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Reflexões sobre classificações e relações 

étnico-raciais na cultura brasileira a partir do futebol

Reflexiones sobre las clasificaciones étnico-raciales en la cultura brasileña a partir del fútbol

Reflections on ethnic and racial classifications and relationships in Brazilian culture from the soccer

 

Antropólogo. Mestre em Psicologia. Doutorando em Educação

Professor História da Cultura e Desenvolvimento Socioeconômico

Faculdade FEAD

Marcel de Almeida Freitas

marcel.fae.ufmg@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O texto analisa aspectos referentes às questões raciais e étnicas na sociedade brasileira a partir de uma perspectiva crítica e pós-estruturalista. Apresenta dados quantitativos baseados em uma classificação étnico-racial alicerçada na dicotomia preconceito de marca versus preconceito de origem discutida por Oracy Nogueira. O universo do levantamento é formado pelos 927 jogadores de futebol que participaram do Campeonato Brasileiro de 2012 e mostra a complexidade das definições étnico-racial no Brasil. Constata-se que relações de poder assimétricas, exclusões de ordem econômica e educacional e racismo velado atuam neste esporte no qual a maioria dos atletas é de origem afrodescendente e ajuda a desmontar o mito de que o futebol no país é isento de discriminação.

          Unitermos: Preconceito racial. Identidade étnica. Futebol brasileiro. Classificações demográficas.

 

Resumen

          El presente trabajo analiza aspectos relacionados con cuestiones raciales y étnicas en la sociedad brasileña desde una perspectiva crítica y postestructuralista. Presenta datos cuantitativos sobre la base de una clasificación étnico-racial basada en la dicotomía prejuicio de apariencia frente al prejuicio de origen discutido por Oracy Nogueira. El universo de la encuesta está compuesta por 927 jugadores de fútbol que participaron en el Campeonato Brasileño de 2012 y muestran la complejidad de las definiciones étnico-raciales en Brasil. Se verifica que las relaciones de poder asimétricas, exclusiones de orden económico y educativo y el racismo implícito intervienen en este deporte donde la mayoría de los jugadores es de origen afro-descendiente y permite cuestionar el mito de que el fútbol en el país está exento de discriminación.

          Palabras clave: Prejuicios raciales. Identidad étnica. Fútbol brasileño. Clasificaciones demográficas.

 

Abstract

          The paper analyzes some aspects about racial and ethnic issues in the Brazilian society from a critical and poststructuralist perspective. It presents quantitative data based in an ethnic-racial classification that the dichotomy appearance prejudice versus origin prejudice discussed by Oracy Nogueira. The group of this survey consists of 927 soccer players who participated of the 2012 Brazilian Championship and shows the ethnic and racial complexity of these definitions in Brazilian. It verified that asymmetrical power relationship, economic and educational exclusions and veiled racism act to this sport that the most of athletes is African descents and it helps to lay down the myth that soccer in Brazil is free of racial prejudice.

          Keywords: Racial prejudice. Ethnic identity. Brazilian soccer. Demographical classifications.

 

Recepção: 29/08/2015 - Aceitação: 02/10/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 209, Octubre de 2015. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    No texto são analisados aspectos referentes às questões étnico-raciais e ao racismo na sociedade brasileira a partir de um ponto de vista corrente nos atuais estudos culturais: crítico e pós-estruturalista. Assinala-se como o conceito ‘raça’ é questionado pela Antropologia e a dicotomia preconceito de origem versus preconceito de aparência (Nogueira, 1985). Apresenta-se como ilustração um levantamento de dados baseado numa classificação racial onde não se considerou somente a ‘cor’ dos sujeitos, mas traços faciais, cabelo etc., tal como procede o senso comum em sociedades onde vigora a lógica do preconceito fenotípico.

    O universo utilizado é constituído pelos 927 jogadores de futebol que participaram do Campeonato Brasileiro de 2012 e mostra a complexidade da formação étnico-racial do povo brasileiro bem como a ambiguidade de termos como ‘negro’, ‘branco’ etc. em uma sociedade multiétnica e onde predomina a categorização racial a partir do fenótipo, não do ‘sangue’, como é o caso do Brasil. Os números também ajudam a questionar a crença de que o futebol é espaço de ‘democracia racial’, a começar pelos dados referentes aos treinadores, posto que nenhum foi classificado como negro a partir de sua aparência.

    A proeminência do negro no futebol brasileiro é construção midiática que tomou força após a Copa do Mundo de 1950 que o Brasil sediou e, diferentemente do que é insistido pelos meios de comunicação, não tem a ver com aspectos biológicos (miscigenação), mas com processos econômicos (exclusão da população negra de outras formas de ascensão social), históricos (o momento de chegada desse esporte no país coincidiu com o fim da escravidão e o êxodo de negros e mestiços para as capitais) e culturais (o sucesso desse esporte coletivo estaria ligado também a outras características da sociedade, ao androcentrismo, por exemplo).

    O fato de que nações como Cuba, com significativa população negra e mestiça, serem inexpressivas nesse esporte e, por outro lado, países como a Itália, com pouca influência de povos africanos, mas com forte tradição patriarcal, se destaquem tanto quanto o Brasil justifica este último argumento que, por dizer respeito às relações de gênero e não às relações étnico-raciais, não será aprofundado neste artigo.

    Um dado pitoresco é que dentre os 40 clubes que participaram do referido Campeonato de 2012 nenhum dos treinadores é negro – considerando-se a classificação típica para o termo, ou seja, ‘preto’ ou ‘mulato’. Portanto, relações de poder, exclusões de ordem econômica e educacional (haja vista que para se tornar técnico de um time de futebol a pessoa deve ser graduada em Educação Física ou Fisioterapia) e até mesmo racismo velado atuam para esse fato, no mínimo ‘curioso’ em se tratando de um país onde a maioria dos atletas é de origem afrodescendente, dado esse que ajuda a desmontar o arraigado mito de que o futebol brasileiro seria isento de preconceito racial.

O conceito de raça

    O termo raça advém do latim ratio, que significa categoria. Nas ciências naturais foi a princípio utilizado na Botânica e na Zoologia (Munanga, 1999). O naturalista sueco Carl Von Linné (1707-1778) o empregou para classificar os vegetais em 24 classes, categorização hoje ultrapassada. Assim como outros conceitos, raça também possui um campo semântico e aspectos sócio-temporais, não é neutro. Na Idade Média essa palavra designava a descendência e a linhagem, um grupo de famílias que possuíam ancestrais comuns e que, em razão disso, acreditava-se, teriam características sociais e físicas comuns.

    Sob o Renascimento o francês François Bernier usa tal vocábulo na sua acepção moderna, classificando a humanidade em grupos fisicamente contrastantes (Munanga, 1999). No século XVII, a nobreza da França passa a utilizar o conceito para se identificar como descendente dos francos – povos guerreiros de origem germânica – enquanto que o povo era identificado como descendendo dos gauleses, os ‘nativos’ que haviam sido submetidos pelos romanos. Tais nobres se consideravam ‘sangue puro’, ao passo que o povo era nomeado pejorativamente como plebe. Com isso, nota-se como o conceito de raça foi transposto da Biologia para justificar relações de dominação entre as classes sociais, relações essas que nada tinham (ou têm) de naturais.

    O contato dos europeus com outros povos – pigmeus, ameríndios, melanésios etc. – traz discussões sobre o conceito de humanidade no século XVIII. Os recém-descobertos seriam humanos como os colonizadores? No iluminismo filósofos e pensadores sociais retomam o conceito de raça das ciências naturais para nomear os não-europeus; com isso abrem caminho para o aparecimento de um novo campo de saber, a História Natural da Humanidade, que mais tarde desembocaria na Antropologia Física (Munanga, 1999). As diferenças entre os povos era uma realidade indubitável e, como tal, suscitava explicação científica. O lado negativo é quando adentram a hierarquização e a desigualdade, o que resvala, geralmente, para a racialização das variações.

    As categorias classificatórias são, assim como todas as palavras da linguagem, arbitrárias e convencionais. Hoje somos todos considerados pertencentes à mesma categoria porque machos e fêmeas da espécie humana são capazes de se reproduzir entre si gerando prole também fértil. Segundo Munanga (1999), no século XVIII a cor da pele é o parâmetro essencial para a divisão das chamadas ‘raças humanas’. Foi a partir daí que a humanidade passou a ser dividida em categorias que até o presente vivem no imaginário coletivo: ‘raça branca’, ‘raça negra’ e ‘raça amarela’. No século XIX foram acrescentados ao elemento cor outros fatores, como o formato do rosto, do nariz, largura dos lábios, tipo de cabelo, formato do crânio etc. Porque esses primeiros cientistas pertenciam à ‘raça branca’ esta foi instituída como a mais evoluída intelectual e culturalmente, teoria que rapidamente se tornou o endosso dos processos de dominação que aconteciam na África e na Ásia. Portanto, tal classificação da humanidade ‘deslizou’ para a raciologia, complexo dogmático pseudocientífico que adquiriu espaço, sobretudo político, no início do século XX.

    A ciência mostra que cor de pele, dos cabelos e dos olhos é determinada pela melanina, fator que corresponde a menos de 1% dos cromossomos que compõem a carga genética humana, ou seja, estatisticamente a cor da pele é critério irrelevante para distinguir os grupos entre si (Pena, 2002). Por outro lado, povos como os negros africanos e os nativos australianos são praticamente ‘da mesma cor’, porém, em outros aspectos são distantes entre si geneticamente. Mas, o que importa aqui é a questão social, posto que dois indivíduos – um do Congo e outro aborígene australiano, por exemplo – podem sofrer idêntico racismo na Europa por serem, socialmente, ‘categorizados’ como negros.

    No século XIX influências da natureza e miscigenações eram negligenciadas ou minimizadas, como aponta Munanga (1999), assim como as similaridades entre as raças. Pesquisas genéticas aprimoradas demonstraram também que duas pessoas consideradas da mesma raça podem estar mais distantes entre si geneticamente do que em relação a outro indivíduo tido como de uma raça diversa. Com efeito, progressos na área de biologia molecular e de medicina genética foram desmontando tal conceito nas ciências naturais, “conceito cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana” (Munanga, 1999, p. 66). Porém, a invalidação científica do termo raça não quer dizer que desapareceram as inúmeras formas de racismo, pois, é sobre as poucas diferenças que as ideologias racistas continuam a se alicerçar para justificar a discriminação dos povos e a segregação das pessoas.

    Em meados dos anos 1940 essas teorias foram resgatadas pelos nacionalismos de extrema direita como o Nazismo, que as usou para eliminar povos considerados ‘nocivos’, como judeus e ciganos. Como qualquer ideologia, essa visão não se sustenta cientificamente, é permeada por relações de poder e estereótipos. Porém, essa é a concepção que o senso comum e os mass media ainda têm de raça: na realidade, uma categoria social. Todo conceito histórico-culturalmente engendrado é originado na estrutural social, nas relações de poder, em crenças, mitos etc., por tal razão as acepções ‘negro’, ‘branco’ e ‘mestiço’ não significam o mesmo em contextos como África do Sul ou Brasil, por exemplo: “o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico” (Muganga, 1999, p. 70).

    Não obstante tenha sido derrocado por geneticistas, o termo raça permanece atuante nas representações coletivas da sociedade até hoje. É a partir das ‘raças sociais’, erigidas a partir de algumas diferenças fenotípicas que os racismos se mantêm. Muitos biólogos anti-racistas sugeriram que a palavra ‘raça’ fosse banida dos dicionários científicos, tal como aconteceu com homossexualismo, porém, isso não seria suficiente para evitar que a sociedade a continuasse usando. Por esse motivo é lícito subscrever tal conceito enquanto realidade político-cultural, visto que persiste como categoria social de dominação e de exclusão. Nesse sentido, pode ser empregada como construção sociológica de análise em ciências humanas, já que este campo se dedica ao estudo de representações, estereótipos, crenças e ideias coletivas em geral e dos seus efeitos.

    Em resumo, na perspectiva científica as variações genéticas e fisiológicas que diferenciam os grupos não permitem falar que uma população relativamente homogênea é mais ou menos evoluída que outra pois tais diferenças não são evolutivas, mas sim adaptativas ao ambiente (Munanga, 1999). Destarte, o fato de a pele escura concentrar mais melanina que a pele clara é mera proteção aos raios solares, ao passo que a pele branca assimila mais facilmente a vitamina D, exigência que os povos que vivem em climas frios tiveram que desenvolver. Assim, não é plausível conceber que tais caracteres adaptativos sejam ‘melhores’ ou ‘piores’ que outros, no entanto, foi a partir e através desses juízos de valores que nasceu o racismo.

O racismo

    Desde meados de 1920 o racismo enquanto ideologia e prática social vêm sendo alvo de diversos estudos e de pouco consenso em sua definição. De acordo com Munanga (1999), teoricamente é uma ideologia essencialista que prega a clivagem das populações humanas em grandes grupos, as raças, contrastando características físicas que elas têm em comum, sendo que tais caracteres sustentariam superioridades/inferioridades de cunho intelectual, cultural e moral. O racismo é a crença na existência de uma escala natural de valores entre os grupos humanos, além de sustentar a existência de um vínculo intrínseco entre comportamentos, práticas culturais e habilidades psicológicas com aspectos físicos e genéticos. Assim, ‘raça’ é um fato social, existe no imaginário popular e tem efeitos – como o preconceito e a discriminação, por exemplo.

    Raça nessa concepção, não se restringe às diferenças, mas inclui desigualdades, sendo que o racista atribui desvantagem aos aspectos físicos, intelectuais, morais e culturais ao grupo racial que não é o seu. Um dos efeitos mais perniciosos do racismo é advogar que características psicológicas e/ou morais de pessoas pertencentes a determinado grupo são resultado de suas características físicas, relação essa vista como irreversível (Munanga, 1999). Com efeito, foi o naturalista von Linné no século XVIII quem primeiro elaborou um modelo de classificação que atrelava caracteres biológicos a uma escala de valores. Seria ‘curioso’, se não tivesse tido consequências trágicas, o fato de Lineu ter relacionado à cor a aspectos morais e à inteligência das pessoas, fenômeno que se perpetua no imaginário coletivo e na mídia, como é o caso de se associar o sucesso do Brasil no futebol à ancestralidade africana.

    Atualmente, qualifica racismo quaisquer atitudes, representações coletivas ou ações que rejeitem, excluam e segreguem pessoas com base em diferenças biofisiológicas hereditárias. Isso alerta para o fato de que o respeito à liberdade de imprensa, por exemplo, podem ser uma armadilha, na medida em que pequenas práticas racistas podem ser vistas não como intolerância, mas como elementos tradicionais de determinado povo ou de humor, no caso da mídia, não sendo percebidos como agressões simbólicas, mas sim como ‘brincadeiras’ ingênuas. Assim, “(...) em nome da identidade cultural de cada povo o racismo se reformula e se mantém nos países da Europa Ocidental contra imigrantes dos países árabes, africanos e outros dos países do Terceiro Mundo” (Munanga, 1999, p. 75).

    Nesse sentido, pesquisas sobre o racismo no presente devem considerar outros modelos de essencialização, o reducionismo histórico-cultural, tal qual o aqui tratado. Não obstante raça não se sustente cientificamente, tal constatação não é suficiente para fazer com que o termo desapareça enquanto categoria mental, social e linguística. Portanto, a tarefa agora é debelar as ‘raças imaginárias’ que ainda povoam o senso comum e a comunicação de massa, já que o ‘novo racismo’ se nutre de noções como etnia e de especificidade cultural, léxicos politicamente corretos. A conscientização sobre o racismo vem se consolidando em diversas sociedades, o que aponta que o racismo não arrefeceu da maneira como se pensava, em muitos casos somente mudou de roupagem – esse é o caso, por exemplo, de muitos produtos midiáticos e de entretenimento.

    Munanga (1999) salienta que o racismo hoje em muitos contextos é de difícil localização, visto que depois da extinção do Apartheid na África do Sul não existe nenhum país com algum tipo institucionalizado de racismo. Isso quer dizer que nações como Estados Unidos, Inglaterra ou Brasil, por exemplo, atualmente convivem com racismo de fato, não de direito, muitas vezes sutil e implícito. Já no Brasil a arraigada crença na democracia racial deixou invisível por décadas discussões até mesmo sobre as manifestações racistas e, paralelamente, alimentava o mito do sincretismo cultural. É nesse bojo que os conceitos de etnia e de mestiçagem devem ser pensados, pois, se a miscigenação é uma realidade na sociedade brasileira, ela não apaga a hierarquização entre as raças.

O conceito de etnia

    Enquanto que no conceito de raça são enfatizados fatores biológicos, no de etnia salientam-se elementos culturais, linguísticos, históricos e da psicologia coletiva. Assim, a população ‘branca’ europeia apresenta diversas etnias: poloneses, lituanos, escoceses, catalães etc. Uma etnia não se confunde com uma nação, haja vista o território da África, que foi dividido segundo interesses imperialistas das nações europeias no princípio do século XX daí, por exemplo, os conflitos tribais que assolam a região. A maior parte dos cientistas sociais brasileiros que estudam o racismo e as relações inter-étnicas se valem do conceito de raça (Munanga, 1999). Tal conceito é utilizado não crendo em raça como realidade biológica, mas como constructo que alicerça os racismos em suas múltiplas manifestações. O atual posicionamento sobre isso, que baliza a visão adotada nesse artigo, é o seguinte:

    Em meus trabalhos, utilizo geralmente no lugar dos conceitos de ‘raça negra’ e ‘raça branca’, os conceitos de ‘negros’ e ‘brancos’ no sentido político-ideológico (...), ou os conceitos de ‘população negra’ e ‘população branca’, emprestados do biológico e geneticista Jean Hiernaux, que entende por população um conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de casamento e que, ipso facto, conservam em comum alguns traços do patrimônio genético hereditário (Munanga, 1999, p. 82).

    Em se tratando da realidade brasileira, inequivocamente é um contexto de ‘encontro’, visto que diversos povos historicamente se mesclaram, tanto em termos étnicos e culturais quanto genéticos. Isso não significa que o processo de mestiçagem tenha apagado preconceitos entre as raças, apenas complexificou tal dinâmica, criando categorias intermediárias. Ademais, em razão do intenso fluxo migratório e da maciça escravidão que houve no país, as populações brancas e as populações negras, para não citar as que já existiam aqui, eram também muito diversificadas em sua composição; por exemplo, o Brasil recebeu brancos da Alemanha e de Portugal, assim como negros da Nigéria e de Angola. Em relação aos nativos, esses se subdividiam em várias tribos, que possuíam tradições culturais e línguas que em muitos casos não tinham relação entre si, como os potiguares do Rio Grande do Norte e os tapuias do Mato Grosso, por exemplo. Além disso o Brasil também acolheu imigrantes do Extremo Oriente, como chineses e japoneses, cujos idiomas nada têm em comum. Assim, etnias em contextos complexos como o brasileiro ou o norte-americano não são fatos estáticos, evoluem, se transformam, desaparecem.

    Sob esse prisma, é imperioso considerar as inúmeras formas de mestiçagem que aconteceram no Brasil como produtoras de novas etnias, isto é, um paulistano, por exemplo, filho de imigrante polonês com negra que nasceu no sertão da Bahia não pode ser reduzido ao grupo paterno nem ao materno. Não obstante ele possa vir a sofrer discriminação enquanto ‘mulato’, negligenciar sua origem e bagagem cultural polonesa é também uma forma de racismo. Sob o marco teórico das ciências sociais não podem ser negligenciados esses “(...) novos componentes e conteúdos desses conceitos no contexto da dinâmica contemporânea das relações raciais e étnicas” (Munanga, 1999, p. 85). Outro elemento salientado por essa concepção é que a identidade étnica nunca é um produto acabado, fechado, imutável.

    Dessa maneira, como não existe uma única ‘cultura branca’, ‘etnia branca’ ou ‘raça branca’, também no Brasil, em razão de sua territorialidade e de sua complexa história, não existe uma única definição do que seria ‘branco’, ‘negro’ ou ‘índio’, por exemplo; portanto, regionalmente vigoram inúmeras definições, revelando um pluralismo linguístico, cultural, em síntese, semântico, do que vem a ser ‘negro’, ‘branco’, ‘amarelo’, categorias essas entendidas como construções sociais e mentais, não como fatos biológicos. O importante, segundo Munanga (1999), é ter consciência do caráter histórico e políticos dessas denominações, e não tomá-las como verdades nem essências da natureza.

    Mais do que advogar que a classificação racial de origem é melhor ou pior do que a brasileira, há que se verificar como se engendrou histórica, política e culturalmente uma e outra. A discussão acadêmica sobre ‘classificação racial’ no Brasil tem como um dos principais marcos o clássico texto de Oracy Nogueira (1985), que contrasta o ‘preconceito de origem’ – típico da cultura norte-americana – com o ‘preconceito de marca’ – evidente no Brasil. Nos Estados Unidos o que define que alguém seja considerado ‘negro’ é sua ascendência africana e não o fato de se ter elementos físicos negroides. No Brasil o que importa é o fenótipo: a ‘cor’ da pele e o tipo de cabelo, principalmente.

    Para a militância esse olhar reduz a coesão social, a consciência e a identidade dos indivíduos de origem africana; para eles não deveria haver distinção entre pretos e pardos nos censos, devendo todos ser englobados na categoria ‘negro’. Esta é uma posição com a qual Ribeiro (1995) não concorda, pois a inegável mistura étnico-racial que houve no Brasil não é simples e dual como houve nos Estados Unidos (negro + branco), por exemplo, pois um indivíduo ‘pardo’ brasileiro é fruto de sucessivas miscigenações entre negros, brancos, índios e até mesmo orientais: como negligenciar as múltiplas etnias que podem compor um brasileiro médio? Referente a isso, ele pleiteia a expressão ‘moreno’ para designar esse mestiço brasileiro idiossincrático.

    Com efeito, também aqui será empregado o vocábulo moreno, principalmente porque é uma palavra que remete unicamente aos seres humanos; diferentemente de ‘mestiço’, que frequentemente é usada na zootecnia para conceituar hibridações entre ‘raças puras’ ou um termo pior, ‘pardo’, geralmente usado para se referir a bolsas, sapatos e produtos de couro em geral, e de onde deriva a palavra pardal2. Caucasiano também é utilizado em lugar de ‘branco’, considerando-se que não se refere apenas à cor da pele, mas também a outros caracteres fenotípicos de pessoas de ascendência europeia. Nestes termos, um indivíduo que segundo a classificação do IBGE1 seria considerada ‘branca’, ainda que tenha pele, olhos e cabelos claros, mas feições negroides e cabelo crespo, na classificação descrita a seguir foi tipificada como ‘morena’.

Procedimentos metodológicos

    Buscando inspiração em algumas universidades federais brasileiras onde existe comissão ad hoc encarregada de analisar a pertinência ou não da auto-classificação do candidato como negro ou pardo para que ingresse pelo sistema de cotas2, foi solicitado a dois colegas professores universitários, um ‘moreno’ e uma ‘negra’, ambos das ciências humanas, que, juntamente, com o autor do texto (caucasiano) e partindo de fotos dos 927 jogadores, os categorizassem conforme o código: C (caucasiano), N (negro: ‘preto/mulato’), M (moreno), O (‘amarelo’), I (indígena). Assim, baseando-nos apenas na ‘aparência’, categorizaram-se esses atletas a partir do senso comum. O grupo foi formado pelos 927 jogadores que participaram do Campeonato Brasileiro de 2012, cujos dados (foto de rosto, idade, altura, peso, local de nascimento) são anualmente divulgados em edição especial da revista Placar, publicação esportiva brasileira tradicional, semelhante à revista El Gráfico na Argentina.

    A escolha de três pessoas para a ‘comissão’3 foi estratégica para se evitar empate entre categorias, como poderia acontecer com dois ou quatro membros. Curiosamente, nenhum mesmo jogador foi classificado por três categorias diferentes, negro, moreno e caucasiano, por exemplo, ou seja, sempre houve duas categorias versus uma, sendo que a que prevalecia era lançada na tabulação dos dados. Raramente os três foram unânimes em classificar o mesmo atleta sob uma única categoria, fato que reforça o que aqui é preconizado: na sociedade brasileira urbana ao mesmo tempo em que existe certo consenso sobre o que se considera ‘negro’, ‘branco’ etc. não existe ortodoxia, como em outros contextos, sobre a questão racial.

Figura 1. Reportagem sobre o fato de dois gêmeos terem sido classificados diferentemente por uma comissão da UNB para o sistema de cotas raciais. Fonte: www.veja.com.br

Apresentação dos dados

    Sobre 40 os técnicos de futebol (o que corresponde aos 40 clubes que participaram do mencionado campeonato), nenhum deles, segundo a classificação, é negro. Ademais, a grande maioria nasceu em apenas quatro estados do país, dois da região Sudeste e dois da região Sul. Isso reforça que existem vínculo e hierarquização racial e de classe na sociedade brasileira, pois, como mencionado, para se tornar técnico de futebol (portanto, que exerce poder), o indivíduo deve cursar Educação Física ou Fisioterapia, além de ser comum realizar cursos de especialização na área, ou seja, não basta somente ter sido jogador e tido vivência prática dessa modalidade esportiva. Tal não acesso à escolarização universitária é uma das razões, por exemplo, do fato de um dos maiores ícones do futebol mundial, Pelé, nunca ter sido oficialmente técnico de qualquer time no país ou no exterior.

Figura 2. Local de nascimento dos treinadores do Campeonato Brasileiro 2012

 

Figura 3. Classificação étnico-racial dos treinadores do Campeonato Brasileiro 2012

    Especificamente em relação aos jogadores, a distribuição por nascimento mostra que majoritariamente eles provêm do Sudeste, e mesmo aqueles oriundos das regiões Sul e Nordeste nasceram em estados limítrofes a esta região do país: São Paulo 26,21%, Rio de Janeiro 13,38%, Minas Gerais 8,41%, Bahia 7,55%, Paraná 6,25% Rio Grande do Sul 5,95%, restante do país 32,25%.

    No caso da classificação étnica, é interessante contrastar a feita pela ‘comissão’ ad hoc de professores para este artigo sobre os atletas com a oficial elaborada pelo IBGE para a população brasileira como um todo5.

 

IBGE, Brasil (2010)

Campeonato Brasileiro

Ameríndio

0,43%

9,16%

Caucasiano/Branco

47,77%

24,38%

Amarelo/Oriental

1,09%

0,64%

Negro

7,6%

20,17%

Moreno/Pardo

43,1%

45,65%

 

Figura 4. Principais locais de nascimento dos jogadores do Campeonato Brasileiro de 2012

 

Figura 5. Composição étnico-racial dos jogadores do Campeonato Brasileiro de 2012

 

Figura 6. Classificação racial oficial do Brasil em 2010 (fonte: www.ibge.gov.br)

    Depreende-se dos dados que não existe preponderância de afrodescendentes no futebol por questões ‘raciais’ ou hereditárias, mas sim porque negros e pardos compõem grandes parcelas da população brasileira como um todo, diferindo sim de uma área para outra como, por exemplo, os dados referentes a Porto Alegre e a Salvador foram os extremos no que se refere ao percentual de negros (pretos e pardos) e de caucasianos, como se observa abaixo:

Cidade

Ameríndios

Caucasianos

Morenos

Negros

Orientais

Porto Alegre:

15 jogadores

6,66%

46,66%

33,33%

13,33%

-

Salvador:

18 jogadores

-

11,11%

27,77%

61,11%

-

    Um dos percentuais que mais cresceu na categorização dos jogadores feita pelos docentes em relação aos números do IBGE foi em relação aos indígenas, já que a comissão, valendo-se apenas da foto dos jogadores, os classificou em termos fenotípicos, ou seja, traços, cor da pele, cabelo, ao passo que o IBGE considera nessa categoria apenas pessoas dessa origem que vivem em aldeamentos. Os números referentes aos negros também foram superiores pelos critérios utilizados nesse artigo se comparados aos índices do IBGE, enquanto que o número de ‘brancos’ foi bastante reduzido. Isso reforça a inexistência de um estrito consenso em relação à cor/raça no país, onde as categorias classificatórias variam conforme o grupo originário (classe, nível educacional, origem étnico-racial) de quem está classificando.

Considerações finais

    Um primeiro aspecto que se destaca dos dados é a distinção entre a presente classificação e aquela efetivada pelo IBGE, mormente no que diz respeito ao conceito ‘ameríndio’ (indígena), posto que a classificação do IBGE não segue a autoclassificação do entrevistado (como ocorre nas outras categorias), considerando indígenas somente os que são dessa origem e, principalmente, que vivem em aldeias que preservam costumes ancestrais. Isso subestima a influência dos primeiros habitantes do Brasil na composição atual da população, além do que, mescla dois tipos diferentes de categorização, a autodenominação (no caso de pardos, pretos, brancos e amarelos) com uma classificação ‘externa’, feita por pesquisadores, mais alicerçada no cultural.

    Nos números do IBGE a mistura de uma classificação ‘visual’ e autodeterminada com uma ‘cultural/étnica’ heterodeterminada gera disparidades como, por exemplo, o percentual de ‘amarelos’ (descendentes de asiáticos do Extremo Oriente) ser superior ao de ‘indígenas’. Em oposição, a classificação dos jogadores ora apresentada, não obstante não seja a melhor, se baseou na percepção visual, no caso de professores universitários, processo similar ao que cotidiana e inconscientemente as pessoas cotidianamente fazem ao circular em vias públicas (e que certamente acontece não apenas em termos raciais).

    Este tipo de categorização também infla a categoria ‘pardo’ do IBGE, onde são ‘colocados’ os descendentes de indígenas que vivem em cidades e/ou que não tem qualquer ligação com a cultura ameríndia ancestral e, portanto, não ‘podem’ se autodenominar indígenas. Posteriormente, quando ‘pardos’ e ‘pretos’ são somados à categoria ‘negro’, esta é ampliada erroneamente, visto que congrega pessoas que possuem apenas ancestralidade ameríndia (como é comum acontecer no Centro-Oeste e no Norte do Brasil), sem possuir qualquer ancestralidade negra.

    Para melhor entendimento de como tal processo classificatório é equivocado, basta se atentar para o contrário, que se deu na vizinha Argentina durante décadas: lá, entre o final do século XIX e a década de 1990 a categoria negro simplesmente desapareceu do censo do país (Frigerio, 2006). Logo, os argentinos afrodescendentes, ao responder o censo, eram ‘impelidos’ a se enquadrar somente nas categorias branco, indígena ou asiático, o que levou à invisibilidade para a permanência de populações negras (pardos e mulatos) no país.

    No que respeita ao mundo do futebol particularmente, pode-se localizar o ufanismo que atrela tal esporte ao negro urbano ao livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, de 1947. Criador do Torneio Rio-São Paulo, que mais tarde geraria o Campeonato Brasileiro, Mário Filho foi pioneiro em conceder caráter épico a esse esporte, praticamente sendo o mito fundador de como a sociedade e, inclusive, muitos intelectuais, veem a questão racial no futebol até hoje. Não só com o livro, mas, principalmente, com seu Jornal dos Sports, Mário Filho reforçou a visão idílica da ‘democracia racial’, propalando que o ‘futebol arte’ seria resultado do mulatismo do país (na verdade do Rio de Janeiro, tomado como ‘o Brasil’), provocando uma interpretação romântica em várias gerações de cientistas sociais sobre tal esporte, obscurecendo fatos como a baixa escolaridade dos jogadores, salários irrisórios da maior parte deles, quase ausência de técnicos negros e que a grande maioria dos vencedores do Campeonato Brasileiro são times paulistanos ou cariocas, o que reforça o estereótipo de se tomar essas duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, como retrato do país.

    Em síntese, quer o processo de exaltação (o negro no futebol brasileiro que iguala a todos, p. e.) quer o de encobrimento (a influência negra na cultura e população argentinas, p. e.), resultam de escolhas, como é o caso das categorias étnico-raciais para a definição das populações, processos esses dinamizados pela mídia, como foi caso da participação dos negros no futebol brasileiro que, ao contrário de ser um fenômeno social de ‘um tom só’, reflete o caldeirão cultural que é o povo brasileiro que, por sua vez, agora recebe influxos de países vizinhos graças à recente onda imigratória de jogadores latino-americanos para o Brasil atraídos por melhores condições de trabalho.

Notas

  1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

  2. Há alguns anos dois irmãos gêmeos idênticos (que, pelos critérios aqui adotados seriam classificados como morenos) foram classificados pela mesma comissão da Universidade de Brasília para o sistema de cotas raciais um como negro outro como branco, tendo, com isso, que passar por processos seletivos distintos, não obstante tivessem a mesma carga genética e, principalmente, idêntica aparência. Tal fato aponta para a impossibilidade de se defender a existência de um critério único – melhor e ‘verdadeiro’ – para a categorização étnico-racial.

  3. O primeiro acadêmico é homem, mestiço de mãe ‘mulata’ e pai branco, historiador, mestre em Filosofia; a segunda docente é negra, pedagoga, doutora em Educação. O autor do artigo é branco, antropólogo, mestre em Psicologia e também professor universitário.

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