O sujeito criativo do contexto periférico El sujeto creativo del contexto periférico Subject creative peripherals context |
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*Doutora em Educação (UNISINOS/RS). Mestre em Educação (UPF). Especialista em Fundamentos Teórico-Metodológicos do Ensino (UNICRUZ). Integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social – Mestrado – da UNICRUZ. Coordenadora do Núcleo de Conexões Artístico-Culturais (NUCART) e Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Humanos e Pedagógicos, ambos da UNICRUZ. Coordenadora do Projeto “Cidadania e Democracia Viabilizadas através da Sétima Arte”, que conta com o apoio PAPCT/UNICRUZ. Artista Plástica **Mestrando do Curso de Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Universidade de Cruz Alta e Assessor de Comunicação do Projeto Profissão Catador II |
Maria Aparecida Santana Camargo* Diones da Silveira Biagini** (Brasil) |
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Resumo Este trabalho pretende mostrar que a poesia da periferia pode tornar-se um produto, através do trabalho informal. A partir daí, relata-se uma experiência prática sociocultural do catador que se tornou poeta e sobrevive da arte. A realização deste estudo torna-se fundamental, uma vez que as práticas sociais da periferia precisam ser descobertas e divulgadas verificando as suas relações com o trabalho informal e a sobrevivência das pessoas de baixa renda, em meio a uma sociedade capitalista que impõe a busca por alternativas viáveis e criativas para a sua própria sustentação. Unitermos: Poesia. Criatividade. Trabalho informal. Práticas socioculturais.
Abstract This work aims to show that poetry the periphery can become a product, through informal work. From there, we will report a sociocultural practice experience of the collector who became poet and art survives. This study is fundamental, since the social practices of the periphery must be discovered and disseminated so we can verify their relations with the informal work and the survival of the poor in the midst of a capitalist society that imposes the search for viable and creative alternatives for their own support. Keywords: Poetry. Creativity. Informal work. Socio-cultural practices.
Recepção: 25/03/2016 - Aceitação: 29/04/2016
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 21 - Nº 216 - Mayo de 2016. http://www.efdeportes.com/ |
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1. Introdução
Este trabalho visa demonstrar que a poesia da periferia pode tornar-se um produto, através do trabalho informal. Para isso, inicialmente traz-se a trajetória histórica da poesia no mundo, demonstrando a sua relação com a periferia, abordando a relação dos fanzines, com a crítica social e a contracultura. O método que orientou o desenvolvimento deste estudo embasou-se em pesquisa bibliográfica, no relato de ex-catador poeta, que criou um fanzine de poesia e o reproduziu artesanalmente para comercialização. Obtiveram-se as informações através de entrevista e diálogos informais. Além disso, analisou-se a capa do livreto e uma de suas poesias. Evidencia-se, dessa forma, que se uma prática sociocultural for utilizada de maneira informal e criativa poderá ser uma alternativa viável para o sustento dos agentes que trabalham com a arte. Existem fortes indícios de que a poesia tenha surgido após as primeiras povoações dos primitivos na terra, que intercalavam o canto e o ritmo ao trabalho e preparo da farinha nos pilões. Além disso, naquela época os povos pintavam nas rochas, como por exemplo, na gruta de Lascaux, na França. Entre o trabalho, as caçadas e as pinturas, a sociedade arcaica foi transformando-se até a atualidade.
Verifica-se que a poesia e a prosa, assim como outras culturas foram separadas de acordo com os princípios metafísicos e não dialéticos. E as dissociações poéticas não pararam por aí. Segundo Morin (1998), houve duas revoltas históricas da poesia, a primeira foi a do romantismo, principalmente o de origem alemã. Representou a revolta contra a invasão da prosaide, do mundo utilitário, do mundo burguês, que se desenvolveu no início do século XIX. A segunda revolta foi a do surrealismo. Em resumo foi desprosaizar a vida cotidiana. De lá pra cá, a poesia no mundo foi transformando-se e tomando formas. Diante disso, faz-se necessário apontar quais foram suas perspectivas e relações com a literatura marginal com a contracultura e com os fanzines no Brasil.
“O primeiro movimento da literatura marginal surge no Brasil na década de 1970, em resposta ao momento político vivido naquela época, na qual a censura exercida pelo regime ditatorial motivou os jovens a procurar meios alternativos para a expressão da arte e ideais” (Pinagé e Albuquerque, 2014, p. 317). Deduz-se que a poesia crítica teve papel determinante para a disseminação da contracultura, que nasce como uma alternativa independente e questionadora, onde aponta os ditos contraditórios, que são produzidos por aqueles que estão à margem de um sistema centralizado e conservador e que encontraram na poesia marginal, uma forma de manifestarem-se criticamente. Nesse sentido observa-se que esta poesia marginal possuiu relação histórica com a literatura negra oriunda da periferia: literatura negra e periférica possuem estreitos laços de parentescos, fundados nas origens e lutas sociais, problemas comuns e processos sócio históricos vividos por seus produtores.
Para Silva (2011, p. 02), dizer que um poeta é marginal equivale a chamá-lo ainda de “sórdido” e maldito (por causa da noção de antissocial), mas esses adjetivos soam mais como elogio porque viraram sinônimos de alternativo e independente. Ou seja, o sentido deixa de ser pejorativo e se inverte a favor de quem recebe o rótulo, muito embora alguns dos assim chamados prefiram outros rótulos ou não aceitem nenhum. Contudo, compreende-se que tudo aquilo que não estivesse de acordo com os padrões daquela época, seja na questão visual e estética dos sujeitos ou na arte expressa pelos artistas, passou a ser chamado de contracultura, conceito esse que assim como o de literatura marginal, são indispensáveis para entendermos estas relações com a poesia, que também está interligada com o surgimento dos fanzines, no início da década de 1940. Conforme Pinagé e Albuquerque (2014, p. 318):
A origem da palavra fanzine veio dos Estados Unidos, criada em 1941, por Russ Chauvenet. Sua denominação surge da abreviação de outras duas palavras que são: Fan, adivindo de Fanatic, que significa fanático ou fã, e Zine, redução de Magazine, que quer dizer revista sendo a junção das duas palavras traduzida como “revista de um fã”. Vinculado diretamente ao público interessado em histórias de ficção cientifica, os primeiros fanzines são produzidos de forma amadora pelos leitores das revistas profissionais sobre esta temática.
Percebe-se que a origem dos fanzines, da literatura marginal e da contracultura, estão diretamente relacionadas. Definir esses termos não é uma tarefa fácil, pois são amplos e mereceriam um grande estudo a respeito. Contudo, aqui neste trabalho, apenas são apresentados de forma introdutória, para que os leitores possam perceber a origem desses aspectos que se entrelaçam com o objeto do presente estudo. Para concluir essas “pinceladas” históricas, traz-se uma reflexão sobre a produção e a mutação do processo fanzinesco. Na ótica de Magalhães (2003, p. 03):
[...] São não só veículos de grupos de fãs, mas também de grupos que não possuem acesso a grande imprensa Os novos autores de quadrinhos têm nos fanzines praticamente o único espaço para publicação de sua obra, visto que o mercado não disponibiliza veículos que dêem vazão ao fluxo da produção dos autores nacionais, muito menos os trabalhos dos novos artistas. A concentração da indústria cultural, em particular das grandes editoras, no eixo Rio de Janeiro/São Paulo é mais um agravante para a veiculação de expressões regionais. Dessa forma, os fanzines são frutos também de grupos marginalizados cultural e geograficamente, bem como porta-vozes de um tipo de contracultura que denominamos genericamente de underground, alternativa ou independente.
Vê-se que os novos artistas da contracultura, possuem desafios, que passam pela questão da criatividade, a qual pode ser concebida como fator fundamental para a criação de ferramentas alternativas ao sistema convencional de concentração da indústria cultural, que mesmo com a chegada da internet, ainda continua dominando e ditando novas tendências no mundo das artes.
2. A criatividade, o trabalho informal e a cultura da periferia
A criatividade e o enfoque psicológico passaram a ser estudados de maneira mais a profundada nos últimos 50 anos, pois até então eram escassos os materiais encontrados sobre estas temáticas. Na primeira metade do século XX, esses assuntos eram evitados, por serem considerados abstratos, misteriosos, perturbadores e desagregadores do pensamento e do método científico. Conforme May (1975), felizmente essa atitude tem sofrido ligeira mudança nos últimos 20 anos, mas a criatividade continua a ser enteada da psicologia. Ainda verificou-se, segundo este mesmo autor, que a criatividade é o processo de criar algo novo, ou seja, os que criam uma nova realidade. É nesse contexto que, por exemplo, está inserida a arte dos poetas, os quais, segundo May (1975), “alargam as fronteiras da consciência humana”. Entende-se, portanto, que se os humanos forem criativos de forma consciente, logo a expressão de sua arte, terá que passar por um processo criativo, que passa pela questão do trabalho e de suas experiências, ou seja, não basta ser inventivo, tem que ter coragem para criar e executar, pois entre a teoria e a prática, existe um longo caminho a ser trilhado.
A criatividade é a capacidade de transformar, reciclar e recompor inerente ao processo de conhecimento aliado à imaginação. Uma pessoa criativa é aquela que está em sintonia com seu próprio interior, podendo captar do inconsciente elementos capazes de auxiliá-la na elaboração de sua obra. Para que tal processo se realize plenamente, a consciência precisa estar livre de censuras, de maneira a poder ter acesso a essa forma de conhecimento que não passa pelo racional e que está mais ligada ao lado intuitivo, uma vez que criatividade e intuição se originam no hemisfério direito do cérebro, domínio não-verbal, sede da imaginação e das sensações. Chama-se a atenção para o fato de que existem pessoas nas quais essa tensão se transforma em conflito emocional, com raízes mais profundas, impedindo-as de criar, pois estão de tal forma voltadas para o seu interior, que dificilmente conseguem se expressar (Pavani e Machado, 2003, p. 18-19).
Entretanto, verifica-se que nem todos os sujeitos se utilizam de seu poder criativo, pois possuem bloqueios muitas vezes ocasionados pelo próprio ambiente que faz com que as pessoas não consigam ter insights, ou seja, as “sacadas criativas”, que podem, por exemplo, colocar um produto cultural nas feiras, nas praças, nas bibliotecas, nos saraus culturais, entre outros espaços de manifestação artístico-cultural. O contexto ambiental afeta a produção criativa. Grau em que favorece a geração de novas idéias; extensão em que encoraja e dá o suporte necessário ao desenvolvimento das idéias criativas, possibilitando a geração de produtos tangíveis (Sternberg e Lubart, 1996). Faz-se, por isso, uma reflexão, sobre como criar, de modo informal, em meio a um ambiente não propício, baseado em empecilhos econômicos e sociais. Nesse sentido, Oliveira (2005, p. 13) afirma que:
A informalidade proporciona uma nova dinâmica de vida, de comportamento e de concepção de trabalho. Constitui uma criatividade do homem, uma alternativa possível no mercado de trabalho, cuja capacidade de absorção se encontra saturada no seu processo formal. O discurso extraído das entrevistas com os trabalhadores do setor informal gira em torno da questão da sobrevivência. Eles procuram, inventam formas de trabalhar e de ganhar dinheiro.
Assim, a informalidade possui relação direta com a criatividade, ou seja, o sujeito tem que criar alternativas viáveis em meio um sistema de mercado excludente, que ainda seleciona as pessoas por idade, etnia, gênero e capacidade “intelectual”, não se dando conta que ao fazerem isso estão abrindo “mão” do processo de inclusão social, ou seja, preferindo dar privilegiar uma classe média que já nasce com acesso aos meios de produção, mas que nem sempre sabe produzir, pois tem que terceirizar o serviço com a classe trabalhadora, a qual para não ser cabresteada prefere ir à busca do trabalho informal.
Visualiza-se que o sistema capitalista no qual se está inserido, não proporciona muitas opções aos trabalhadores, ou seja, as “escolhas” são dos atores sociais, mas para que sejam bem executadas, os trabalhadores precisam ser criativos, tanto no trabalho individual ou coletivo, pois passam a gerir suas próprias ações. Nesse contexto, o capital destinado para a alimentação do trabalhador informal pode ser o mesmo a ser utilizado para o “troco” do consumidor ou para compra de matéria prima. É preciso ter o capital de giro e, ao mesmo tempo, lembrar que existem necessidades humanas para a sobrevivência. Esta matemática está colocada no cotidiano do trabalho.
Na ótica de Marx e Engels (1996), o trabalho significa o conjunto de atividades realizadas pelo homem para viver, sejam para a subsistência material, sejam para as necessidades do espírito. Os trabalhadores informais tornaram-se vítimas do capitalismo, pois em meio a rápidas mudanças tecnológicas e uma “enxurrada” de informações que o sistema os impõe, devem estar antenados e flexíveis, também ao contexto político, social e econômico. Para Lima (2010, p. 07), o trabalhador do informal, mais que um excluído do mercado, seria então um empreendedor por necessidade. Depende de seus investimentos no negócio que desenvolve para sobreviver, da predisposição em inovar, trabalhar duro, como probabilidade de sucesso. Transformar a situação de mercado desfavorável, em seu contrário.
A partir daí, entende-se que, para que tenha este diferencial no produto final, os sujeitos do contexto periférico não podem ser somente artistas, pois a sociedade contemporânea os desafia para que também sejam produtores culturais. No entendimento de Nascimento (2012), na prática poética, esses moradores da periferia tornam-se também produtores culturais, com atribuições de sentido próprias do que seja fazer poesia e reconhecer-se poeta.
3. O catador que se tornou poeta: a cultura criativa que sobrevive na periferia
A história do Poeta das Ruas de 58 anos – não é igual à de outros “Jorges”, pois possui elementos diferenciados, seja pelo seu contexto social ou pela sua história de vida, que começou a ter uma boa relação com a arte ainda na adolescência, através do trabalho de artesanato nas praças do Rio de Janeiro. De lá pra cá, após ter conhecido diversos Estados brasileiros, teve uma curta passagem pela cadeia, quando foi preso em 2002, aos 46 anos de idade, após ter sido abordado pela polícia portando uma pequena quantidade de Canabis Sativa, na época o suficiente para sua prisão. Foi na penitenciária que o poeta deu continuidade a sua relação com a cultura, pois de dia participava dos cursos de formação em artesanato e a noite lia livros, os quais o estimularam a escrever poesias com críticas sociais.
Após ter a sua liberdade concedida em 2005, o artista em questão, resolveu relacionar o conteúdo que escreveu na cadeia, com as composições punks de sua banda, a Discípulos da Miséria, na qual também foi vocalista. Com o final do quinteto musical, Golly, começa a catar material reciclável nas ruas para sustentar o vício do álcool e suas despesas diárias de casa. Morador cruz-altense das proximidades da conhecida Volta da Pera, no Bairro Ferroviário, Golly, passou a freqüentar os postos de gasolina no turno da noite para realizar a catação. E foi a partir daí que começou a levar consigo uma caneta e um caderno, os quais junto com sua bicicleta passaram a ser seus eternos companheiros nas madrugadas da vida urbana. Fazendo poesia junto à calçada ou nas mesas dos bares, este, passou a ser chamado de Poeta das Ruas. Com uma caligrafia muito elogiada pelos apreciadores de uma boa poesia crítica e às vezes romântica, o poeta passou a receber alguns trocados pelas poesias imediatas, que fazia e entregava aos casais de namorados ou boêmios (a) solitários.
Ao passar dos meses, o artista da periferia foi evoluindo o seu trabalho e logo o Complexo do S, passou a ser a poesia mais solicitada pelo público, que ficara impressionado por ela ser escrita somente com esta letra em suas iniciais. Foi então que certa vez decidiu fazer uma fotocópia de suas poesias escritas à mão, que passaram a ganhar forma de livreto. Com alguns grampos e com muita criatividade, originalidade e autenticidade, tornou-se assim um produto cultural que atualmente é vendido a cinco reais pelas ruas de Cruz Alta. Com mais de 500 cópias vendidas em quatro meses, o cotidiano do poeta já não é mais o mesmo, pois dedica as suas manhãs para a criação de poesias, à tarde realiza as impressões e à noite vende os livretos, que muitas vezes são encomendados de uma noite para a outra e que atualmente estão na quarta edição. O agora empreendedor precisa preocupar-se com o capital de giro, para a próxima impressão, controle esse que aprendeu durante o curso incompleto de técnico de contabilidade que realizou quando cursara parte do Ensino Médio.
O Poeta das Ruas, atualmente não cata mais material reciclável, não usa mais drogas, pois assim cria com mais pureza, coerência e definição. O artista que veio do underground, hoje produz a sua própria arte e não precisa mais ser excluído por alguns empresários que o negaram emprego por ser ex-detento, afrodescendente e oriundo da periferia. O poeta do gueto atualmente tem conta em banco e foi literalmente liberto pela poesia que o fez reviver. Se antes precisava abordar o público para vender seu livreto, atualmente as pessoas o procuram no calçadão ou nos postos de gasolina da região central, onde fazem encomendas do produto. O poeta que almoçava no Restaurante Popular, pelo custo de dois reais, atualmente faz suas refeições em lanchonetes privadas ao preço de 8 a 10 reais. Sua saúde mental e física melhorou e, inclusive, ganhou massa corporal. De ex-detento a músico e de catador autônomo a poeta, esse artista da periferia tornou-se empreendedor das idéias críticas e libertadoras.
Percebe-se que este ator social tem postura de autoestima, mantêm a “cabeça” erguida para uma sociedade que valoriza as questões estéticas dos sujeitos. Postura essa que talvez traga de sua experiência de vocalista, como front man, o que está na frente do palco, o que atrai todos os olhares, o que deseja ser visto e ouvido, quem sabe tenha começado a construir aí a sua performance, pois a rua é o principal palco para a expressão de sua arte. Ali é o seu campo de interação com as outras pessoas é o momento de estar na vitrine, seja no sol forte do verão ou no frio do inverno, o poeta está sempre bem “agasalhado” para enfrentar o cotidiano das ruas. Ao longo de sua história Golly impactou a classe dominante com seu visual punk na década de 1980. De rocker a poeta, talvez ainda busque ser percebido pela sociedade, como se estivesse gritando constantemente: eu existo, eu sou, esta é minha arte de rua, que ao longo de suas caminhadas ou pedaladas aos poucos vai sendo divulgada e conhecida em Cruz Alta/RS.
O poeta não se vitima perante a uma classe dominante excludente, talvez por acreditar no potencial criativo de sua poesia como produto contracultural, em prol da sua sobrevivência mental e financeira. Seja pelos suas características pessoais ou pela sua personalidade efervescente, Golly, é um artista cruz-altense, assim como Érico Verissimo e Saint - Clair Cemin, que ganharam o mundo com a sua arte. Vê-se que o poeta é das ruas, mas nem por isso deixa de manter o estilo elegante, que, segundo ele, é como o de um príncipe. A estética é um meio de experimentar, de sentir em comum e é, também, um meio de reconhecer-se, (Maffesoli, 1987). Nesse sentido, compreende-se que o Poeta das Ruas, se reconhece como um ser criativo, com uma identidade. Segundo Roche (1998), a roupa, linguagem do corpo e dos desejos, interessa tanto às pulsões contraditórias e traduz tanto as necessidades através de códigos diversos, que ela acaba tendo um papel muito forte na constituição de uma identidade. Diante disso, nota-se que a autenticidade do estilo do poeta o identifica. Conforme Souza (2001), para que a vestimenta exista como arte é necessário que entre ela e a pessoa humana se estabeleça aquele elo de identidade e concordância que é a essência da elegância. Contudo, nota-se que ao ser elegante, o poeta das ruas esta em harmonia com si mesmo e assim também é mais aceito na sociedade moderna, pois ao longo da história no mundo a vestimenta sempre remeteu a uma linguagem simbólica, no encontro desta idéia Souza (2001, p. 125), argumenta que a vestimenta é uma linguagem simbólica, um estratagema de que o homem sempre se serviu para tornar inteligível uma série de idéias como o estado emocional, as ocasiões sociais, a ocupação ou o nível do portador.
Compreende-se que a questão do vestir, vai muito além da estética visual, pois a história nos conta que a vestimenta foi utilizada para distinguir uma classe social de outra, ou seja, os sinais gerados pelas roupas ainda insistem em querer determinar aquele que tem maior ou menor poder aquisitivo, o que na prática não passa de um estereótipo pré-estabelecido e não determinante no contexto da sociedade moderna, que passou a ter acesso a novas vestimentas, nos últimos anos, através do crédito disponibilizado aos consumidores.
Suas poesias são publicadas como o manuscrito original e inclusive, com letra bem legível, em caixa alta, onde mantém a autenticidade e diferencial, características estas tão admiradas pelas pessoas, que apreciam o seu trabalho e convivem com a realidade das ruas. Embora agrade quem compreende a característica e intenção do seu trabalho, às vezes, conforme o autor, algumas pessoas lhe perguntam se não seria mais interessante vender os fanzines digitados, com tiragem de impressora, pois segundo elas, ficariam esteticamente mais belos. Como explica Camargo (2009, p. 81), as regras da qualidade estética são determinadas pelas classes dominantes, as quais ditam os critérios de avaliação e as estéticas “oficiais”. Entretanto, não existe nenhum critério de avaliação que permita declarar que determinados valores estéticos são mais válidos que outros, embora, no jogo de forças estabelecido pelas relações de poder, determinados valores estéticos se imponham mais do que outros.
Contudo, verifica-se que esta poesia rompe barreiras da estética oficial e talvez por isso, choque os olhos de uma classe dominante que esta acostumada com a imposição dos produtos da indústria cultural. Segundo o autor esta ação poética foi transcrita no cotidiano urbano das calçadas, entre idas e vindas dos transeuntes, ou seja, têm vivência e essência de sobrevivência. Realidades estas que muitas vezes passam despercebidas aos olhos de quem não quer ver os seres “invisíveis” da sociedade, que vivem em situação de rua.
4. Considerações finais
Este trabalho visou enfatizar o quanto a poesia da periferia pode tornar-se um produto cultural, reconhecido por outras classes sociais, através do trabalho informal. Para que se pudesse chegar a esta conclusão buscou-se referenciar o estudo, inicialmente, trazendo dados da trajetória histórica da poesia no mundo e dos fanzines no Brasil, demonstrando a sua íntima relação com a contracultura, periferia, literatura marginal e negra. Além disso, através do embasamento teórico, discutiram-se as questões de criatividade e informalidade, as quais quando relacionadas surgem como alternativas para os atores sociais da periferia, que são vítimas de uma sociedade e mercado excludente que os coloca às margens do sistema cultural, que ainda é dominado pelas grandes corporações, sejam elas midiáticas ou industriais.
Apresentaram-se, ainda, dados sobre o relato de um ex-catador poeta, que criou fanzines de poesia e o reproduziu artesanalmente para a comercialização, através de uma entrevista e diálogos informais com o Poeta das Ruas de Cruz Alta/RS. A partir daí aponta-se como principal consideração, que se uma prática sociocultural for utilizada de maneira informal, mas criativa, poderá ser uma alternativa viável para o sustento dos agentes periféricos que trabalham com a contracultura. Obvio que esse é um caso isolado, específico, que não significa que os inúmeros poetas da periferia poderão sair por aí, vendendo suas poesias, porque daí saturaria essa modalidade autogestão. O presente caso serve para exemplificar e para refletir sobre uma maneira de se auto sustentar utilizando a criatividade.
Compreende-se que a realização desta fanzine poética só se tornou possível quando foi aplicada de forma organizada e planejada, caso contrário o processo criativo não seria suficiente para colocar o produto em prática, visto que os fatores sociais, econômicos, psicológicos e organizacionais podem influenciar em ações informais. “Em certo sentido, ainda se vive numa ditadura artística, num apartheid estético muito grande. Por isso busca-se uma independência artística, sem desprestigiar o que nós próprios produzimos, porque temos capacidades que nos habilitam para isso” (Camargo, 2009, p. 134). Enfim, aponta-se, neste estudo, o quanto os artistas da periferia têm que vencer desafios, que não são só culturais, mas também estéticos e sociais, que desde cedo são enfrentados todos os dias nas favelas, bairros e ruas brasileiras, para sua inserção na sociedade. Portanto, cabe aqui ainda considerar que 80% da população brasileira (Canto e Victorelli, 2012, p. 71), vive na periferia, esta que produz arte cotidianamente e que vem libertando-se cada vez mais dos preconceitos históricos, sociais, através das conquistas democráticas e de direitos humanos que têm avançado nos últimos anos.
Bibliografia
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Canto, C.; Victorelli, V. (2012). Sarau Do Binho: um recanto no caos do asfalto. Revista Raça Brasil, São Paulo, Escala, edição 166, ano XV, maio.
Lima, J. C. (2010). Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, Porto Alegre, v. 12, n. 25, set./dez.
Maffesoli, M. (1987). O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Magalhães, H. (2003). A mutação radical dos fanzines. In: Anais do XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação. Belo Horizonte: UFPB. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/23855420395572684142017768791080460345.pdf. Acesso em: 23 mar. 2016.
Marx, K.; Engels, F. (1996). O manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra.
May, R. (1975). A Coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Morin, E. (1998). Amor, Poesia e Sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil.
Nascimento, E. P. (2012). É tudo nosso! Produção cultural da periferia paulistana. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo.
Oliveira, G. S. de. (2005). Artesanato: criatividade, informalidade e trabalho. In: Anais do III Seminário Nacional de Trabalho e Gênero. Goiás: UFG. Disponível em: https://strabalhoegenero.cienciassociais.ufg.br/up/245/o/GERUZA.pdf. Acesso em: 15 mar. 2016.
Pavani, C. F.; Machado, M. L. B. (2003). Criatividade: atividades de Criação Literária. 1. ed. Porto Alegre, RS: EdUFRGS.
Pinagé, C. de. A. C.; Albuquerque, G. A. dos S. (2014). Fanzines no Brasil e em Manaus: um Breve Histórico. Revista Estação Londrina, UEL, v. 12, p. 316-331, jan.
Roche, D. (1998). História das coisas banais. Lisboa: Difel.
Silva, M. A. M. da (2011). A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000). Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Estadual de Campinas.
Souza, G. de M. e (2001). O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Schwarcz.
Sternberg, R. J. e Lubart, T. L. (1996). Investing in Creativity. American Psychologist, Washington DC, v. 51, n. 7, p. 677-688, jul.
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