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Ensaio sobre as lateralidades: proposta de nomenclaturas 

para os níveis de diferenciação ‘direita-esquerda’

Ensayo acerca de las lateralidades: propuesta de nomenclatura para los niveles de distinción “derecha-izquierda”

 

Licenciado em Educação Física pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE)

Especializando em Psicomotricidade pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU)

Professor de Educação Física no ensino fundamental I

Oriel de Oliveira e Silva

oriel-17@hotmail.com
(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A diferenciação “direita-esquerda” é comumente tratada como “lateralidade”. Mas esse termo é muitas vezes empregado para fazer referência à dominância lateral ocular, auditiva, manual e pedal, que cada um dos seres humanos apresenta. Por isso, o termo “lateralidade” gera uma importante ambigüidade. A fim de abordá-la criticamente e esboçar uma superação desse problema conceitual, este ensaio buscou apresentar os níveis de diferenciação “direita-esquerda” e sugerir, baseado na proposta de sistema psicomotor de Vitor da Fonseca, na terminologia própria da anatomia e na lógica da etimologia, nomenclaturas para referir-se a esses níveis. A partir de uma análise das principais diferenciações que a criança faz de “direita” e “esquerda”, é possível vislumbrar quatro níveis dessas noções: o da lateralidade egocêntrica bihemisférica; o da lateralidade egocêntrica transmediana; o da lateralidade altercêntrica; e o da espacialidade mutável. Conclui-se com um convite para novos debates em torno do tema.

          Unitermos: Psicomotricidade. Lateralidade. Noção “direita-esquerda”.

 

Resumen

          La distinción “derecha-izquierda” a menudo es tratada como “lateralidad”. Pero este término es muchas veces utilizado para referirse a la dominancia lateral del ojo, del oído, de la mano y del pie, que todos los seres humanos presentan. Por ello, tal término origina una importante ambigüedad. Buscando abordarla críticamente y esbozar una superación de dicho problema conceptual, este ensayo ha tenido el objetivo de presentar los niveles de distinción “derecha-izquierda” y sugerir, basado en la propuesta de sistema psicomotor humano de Vitor da Fonseca, en la terminología propia de la anatomía y en la lógica de la etimología, nomenclaturas para referirse a estos niveles. Haciendo análisis de las principales distinciones que el niño hace de “derecha” e “izquierda”, es posible vislumbrar cuatro niveles de estas nociones: el de la lateralidad egocéntrica bihemisférica; el de la lateralidad egocéntrica transmediana; el de la lateralidad altercéntrica; y el de la espacialidad mutable. Se concluye con una invitación para nuevos debates acerca del tema.

          Palabras clave: Psicomotricidad. Lateralidad. Noción “derecha-izquierda”.

 

Recepção: 28/09/2015 - Aceitação: 13/11/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 210, Noviembre de 2015. http://www.efdeportes.com/

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1.     Considerações iniciais

    A importância de saber diferenciar o lado direito do lado esquerdo, para o ser humano, é incontestável. Para dominar a leitura e a escrita – e utilizar competentemente esses dois recursos, garantindo sua inserção na sociedade letrada – ou para, em situações cotidianas, orientar-se no espaço - conseguindo localizar-se e deslocar-se autonomamente pelas ruas do bairro ou da cidade, e interpretar corretamente os dados de um mapa -, é fundamental que o sujeito tenha muito bem desenvolvida a noção do que fica à direita e do que se situa à esquerda. A essa noção, comumente dá-se o nome de “lateralidade”. Fonseca (2012), por exemplo, fala em “lateralidade” (num nível mais elementar dessa capacidade) e em “direcionalidade”1 (num nível mais elevado dessa condição), para referir-se à diferenciação de “esquerda” e “direita”.

    Contudo, desde o ponto de vista deste ensaio, essa nomenclatura (“lateralidade”) apresenta ambigüidade, materializada principalmente na medida em que Rosa Neto (2002), Lucena et al. (2010) e Oliveira (2013) falam em “lateralidade” para remeterem-se à dominância lateral do olho, da mão e do pé. Ora, Rosa Neto (2002), Lucena et al. (2010) e Oliveira (2013) falam em “lateralidade” mencionando um fenômeno do desenvolvimento humano (determinação do lado dominante), que Fonseca (2012), por sua vez, vai chamar de “lateralização”. Ou seja, não existe uma definição clara, exata, precisa, para referir-se à capacidade de diferenciar “direita” e “esquerda”: alguns autores – entre os quais se inclui Vitor da Fonseca - chamam-na de “lateralidade”, nos níveis mais elementares dessa noção, e de “direcionalidade”, em níveis mais complexos, mas tal termo - “lateralidade” - ao mesmo tempo é usado por outros, como Rosa Neto (2002), Lucena et al. (2010) e Oliveira (2013), para fazer menção às dominâncias laterais. Portanto, falar em “lateralidade” para referir-se à distinção de “direita” e “esquerda”, pode gerar confusões, por haver diferentes entendimentos do que é “lateralidade”.

    Além disso, o emprego de “lateralidade”, para referir-se à diferenciação de “direita” e “esquerda”, pode ser genérico e vago, pois existem diferentes níveis dessa noção. Talvez, seja adequado pensar em uma nomeação específica para cada um desses níveis. É justamente isto que o presente trabalho visa realizar. Fonseca (2008) e Fonseca (2012) já apresentam avanços nesse sentido, ao dizerem que existem níveis de “lateralidade” e de “direcionalidade”. No entanto, essas categorizações ainda parecem insuficientemente trabalhadas.

    Desse modo, este ensaio objetiva apresentar os diferentes níveis da noção de diferenciação de “direita” e “esquerda” e sugerir – baseado na proposta de sistema psicomotor humano, elaborada por Vitor da Fonseca, nas características de cada nível, na lógica da etimologia e na terminologia própria da anatomia – nomenclaturas particulares para cada um desses estágios. 

2.     Noção do corpo, estruturação espacial, lateralidade e direcionalidade: os fatores psicomotores e conceitos diretamente conectados às noções de diferenciação de “direita” e “esquerda”

    Vitor da Fonseca é considerado um dos principais estudiosos da Psicomotricidade. Responsável pela proposição do SPMH (Sistema Psicomotor Humano), Fonseca (2012) argumentou que tal sistema seria o sustentáculo do movimento humano, quer dizer, por detrás de qualquer ação, haveria o funcionamento do SPMH. O sistema psicomotor é formado por sete fatores psicomotores (que Vitor da Fonseca chama também de subsistemas), a saber: tonicidade; equilibração; lateralização; noção do corpo; estruturação espaço-temporal; praxia global; e praxia fina. Além desses fatores, o SPMH possui sete propriedades, quais sejam: totalidade; interdependência; hierarquia; teleologia; equifinalidade; interatvidade e adaptabilidade.

    Não sendo essencial para o desenvolvimento deste trabalho, e para não provocar digressões desnecessárias, os pormenores dessas propriedades não serão objetos de análise. Tampouco serão explicados detalhadamente os fatores psicomotores, exceto dois, que serão abordados tendo-se um foco maior sobre eles: a noção do corpo e a estruturação espacial2, devido à relação direta que esses subsistemas mantêm com as noções de diferenciação de “direita” e “esquerda”.

    Pois bem, resumidamente, a noção do corpo, na perspectiva de Fonseca (2012), diz respeito: à tomada de consciência e à nomeação das partes que compõem o corpo; à percepção dos movimentos que cada um desses segmentos pode realizar; à percepção das sensações proprioceptivas e somestésicas; e à compreensão de que o corpo é dividido em dois lados por uma linha mediana virtual, no plano sagital (Fonseca, 2012). À medida que a noção do corpo se constitui e é ampliada, aumenta-se a consciência do "eu": conforme toma consciência do seu corpo, a criança toma consciência de que é alguém no mundo. Assim, a partir dessa noção, e da compreensão de si como sujeito no mundo, a criança é capaz de entender o espaço extracorporal. Por isso, através da noção do corpo, o sujeito primeiro reconhece e distingue “direita” e “esquerda” em si próprio, e só depois é capaz de projetar e localizar esses lados no outro, considerando o posicionamento e o ponto de vista dessa pessoa no espaço.

    Esse entendimento fica claro em Fonseca (2008, p. 243 - 244), segundo quem:

    As relações e as direções espaciais desenvolvem-se primeiro em relação com a própria criança, consubstanciando uma componente subjetiva da imagem corporal, daí a sua dimensão egocêntrica, e só depois desenvolve relações e referências objetivas proximais e distais, alocêntricas3 e geocêntricas entre os objetos e o seu corpo. De uma localização e identificação emergida do corpo, espacialmente egocêntrica e subjetiva, a criança passa posteriormente a uma localização e identificação espacialmente alocêntrica-geocêntrica e objetiva, confirmando também as concepções de Paillard (1991), Piaget (1956), Gesell (1962), Gesell e Amatruda (1974)....

    Fonseca (2012, p. 181) também corrobora essa idéia, ao dizer:

    Sem a noção do corpo reconhecida na sua lateralidade interna e externa não é possível estabelecer relações corretas com o mundo em redor. Tem de se dar no interior do corpo a conscientização da noção de direita e de esquerda para projetá-la fora do organismo e, conseqüentemente, para a orientar direcional e espacialmente.

    E, ainda, ao explicar que: 

    As relações, as posições e as direções espaciais vividas e localizadas egocentricamente hierarquizam-se em relações e direções espaciais situadas objetivamente. Partindo da dimensão intraespacial, a criança vai ontogeneticamente elaborando uma dimensão extraespacial e interespacial, apropriando-se obviamente de sistemas espaciais mais complexos e distanciados de sua própria localização. A criança localiza-se a si própria antes de se localizar no espaço ou de localizar objetos no espaço. Localiza os objetos em relação a si própria e, posteriormente, localiza cada objeto sem precisar referi-los corporalmente... (Fonseca, 2012, p. 184). 

    Fonseca (2008) aprofunda suas explicações, quando afirma, ainda, que a lateralidade se desenvolve intrassomaticamente, abrangendo a percepção dos dois lados do próprio corpo (colocar a mão direita na orelha direita, por exemplo) - divididos por uma linha mediana, no plano sagital - e o “cruzamento” desses dois lados (colocar a mão direita na orelha esquerda, por exemplo) - ocorrido graças à tomada de consciência da linha mediana -, e que, se essas lateralidades básicas não se consolidam, a direcionalidade tampouco pode ser estabelecida:

    A capacidade de elaborar projeções ou extensões espaciais, de captar formas e figuras, de copiar e desenhar, de colorir, traçar e cortar, de inferir ou deduzir relações espaciais, de mentalmente construir campos de interação de variáveis, etc., fica, obviamente, limitada e imprecisa, se o domínio das componentes da lateralidade não tiver subsistemas interiorizados de primeira ordem... ou de segunda ordem, que incluem já o domínio da linha média do corpo.... (Fonseca, 2008, p. 245).

    Portanto, a noção do corpo é o ponto de partida para a construção da estruturação espacial4 complexa. Quanto ao sentido do desenvolvimento da noção de “direita” e “esquerda”, não há dúvidas de que Fonseca (2008) e Fonseca (2012) o explicam correta e fielmente. Rosa Neto (2002) e Oliveira (2013) concordam com eles, na medida em que entendem que: em primeiro nível (intraespacial), a criança identifica “direita” e “esquerda” em si mesma; em segundo nível (extraespacial), em outrem; e, em um nível mais superior (interespacial), distingue “direita” e “esquerda” nas relações entre objetos localizados no espaço, e percebe a mutabilidade desses lados, conforme o ponto para onde se está voltado.

    Ao construir a noção de “direita” e “esquerda” no outro e perceber as relações desses lados entre objetos localizados no espaço, bem como a mutabilidade desses lados segundo o posicionamento do corpo ou do objeto no ambiente, a criança atinge o nível da estruturação espacial. Tal fator psicomotor está ligado, portanto, à direcionalidade –para Fonseca (2008, p. 244), a direcionalidade é uma: “...noção original...e que se projeta já em outro fator psicomotor relevante, ou seja, a estruturação espaço-temporal...” -, e à compreensão dos dados relativos ao espaço, os quais são dinâmicos, relativos, mutáveis e extremamente abstratos.

    Abstratos, dinâmicos, relativos e mutáveis porque não são permanentes como no caso do espaço egocêntrico (intraespaço). A criança, ao ter que identificar “direita” e “esquerda” em si mesma - que já não é tarefa fácil - sabe que o seu lado direito e o seu lado esquerdo são sempre os mesmos, independentemente da posição de seu corpo. Já ao ter que fazer essa identificação em outra pessoa, sabe que, segundo a posição desse sujeito, o lado direito e o lado esquerdo podem variar. Da mesma forma, é relativa à localização da “direita” e da “esquerda” de objetos localizados no espaço, pois, numa situação hipotética,em que estão posicionadas uma bola azul, uma bola roxa, uma verde e uma vermelha - exatamente nessa seqüência - a definição do que está à direita e do que se situa à esquerda é variável, ao partir-se da constatação de que a bola roxa está à direita da verde, mas, ao mesmo tempo, à esquerda da azul (esse julgamento poderia até ser contestado, se o ponto de vista em relação às bolas fosse contrário: poder-se-ia dizer que a bola roxa está à direita da azul e à esquerda da verde). Tal mutabilidade permitiria uma série de relações e combinações. Da mesma forma, ao ter que perceber para onde está a “direita” ou a “esquerda” num determinado espaço, será necessário projetar esses lados conforme a posição do corpo: se alguém, por exemplo, está voltado para o norte, sabe-se que à sua direita encontra-se o leste e à sua esquerda o oeste; mas se essa pessoa faz um giro de noventa graus para a esquerda, agora à direita está o norte e à esquerda o sul.

    Enfim, a diferenciação de “direita” e “esquerda” ao nível daquilo que Fonseca (2008) chama de direcionalidade mostra-se extremamente complicada e só pode ser construída com qualidade na medida em que as lateralidades básicas (noções construídas intrassomaticamente) estão bem consolidadas.

3.     Uma proposta de nomenclaturas para os níveis de diferenciação de “direita” e “esquerda”

    Viu-se que a noção do corpo e a estruturação espacial são os fatores psicomotores que permitem à criança perceber-se e organizar-se no espaço. A noção do corpo propicia que o sujeito construa o reconhecimento da “direita” e da “esquerda” em si mesma, tomando consciência de que seu corpo possui dois lados e de que um é o “direito” e outro é o “esquerdo”. Possibilita ainda a construção da noção de que esses lados podem transcender a linha mediana do corpo, invadindo um o “território” do outro, sem perder sua “identidade”. Em suma a noção do corpo possibilita a construção das noções que Fonseca (2008) trata como “lateralidade”.

    A estruturação espacial, por sua vez, permite que o indivíduo construa aquilo que Fonseca (2008) chama de “direcionalidade”, projetando as noções egocêntricas, presentes nas “lateralidades”, numa perspectiva altercêntrica, quer dizer, centrada no outro. Além disso, permite que essa projeção seja feita mais sofisticadamente, geocentricamente, identificando o que está à direita e o que está à esquerda de objetos dispostos num espaço, e a percepção da mutabilidade dos lados de desses objetos ou de alguém, segundo a alteração do ponto de vista desse sujeito ou das coisas. Nesse sentido, pode-se dizer que existem quatro níveis da noção de diferenciação de “direita” e “esquerda”.

    Primeiro - e o nível que tende a ser o mais longo - uma noção ensimesmada, extremamente primitiva, diretamente relacionada à constituição da noção do corpo, à qual se pode dar o nome de lateralidade egocêntrica bihemisférica, em que a criança recebe os estímulos de outrem que domina as noções de diferenciação mais complexas - e que nomeia e indica os lados para o aprendiz - e, acumulando experiências nessas situações em que o mentor orienta, vai se dando conta de que seu corpo é dividido - no plano sagital - por uma linha medial, tendo, portanto, dois hemisférios: um à esquerda e outro à direita. Ao perceber essa divisão em dois lados, e ouvindo e vendo, permanentemente, o professor, ou quem lhe orienta, mostrando e dizendo qual é o lado direito e qual é o lado esquerdo, a criança vai internalizando esses conceitos e, pouco a pouco, passa a nomear os lados corretamente. Ao chegar a esse patamar, pode-se dizer que ela está no auge da lateralidade egocêntrica bihemisférica e a entrada no próximo nível torna-se iminente. Mas esse percurso é longo e tende a se desenvolver demoradamente, principalmente se os estímulos são dados em qualidade e quantidade inadequadas. Nesse nível, a intervenção do professor é crucial.

    Normalmente, na lateralidade egocêntrica bihemisférica, até que se chegue ao topo desse nível, a criança vai ter dificuldades para identificar e nomear (conceituar) “direita” e “esquerda” e compreender que esses lados podem se relacionar sem abrir mão de sua “identidade”. Nesse estágio, mesmo com as orientações constantes do professor, a criança confunde a identificação e nomeação dos lados “direito” e “esquerdo” em seu próprio corpo, não sendo capaz de entender que os lados são fixos e permanecem sendo o que são. Para ela, parece difícil compreender que a “direita” é sempre “direita” e a “esquerda” é sempre “esquerda”, e que, no próprio corpo, isto não se altera.

    Justamente pela dificuldade em compreender que os lados são fixos e constantes, a criança encontra dificuldades para entender que, quando há uma extrapolação da linha mediana, na qual, por exemplo, a mão direita toca o pé esquerdo, a mão direita continua sendo “direita” e não deixa de pertencer ao lado “direito” do corpo. Existe uma limitação na compreensão de que o lado direito pode transcender o plano sagital, invadindo o lado esquerdo do corpo (e vice-versa), sem perder sua condição de pertencente ao lado “direito”, ainda que esteja à esquerda da linha mediana do corpo. Mas no momento em que a criança demonstra essa percepção, pode-se dizer que ela está apta a ingressar e consolidar a segunda noção, que, assim como a primeira, é também ensimesmada e ligada à noção do corpo, embora um pouco mais elaborada: trata-se da lateralidade egocêntrica transmediana.

    Neste nível, no qual a criança já tem firmada a noção de que a sua “direita” o será sempre e a sua “esquerda” idem, ela é capaz de reconhecer que seu lado direito pode extrapolar a linha mediana invadindo o lado esquerdo do corpo, e de fazer esses “cruzamentos” sem grandes dificuldades. Ao atingir a lateralidade egocêntrica transmediana, a criança demonstra ter se apropriado das lateralidades egocêntricas e dá um passo importante rumo à construção das noções mais complexas de distinção “direita-esquerda”: em pouco tempo, sendo, às vezes, até despercebidamente, ela consegue alcançar o terceiro nível: o da lateralidade altercêntrica.

    Neste novo nível, a criança é capaz de se colocar no lugar do outro e identificar o lado direito e o lado esquerdo de alguém que está à sua frente, “cara a cara”. Com o tempo e as experiências acumuladas, e, sobretudo, se as lateralidades egocêntricas estiverem bem estabelecidas, ela entra num nível mais elevado, ao que se pode dar o nome de espacialidade mutável,5 no qual o sujeito está apto a perceber que a definição do que está à “direita” ou à “esquerda” depende do ponto onde está situado o objeto ou de onde se situa o sujeito que está fazendo a análise.

    O quadro abaixo sistematiza esses níveis, indicando suas características principais e os estágios a que pertencem:

 

Lateralidade egocêntrica bihemisférica

Lateralidade egocêntrica

transmediana

Lateralidade altercêntrica

Espacialidade mutável

Dificuldades da criança no início da noção

A criança confunde “direita” e “esquerda”, mesmo que, previamente, o adulto tenha indicado e verbalizado um e outro lado. Além disso, por não ter consolidado essa noção, apresenta inconstância na identificação dos lados, em situações de diferenciação distribuídas ao longo de uma semana (num dia, identifica; no outro, parece ter esquecido qual lado é qual).

Se a lateralidade egocêntrica bihemisférica foi bem consolidada, as dificuldades serão mínimas. Na verdade, o que haverá são alguns titubeios antes de identificar e nomear cada lado nos “cruzamentos”.

A criança, principalmente no início do nível e se não teve uma boa estruturação das lateralidades egocêntricas, tende a “espelhar” nas identificações (ao ficar de frente para outra pessoa, ela acha que a mão esquerda dessa pessoa é à direita, apenas porque sua mão direita [própria] está do mesmo lado).

A criança apresenta algumas confusões ou têm de pensar muito, antes de dizer o que está à direita ou à esquerda do quê, sobretudo quando o número de objetos envolvidos na identificação é elevado.

Comportamento da criança após a aquisição da noção

A criança identifica e nomeia os dois lados, tomando consciência de que eles se conservam, pois são fixos.

Ao consolidar essa noção, a criança começa a projetar e identificar os lados no outro.

Identifica, sem ter que pensar muito, os lados em uma pessoa que está à frente, ou mesmo distante, ausente (numa foto ou desenho, por exemplo).

Consegue perceber que as definições do que está à “esquerda” e do que está à “direita” é relativa, variável e dependente do posicionamento do objeto considerado e da pessoa que faz a identificação.

Papel do professor

O professor atua verbalizando e indicando os lados no próprio corpo da criança e propõe situações de exploração, percepção e nomeação dos dois lados do corpo, em movimentos envolvendo diferentes partes do corpo: pé direito e pé esquerdo; mão direita e mão esquerda; olho direito e olho esquerdo; orelha direita e orelha esquerda, etc..

O professor atua estimulando o aluno a fazer vários cruzamentos. Quanto maior a variabilidade de “cruzamentos”, mais rapidamente se consolida essa noção, e mais facilidade a criança terá nos próximos níveis.

O professor atua estimulando o aluno a identificar, em situações dinâmicas, os dois lados em outra pessoa e a justificar porque o lado direito dela está para um lado e o seu está para outro. Normalmente, quando a criança sabe responder esta questão, significa que consolidou a noção de lateralidade altercêntrica.

O professor atua propondo identificações em situações dinâmicas e variadas, explorando vários planos, eixos, direções e perspectivas.

Nível correspondente em Fonseca (2008)

“Lateralidade”

“Lateralidade”

“Direcionalidade”

“Direcionalidade”

Estágio proposto no ensaio

4.     A instabilidade inerente à construção das noções de lateralidade egocêntrica bihemisférica e de lateralidade altercêntrica

    Dos quatro níveis acima apresentados, o primeiro e o terceiro (os primeiros de cada estágio) normalmente se mostram mais dificultosos, porque as crianças tendem a confundir os lados, mesmo que, momentos antes, tenham aparentemente assimilado onde fica a “direita” e onde se situa a “esquerda”. Como se tivessem sido tomadas por uma amnésia, elas titubeiam e se equivocam quando tentam localizar um e outro lado, embora nas tentativas anteriores tenham conseguido sucesso. Depois de algumas tentativas, novamente parecem ter compreendido os conceitos. Em seguida, porém, tornam a se equivocar, demonstrando instabilidade. Isto acontece numa mesma aula e também em dias diferentes. É comum uma criança em um dia ter acertado os lados, mas no dia seguinte se atrapalhar nas identificações.

    No caso da lateralidade egocêntrica bihemisférica, tal instabilidade é maior. No caso da lateralidade altercêntrica, logo após as primeiras tentativas as crianças acertam a identificação e mantêm uma constância de acertos, tanto num único e mesmo dia quanto numa seqüência de aulas em dias diferentes.

    As outras noções, quer dizer, de lateralidade egocêntrica transmediana e de espacialidade mutável, não são tão instáveis, porque dependem das noções básicas que lhe antecedem imediatamente. Se a lateralidade egocêntrica bihemisférica estiver satisfatoriamente consolidada, a lateralidade egocêntrica transmediana tenderá a se consolidar rápido e as instabilidades (inconstâncias) bastante comuns na noção anterior serão infreqüentes. Da mesma forma, se a lateralidade altercêntrica estiver bem estruturada, a espacialidade mutável estará bem encaminhada e as inconstâncias nesse nível só virão à tona em situações de ampliação de complexidade (maior número de objetos presentes no espaço). Enfim, os períodos mais críticos são os momentos em que estão se consolidando as noções básicas de cada estágio.

5.     Considerações (pré) conclusivas

    Diante da ambigüidade relativa ao termo “lateralidade”, ora usado para referir-se às noções de diferenciação de “direita” e “esquerda”, ora usado para remeter-se à dominância lateral do pé, do olho, da mão e da audição, bem como da insuficiência que parece ser-lhe inerente, este ensaio buscou apresentar os diferentes níveis da noção de distinção dos lados direito e esquerdo e sugerir nomenclaturas específicas para cada um desses níveis, tendo como base as considerações de Vitor da Fonseca - relativamente à noção do corpo e à estruturação espacial, bem como concernentes aos conceitos de “lateralidade” e “direcionalidade” – a lógica da etimologia e a terminologia própria da anatomia. Assim, sugere-se que existem quatro níveis da noção de “direita” e “esquerda”, sendo que nos dois primeiros níveis, que se enquadram no primeiro e introdutório estágio, a noção é centrada no espaço do próprio corpo, chamadas de lateralidade egocêntrica bihemisférica e lateralidade egocêntrica transmediana, e, nos outros dois níveis, que se enquadram no segundo e aprofundado estágio, centrada no espaço extracorporal, chamadas de lateralidade altercêntrica e de espacialidade mutável. Como complementação, são apresentadas algumas orientações para o trabalho com cada nível. Por fim, há que se destacar a necessidade de prosseguir com estudos e discussões a fim de refinar os conceitos relativos às lateralidades e à espacialidade.

Notas

  1. Fonseca (2008) inspira-se em Kephart, segundo quem, primeiramente, existem dois níveis de diferenciação, sendo eles de primeira e segunda ordem e ligados à noção do corpo, e, posteriormente, o nível da direcionalidade, ligadas à estruturação espacial, que consiste na aplicação da lateralidade intrassomática no espaço externo ao do próprio corpo.

  2. A estruturação espacial diz respeito à percepção e simbolização do espaço onde o sujeito está situado. Fonseca (2012) fala em estruturação espaço-temporal, pois, na prática, toda ação práxica se situa em um espaço-tempo, porém, espaço e tempo possuem propriedades específicas, como as relações espaciais e as direções, no caso da estruturação espacial, ou o ritmo, no caso da estruturação temporal. Daí é que se justifica a dissociação “estruturação espacial” e “estruturação temporal”.

  3. Sinônimo de altercêntrica.

  4. Apesar de, em Fonseca (2008), a identificação de “direita” e “esquerda” no corpo do outro, ser tida como produto da estruturação espacial, em Fonseca (2012), essa diferenciação é relacionada com a noção do corpo. Basta analisar a proposta de observação psicomotora desse fator psicomotor, a qual preconiza que o observador deve avaliar a noção de diferenciação solicitando que a criança identifique os lados no próprio corpo e, em seguida, no corpo do avaliador. Parece que essa noção de diferenciação no outro se situa bem na fronteira entre a noção do corpo e a estruturação espacial.

  5. Espacialidade mutável porque trata-se, neste nível de diferenciação, da percepção da mutabilidade dos lados no espaço, conforme a variação do posicionamento do sujeito ou do objeto no espaço.

Bibliografia

  • Fonseca, Vitor da (2008). Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed.

  • Fonseca, Vitor da (2012). Manual de observação psicomotora: significação psiconeurológica dos fatores psicomotores. Rio de Janeiro: Wak.

  • Lucena, Neide Maria Gomes; Soares, Daniele de Almeida; Soares, Luciana Maria de Morais Martins; Aragão, Paulo Ortiz Rocha de y Ravagni, Eduardo (2010). Lateralidade manual, ocular e dos membros inferiores e sua relação com déficit de organização espacial em escolares. Estudos de Psicologia, Campinas, n. 27, v. 1, p. 3 – 11, jan./mar.

  • Oliveira, Gislene Campos de (2013). Avaliação psicomotora à luz da Psicologia e da Psicopedagogia. São Paulo: Vozes.

  • Rosa Neto, Francisco (2002). Manual de avaliação motora. Porto Alegre: Artmed.

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