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Sobre os corpos pensantesna Educação Física escolar

Acerca de los cuerpos pensantesen la Educación Física escolar

 

Licenciado em Educação Física pela Universidade Nove de Julho UNINOVE

Especialista em Psicomotricidade pelas Faculdades Metropolitanas Unidas FMU

Professor de Educação Física no ensino fundamental

Oriel de Oliveira e Silva

oriel-17@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este breve texto teve como objetivo apresentar a proposição segundo a qual os corpos atuantes na Educação Física na escola - desde que a motricidade humana seja entendida dentro da proposta de Manuel Sérgio, como movimento intencional de transcendência, o Homem seja compreendido como ser criativo, como o disse Fernando Savater, e o corpo seja concebido conforme a tese de Merleau-Ponty são corpos pensantes.

          Unitermos: Corpo. Corpos pensantes. Motricidade humana.

 

Resumen

          Este breve texto tuvo como objetivo presentar la proposición según la cual los cuerpos actuantes en la Educación Física en la escuela- desde que la motricidad humana sea entendida dentro de la propuesta de Manuel Sérgio, como movimiento intencional de transcendencia, el Hombre sea comprendido como ser creativo, como lo dijo Fernando Savater, y el cuerpo sea concebido de acuerdo con la tesis de Merleau-Ponty son cuerpos pensantes.

          Palabras clave: Cuerpo. Cuerpos pensantes. Motricidad humana.

 

Recepção: 05/04/2016 - Aceitação: 09/05/2016

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 21 - Nº 216 - Mayo de 2016. http://www.efdeportes.com/

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    A idéia de escrever o presente texto nasce de um intenso e ininterrupto processo de reflexão sobre o corpo em conexão com a consciência ou, se assim se quer, acerca da consciência em associação com o corpo, no contexto específico da Educação Física na escola. Surge como fruto de observações por mim realizadas em minha experiência docente, mas também de leituras e releituras de artigos e livros que tratam do tema. Seu objetivo é apresentar as principais idéias que se produziram em minha consciência ao longo dessa atividade intelectiva.

    A primeira reflexão que faço é a respeito da consideração que geralmente se faz a respeito do corpo em relação com a consciência. Dizem que, desde Descartes, hegemonizou-se a soberania da mente em relação à matéria. De fato, em todo Ocidente (pelo menos), a superioridade da razão se impôs ante qualquer outro entendimento que reconhecesse e exaltasse o valor do corpo - ao menos até Merleau-Ponty e Friedrich Nietzsche, filósofos que começaram a questionar com mais veemência as proposições idealistas. Contudo, atribuir a hegemonia racionalista unicamente aos escritos cartesianos pode significar uma interpretação limitada do fenômeno. Afinal, já em Platão, está presente a idéia de prescindibilidade do corpo na experiência existencial. Além disso, a estratégia de “docilizar os corpos”, denunciada por Foucault, também contribuiu para o descrédito do corpo. Assim, parece mais razoável a compreensão de que, conjuntamente com a proposição cartesiana, tanto a tradição platônica quanto a tentativa de controlar as ações dos sujeitos pela “docilização dos corpos” colaboraram na inferiorização do corpo ante a alma, a razão, a mente ou a consciência1.

    O cotidiano escolar parece confirmar esta tese. Basta ver que o corpo geralmente é tolhido, paralisado ou controlado nas carteiras de sala de aula ou nos deslocamentos pelo espaço da escola (organização por filas rígidas), para garantir a ordem (dimensão política – Foucault), ou é entendido como prescindível para a aprendizagem e a inteligência, quando, por exemplo, são proferidos discursos de que “só se pensa nas ‘matérias intelectuais’ – Matemática, Línguas, História, Ciências etc.” (dimensão epistemológica ou da teoria do conhecimento – Descartes e Platão).

    A partir deste entendimento - contrapondo-se principalmente ao dualismo cartesiano e à tradição platônica, mesclando um pouco de Merleau-Ponty e Manuel Sérgio, com um bocado do que propõe atualmente a Neurociência, proponho que os corpos que atuam na Educação Física na escola são “corpos pensantes”. O que seria um “corpo pensante”? O “corpo pensante” é o corpo humano, que, na relação com o mundo, percebe tudo o que neste mundo (espaço-temporal) se situa ou acontece - ou seja, as coisas, os fatos, as transformações, as pessoas, as comunicações entre elas - e, com base nestas percepções, a fim de correspondê-las, emite idéias, expressas (traduzidas) oral ou gestualmente, formuladas no plano da consciência, tão logo o entendimento da situação (percepção) se consolida2. Ora, se pensarmos no que mais fazemos cotidianamente, constataremos que o que mais realizamos é justamente isto: agimos para resolver situações problemas das quais tomamos consciência graças à relação corporal com o mundo. Toda ação nasce duma e numa situação, sendo, portanto, contextualizada e orientada para um fim. Nesta perspectiva de “corpo pensante”, poderíamos até dizer que, apenas de estar vivo e agir no mundo, o Homem apreende, porque, percebendo, age de maneira intencional e consciente – oral ou gestualmente, e, agindo, percebe outra situação que dá início à produção de uma nova ação. Esse processo dialético de percepção-ação acontece sem que notemos, ininterruptamente, em todos os momentos do cotidiano. Mas, não há dúvidas de que ele tende a se intensificar, como em poucos espaços-tempos, nas aulas de Educação Física que estejam orientadas pela noção de movimento humano como ação criativa produzida para resolver “problemas” inéditos, noção esta que aproxima o movimento humano (central na Educação Física) da condição de ser humano.

    Essa proposição ganha força na medida em que se baseia nas considerações de Manuel Sérgio, que, inspirado em Arnold Gehlen, diz ser o Homem alguém morfológica e anatomicamente não especializado, que, ciente de suas carências, utiliza o potencial - que o torna humano – de agir intencionalmente no mundo, buscando a transcendência. Não à toa é que Sérgio trata a motricidade humana como “movimento intencional de transcendência (ou superação)”.

    A propósito desta não especialização biológica inata do ser humano, mencionada por Manuel Sérgio, o excelente filósofo espanhol Fernando Savater, que também fortalece a proposição apresentada no presente texto, reflete sobre a condição humana, mais especificamente acerca do poder que o Homem possui de, a despeito de todas essas limitações impostas pela não especialização, ser criativo, criador, produtivo, produtor de cultura e de meios para assegurar sua existência. Em linha de raciocínio semelhante à de Manuel Sérgio, Savater vai dizer que os animais inferiores ao Homem são seres pré-programados, quer dizer, seres que já nascem prontos, com um modo e um local de agir no mundo determinados a priori pela natureza. Ou seja, a pesar de seres com uma especialização biológica maior do que a do Homem (como voar, morder, escalar, viver no meio aquático etc.), animais que não possuem liberdade da autoprogramação. É esta realidade que diferencia o Homem do animal:

    Indeterminados en lo referente a hocicos, músculos y zarpas, los seres humanos tenemos en cambio un órgano máximamente desarrollado y con múltiples prestaciones muy sofisticadas: el cerebro. Aunque mal dotados en lo que respecta a pautas de conducta instintivamente codificadas y en la adecuación a un medio ambiente concreto, estamos provistos del instrumento más apto para improvisar e inventar ante las urgencias de lo real. El cerebro es el órgano específico de la acción: conoce, delibera, valora y decide. Funciona acicateado por nuestras carencias e insuficiencias, para buscarles remedio y aprovecharlas a nuestro favor. Los seres vivos que más han evolucionado en el perfecto acomodo a un tipo de vida y a un nicho ecológico han avanzado por un camino que ya no pueden cambiar de rumbo ni buscar vías alternativas. No necesitan reflexionar porque siempre aciertan automáticamente... hasta que cambian las circunstancias y entonces fallan del todo. El ser humano, desde su imprecisión, comete constantes errores pero aprende de ellos y va corrigiendo permanentemente sus derrotes vitales. Porque la otra función del cerebro es almacenar la información adquirida a partir de la experiencia, codificarla en símbolos abstractos y transmitirla por medio del lenguaje. La vida humana perpetúa el rasgo característico de la infancia: el aprendizaje, la educación permanente. No estamos determinados a vivir en ningún paisaje ni en ningún clima, pero sí a convivir con semejantes que nos enseñen y ayuden. El medio ambiente natural específico de los seres humanos es la sociedad (Savater, 2003, p. 25 - 26).

    Las pautas vegetativas y los instintos son programas, las rosas y las panteras están programadas para ser lo que son, hacer lo que hacen y vivir como viven. Los seres humanos estamos programados también, pero en una medida diferente: nuestra estructura biológica responde a programas estrictos, pero no así nuestra capacidad simbólica (de la que dependen nuestras acciones). Digamos que los seres humanos estamos programados en cuanto seres, pero no en cuanto humanos. Recibimos con nuestra dotación genética la capacidad innata de llevar a cabo comportamientos no innatos (Savater, 2003, p. 19 – 20).

    De acordo com Manuel Sérgio e Fernando Savater (diria, também, com Vitor da Fonseca), o Homem, pois, diferentemente do animal, por ter desenvolvido - ao longo da filogênese - o órgão da racionalidade (o cérebro), foi e é capaz de, apesar de toda sua carência imposta pela limitação anatômica e morfológica, agir intencionalmente no mundo, constituir cultura, criar hábitos, sistematizar símbolos, formular éticas, relacionar-se... enfim, garantir meios substitutivos de assegurar a existência. Aliás, mais do que assegurá-la, preenchê-la de significado. O Homem foi e é capaz e livre, portanto, de ser criador de sua própria história, definidor de seu próprio destino, construtor do mundo que possui como ideal. O que o define, então, é o princípio da autoprogramação, mencionada por Savater (2003, p. 19), ao sugerir que o elemento essencial da definição do homem deve ser não sua origem na filogênese (como o faz o darwinismo), mas seu princípio:

    Si de lo que realmente se trata es de encontrar no el origen del hombre (en su sentido físico, zoológico), sino su principio (o sea aquello a partir de lo cual comienza a ser hombre), sin duda tal principio está en la acción, es decir en una intervención en lo real, que selecciona, planea e innova. La acción – en el sentido humano y humanizador que aquí le damos al término – es lo contrario del cumplimiento de un programa [...].

    Desse modo, considerando o Homem como ser proprietário de uma autoprogramabilidade, que garante lhe garante o potencial de liberdade e criatividade, a criança que atua na aula de Educação Física na escola pensa o tempo todo, desde que, é claro, as atividades propostas estimulem tal exercício do pensamento e o movimento humano seja entendido como ação que o Homem realiza para transcender-se e para solucionar demandas que o ambiente lhe impõe durante a vida. Numa brincadeira de pular corda, numa partida de Futebol, num jogo de Queimada ou de Pega-pega, em todas essas circunstâncias, os corpos agem com consciência, e, por esse motivo, não se pode negar que estas atividades favorecem a construção da inteligência. Obviamente, quanto mais repetitivas elas forem, mais necessário se fará remodelá-las, reformá-las, para que os novos desafios imponham a obrigatoriedade de as crianças reorganizarem o raciocínio e criarem novas formas de agir para resolver os novos problemas que se colocarão. Afinal, parece razoável a definição de aprendizagem como “a produção de programas motores, ou padrões de comportamento ou ação, adequados e eficientes para solucionar situações problemas que geraram a demanda pela criação desses programas”. Para cada jogo ou brincadeira, a criança cria padrões de ação (movimentos) que ela descobre, com a experiência, serem eficientes para levá-la à obtenção dos resultados que ela espera alcançar na atividade. Conforme esta prática se repete sem variação em sua dinâmica, o estímulo à produção de novos padrões de ação se estabiliza e, assim, a criança entra no “piloto automático”. Mas, quando colocada diante de uma variação na regra ou dinâmica de um jogo ou brincadeira anteriormente conhecido ou vivenciado, ela se vê “obrigada” a assimilar a nova situação problema e, tendo como base as possibilidades de ação que a regra da atividade determina, a criar novos padrões de ação que sejam eficientes para levá-la ao êxito na atividade. É desse modo que os “corpos pensantes” se constroem nas aulas.

    Tal proposta de Educação Física se distancia das práticas que não necessariamente são, mas que inegavelmente tendem a ser alienantes, como a repetição de movimentos esportivos, técnicos e padronizados demonstrados pelo Professor. Discípula de Manuel Sérgio, Anna Maria Feitosa vai dizer a este respeito que:

    Quando realizamos um movimento proposto por outra pessoa sem sabermos os objetivos, ou a intenção interna desses objetivos – (muitas vezes nem o proponente pensou nisso), estamos atuando de forma mecânica ou reificante. Não há neste movimento a dimensão humanizante, muito pelo contrário, este tipo de actividade distancia o ser humano de si próprio, aliena-o e prepara-o para ser mais facilmente manipulável e manipulado (Feitosa, 1999, p. 69).

    Inspirada neste entendimento é que vai acontecer a proposição de situações que gerem a demanda pela criação de novas ações adequadas e eficientes para solucionar problemas inéditos. Esta concepção combina com o conceito de “corpo pensante”, que entende as crianças que agem na Educação Física escolar como seres que, em sua atividade de relação corporal com o mundo, constroem consciência em relação a si mesmos, aos outros, às coisas, numa palavra, ao mundo, e o potencial de atuar nesse mundo de maneira criativa, inventiva, inovadora, original.

    Por fim, partindo da hipótese de que a desvalorização do corpo perante a alma, a razão, a consciência ou a mente se deveu a uma mescla do que disse Platão e Descartes com o fenômeno que Foucault chamou de “docilização dos corpos”, e baseado nas idéias de Merleau-Ponty, de Manuel Sérgio e da Neurociência atual, este texto propôs que os corpos que atuam na Educação Física escolar tendem a ser “corpos pensantes”, desde que as aulas se desenvolvam pautadas na noção de motricidade humana apresentada por Manuel Sérgio e no entendimento de que o Homem é um ser criativo, que se autoprograma. O entendimento é de que esses “corpos pensantes”, se colocados diante de situações problemáticas, que para serem resolvidas requerem a criação de novos padrões de ação (ou, nos termos de Savater, programas), tendem a se construir e a se manifestar na Educação Física escolar. Por isso, o trabalho com esse componente deveria orientar-se pela proposição de situações que aproveitam e otimizam a condição de “corpo pensante”, que cada criança traz consigo.

Notas

  1. Apesar de o pensamento cartesiano, a tradição platônica e a “docilização dos corpos” terem conjuntamente contribuído para a desvalorização do corpo, a participação de cada um aconteceu numa dimensão específica. A desvalorização do corpo, em Descartes, dá-se mais na esfera epistemológica ou da teoria do conhecimento, na consideração a respeito de como o Homem conhece. Em Platão, parece ocorrer mais numa dimensão metafísico-teológica, na consideração de como o Homem se salva, de como ele (ou sua alma) permanece na eternidade (embora haja também uma consideração a respeito de como o Homem atinge a sabedoria, que poderia associá-lo à dimensão epistemológica). A “docilização dos corpos”, por sua vez, acontece numa dimensão mais política, como estratégia de controlar as pessoas e manter o poder sobre elas.

  2. É como um corpo que, atravessando a rua, visualiza e percebe que um carro vem em sua direção, em alta velocidade, e, por isso, precisa agir intencionalmente para solucionar tal situação problema (não ser atropelado), correndo mais rápido, voltando para o local onde iniciou sua travessia, saltando, ou lançando mão de qualquer outra atitude que julgue adequada. 

Bibliografia

  • Savater, Fernando (2003). El valor de elegir. Barcelona: Editora Ariel.

  • Sérgio, Manuel; Do Rosário, Trovão; Feitosa, Ana; Almada, Fernando; Vilela, Jorge; Tavares, Viegas (1999). O sentido e a acção. Lisboa: Instituto Piaget.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 21 · N° 216 | Buenos Aires, Mayo de 2016  
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