e aprisionamos em um “devir louco” (Deleuze, 1974).

    Em contrapartida a esse modelo idealizado, fragmentado de infância, Larrosa (1999) nos apresenta um novo pensar. Segundo o autor, a infância deve ser entendia como um outro, o desconhecido, que inquieta completamente a segurança do conhecer teórico, que não se reduz à lógica das práticas institucionalizadas, e nem tampouco a confunda com o que ainda não podemos submeter. Nas palavras do autor:

    A infância como um outro não é o objeto (ou o objetivo) do saber, mas é algo que escapa a qualquer objetivação e que desvia de qualquer objetivo: não é o ponto de fixação do poder, mas aquilo que marca a sua linha de declínio, seu limite exterior, sua absoluta impotência: não é o que está presente em nossa instituições, mas aquilo que permanece ausente e não abrangível, brilhando sempre fora dos limites. (Larrosa, 1999, p.185)

    Deste modo, a infância é o desconhecido que está além daquilo que sabemos, contudo é portadora de uma verdade que devemos ouvir, jamais capturar pelo nosso domínio e poder. Requer da nossa parte, iniciativa para recebê-la. É o paradoxo entre verdade e saber, iniciativa e poder. É a presença enigmática da infância com o ser criança, que não compreende o que falamos, nem como agimos. Devolver à infância a presença do incompreensível, e encontrar a medida da nossa responsabilidade pela resposta, ante a exigência que esse enigma leva consigo. Doravante, trataremos da potência dos encontros, com destaque dado à beleza do encontro contida no filme o Pequeno Príncipe.

A Potência dos Encontros – entre experiências e essência

    Como descrito anteriormente, a menina cuja trama do filme narra, apresenta comportamento “exemplar”, considerando: obediência, dedicação aos estudos, vestimenta, organização, características reproduzidas e indeléveis também encontradas em sua mãe, conforme o desenrolar da obra discorre. Aliás, caso fizéssemos uma análise mais elaborada e percorrêssemos o bairro em que as personagens vivem, ou melhor, se fizermos uma “varredura” pela vizinhança, notaríamos facilmente a padronização dos comportamentos e da forma de organização vida, profundamente massificada, a começar pela disposição do bairro e formato das casas, inclusive no tocante das fachadas e cores, com exceção de uma, que destoava abruptamente das demais.

    Ao lado da casa da garota, tudo era diferente, desde as coisas mais efêmeras às mais elaboradas. Uma residência, cuja essência pareceria não “caber”, isto é, não combinar, com os padrões estéticos “pasteurizados” que figuravam as adjacências. Uma residência tão diferente e enigmática que assombrava a vizinhança, que, resignada com as padronizações, incompreendia o lugar da diferença, ao que tudo indica, marca indelével da contemporaneidade.

    Em decorrência de um “acidente” a garota toma contato (tem um encontro) com seu vizinho, que por diversas vezes a mãe recomendara manter distância. Um Sr. aposentado que fora aviador, considerado pela vizinhança um lunático, pois, sua casa, seus costumes fogem do padrão idealizado. Sua casa se destaca em seu bairro, pois havia muito colorido, flores, brinquedos e, é claro, um avião. Diferentemente das demais, com cores neutras, sem flores, e por assim dizer, sem vida (realmente viva).

    Como todo bom encontro sugere outros, sobretudo no tocante do alargamento dos laços afetivos, a maior parte do filme dar-se-á ao longo dos encontros entre o aviador e a garota. E em um deles o novo amigo apresenta à garota a história do Pequeno Príncipe, momento em que o encantamento sobrepuja a cena, e o universo lúdico abre espaço à criatividade. Neste sentido, a trama do livro de Saint-Exupéry é utilizada como símbolo deste mundo colorido que paulatinamente, transforma a vida da tal garota.

    Cabe um pequeno parêntese, quiçá, de natureza mais técnica, no tocante de uma analogia imagética, contudo, merecendo ser observado. A história dela e a do pequeno príncipe são narradas em paralelo, cada qual apresentada com uma técnica de animação diferente: a dela, computadorizada, já a dele (referindo-se as narrativas e descrições das aventuras vividas pelo pequeno príncipe), fora realizada em stop motion

    Pois bem, e justamente do paradoxo impensável, nasce uma grande amizade, um encontro especial, atrelado de signos, significados afetivos que são invisíveis e inesperadas a quaisquer idealizações.

    A partir desse encontro, a garota se torna outra. Agora, já se tornara maior do que era, e menor do que a mãe idealizou. A identidade racional e rigorosa que constituía a garota vai se perdendo a cada novo encontro com o aviador amigo. Assim como um rizoma que não começa nem conclui, ela se coloca no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. Para Deleuze,

    [...] a árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o vero “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e... “Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”. (Deleuze e Guattari, 1995, p. 37)

    Houve, no encontro da garota com amigo, força suficiente para torná-la outra. Uma menina regulada, ordenada e controlada pelo bom senso que para Deleuze (1974) é a afirmação que em todas as coisas há um sentido determinável e único, consolidava na idealização da mãe sobre seu futuro, entretanto através desse encontro, a menina se constitui outra, enquanto devir. Contesta o modelo da mãe como “cópia”, uma vez que se descobre como devir.

    O devir que para Deleuze,

    “Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos.” (Deleuze & Parnet, 1998, p.23)

    Existe, portanto, uma destituição de uma garota através de um acontecimento que passa pela linguagem (na relação com seu vizinho e nas narrativas advindas do Pequeno Príncipe) que contribuem para as incertezas pessoais, e para constituição, de um sujeito outro. Notadamente quando se trata de experiências lúdicas, vividas e apresentadas pelo velho aviador, cuja essência é por assim dizer, tocar o inimaginável.

Quando brincar ressignifica o viver e o “estado” do tempo

    Ao longo dos encontros repletos de novos sentidos e situações paradoxais, e através da história contada por seu novo amigo, sobre um Pequeno Príncipe que conhecera quando era um aviador a garota descobre a importância do brincar, do imaginar, do descobrir e investigar para além dos conteúdos exaustivos dos livros, dos testes.

    Sente em sua alma, o valor da amizade, e aprende uma das lições mais importantes de sua vida: a plenitude das experiências transcendem aos limites do tempo corrente, operando em outra lógica. A amizade com o velho vizinho, permitira que a garota saísse de sua rotina, profundamente perfilada e aprisionada pela metódica sequência de tarefas e estudos. De algum modo, o encontro acontecimento e o inebriante brincar, promoveram um certo estado de libertação dessa “corrida contra o tempo”, o inexorável tempo, que os gregos denominaram como Kronos 2, que estivera sempre tangenciando a vida da menina.

    O tempo Kronos, conhecido como o tempo cronológico ou sucessivo. Tempo presente e limitado, que se afere (ou mede) o acaso dos corpos como causas e o estados de suas misturas como profundidade (Deleuze, 1974). É o tempo que escraviza, captura, que nos torna presos aos paradigmas de infâncias, de futuro promissor, de idealização de conceitos socialmente determinados e consequentemente dita um protótipo de sujeito. É o tempo “adulto” de ser.

    Contudo, se por um lado constata-se a existência escravizadora do implacável tempo Kronos (fortemente presente na rotina da menina), por outro, o encontro com o vizinho é um divisor de águas no viver (cotidiano) da garota. Trata-se de experiências múltiplas, associadas ao desejo que a desloca à outra percepção da existência, isto é, a uma nova forma de experimentar o tempo, cuja marca é percebida pela intensidade, e não mais pela quantidade (cronômetro).

    Tempo esse incompreensível à maioria dos adultos, entretanto, marca indelével do universo pueril, uma vez que é “invisível aos olhos”, e só ocorre no pensamento, certo “estado de espírito”. Um tempo sem regras (preexistente), sem vencedores, um tempo-devir, o qual também os gregos denomina de Aion.

    O Aion é o passado e o futuro essencialmente ilimitados, que recolhem à superfície os acontecimentos incorporais enquanto efeitos. Para tanto, recorremos a Deleuze, que nos ajuda numa melhor compreensão:

    Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, é o instante sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos que compreendem, uns em relação aos outros, o futuro e o passado. (Deleuze, 1974, p.193)

    Inspirados pelo pensamento deleuziano, podemos conceber o tempo Aion como o jogo ideal, que não pode ser realizado por um homem ou por um deus. Ele só pode ser pensado e, mais ainda, pensado como não sendo. Mais precisamente: ele é a realidade do próprio pensamento. É o inconsciente do pensamento puro. Nas palavras do autor:

    E se tentarmos jogar este jogo fora do pensamento, nada acontece e, se tentarmos produzir resultados diferente da obra de arte, nada produz. É pois o jogo reservado ao pensamento e à arte, lá onde não há mais vitórias para aquilo que souberam jogar, isto é, afirmar e ramificar o acaso, ao invés de dividi-lo para dominá-lo , para apostar, para ganhar. E este jogo que não existe a não ser no pensamento, e que não tem outro resultado além da obra de arte, é também aquilo pelo que o pensamento e a arte são reais e perturbam a realidade, a moralidade e a economia do mundo. (Deleuze, 1974)

    O pensamento puro, que não fora capturado e por vez ramifica em qualidade. A qualidade do brincar, do criar, resignificar as regras onde cada lance inventa suas regras, e que carrega consigo sua própria regra (Carneiro, 2015). Longe de dividir o acaso em números de jogadas realmente distintas, o conjunto das jogadas afirma todo o acaso e não cessa de ramitificá-lo em cada jogada.

    Vejamos que, entre o “combate” de Kronos e Aion, ao longo da tessitura descrita na história da menina, quando recorrera aos domínios da famigerada rotina de estudos, para lograr êxito no ingresso do Colégio tão ambicionado por sua mãe, sob a égide do discurso (do futuro) promissor, as tentativas fracassaram. O Kronos, sozinho, parece não ser suficientemente bom para plenitude da infância, empobrecendo-a em grande parte.

    Conquanto, quando recorrestes as experiências ancoradas e subsidiadas por meio do brincar (da imaginação, dos pensamentos criativos), a garota consegue o ingresso na tão sonhada escola. Ao que tudo indica, o encontro com o velho aviador deixaria marcas perenes na menina, ao passo que não mais recorreria aos caminhos “previsíveis” para responder aos anseios externos, seja qual for sua natureza. O fato é, que as aventuras e peripécias do Pequeno Príncipe, narradas e desenhadas pelo velho amigo, foram esteio para viver a dimensão Aion e de maneira especial, a plenitude da infância possível.

    De algum modo, a potência dos encontros nos permitem enxergar, face a um espelho, um pouco do quem somos, mas de sobremaneira o que nos falta. Ou, dito de modo mais simples, nas palavras do Pequeno Príncipe: “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.” (Antoine de Saint Exupéry, citado por Varela, 2010. p. 7)

Notas

  1. Obra cinematográfica, cujo lançamento ocorrera em 20 de agosto de 2015, dirigido por Mark Osborne, nacionalidade francesa, classificado como: Fantasia, com duração de 110 minutos.

  2. Kronos, que na filosofia grega era descrito como o velho, o senhor do tempo e das estações. Kronos era a pressão das horas ordenadas pelo relógio e pelos dias, dos meses e anos determinados pelo calendário. Cruel e tirano, Kronos controlava o tempo desde o nascimento até a morte, perpassando todos os eventos com um transcurso comum, real, visível e rotineiro. Trata-se, portanto, daquele tempo ditador, burocrático, que nunca parece suficiente; que escraviza, preocupa e estressa.

Bibliografia

  • Carneiro, K. T. (2015). Por uma memória do jogo: a presença do jogo na infância das décadas de 20 e 30. 273f. Tese (Doutorado em Educação Escolar). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara.

  • Deleuze, G. (1974). Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.

  • Deleuze, G. y Guattari, F. (1995). Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia. Volume 1. São Paulo: 34.

  • Deleuze, G. y Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.

  • Larrosa, J. (1999). Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando.

  • Varela, H. (2010). À procura de uma identidade: modelos pedagógicos e curriculares em educação de infância. 175f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de Coimbra, Coimbra. Consultado em 22, Novembro, 2015 de http://repositorio.utad.pt/handle/10348/550

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