Escola e culturas: considerações a partir de um estudo etnográfico Escuela y culturas: consideraciones a partir de un estudio etnográfico School and cultures: considerations from an ethnographic study |
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Doutor em Educação (UNICAMP) Professor Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) (Brasil) |
Benedito Eugenio |
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Resumo A escola é produtora de cultura. A cultura da escola está engendrada nas políticas educacionais, no currículo, na história/funcionamento da instituição e nos significados atribuídos aos sujeitos sociais que dela fazem parte. São as interações cotidianas que dão forma e sentido a essa cultura. Por isso, dois elementos são importantíssimos nesse processo: espaço e tempo. Neste artigo, apresentamos alguns dados de uma pesquisa etnográfica realizada em uma escola pública em Vitória da Conquista-Bahia, aqui denominada de Escola Guimarães Rosa, e que investigou o processo de recontextualização das políticas educacionais no cotidiano da escola. Para a discussão da cultura da escola, trazemos algumas cenas construídas a partir das observações realizadas na escola. Unitermos: Cultura. Escola. Etnografia.
Abstract The school is a producer of culture. The school culture is engendered in education policy, curriculum, history / running of the institution and the meanings attributed to social subjects that are part of it. Are the everyday interactions that shape and meaning to this culture. So, two elements are very important in this process: space and time. In this article, present some data from an ethnographic research conducted in a public school in Vitória da Conquista, Bahia, here called School Guimarães Rosa, and investigated the process of recontextualization of education policy in the school routine. For discussion of school culture, bring some scenes constructed from the observations made at school. Keywords: Culture. School. Etnography.
Recepção: 04/08/2015 - Aceitação: 10/09/2015
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 208, Septiembre de 2015. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
A educação está imersa na cultura, esta aqui entendida conforme Geertz (1989), isto é, sistema ordenado de símbolos e signos por meios dos quais os homens significam o mundo. Assumindo que a escola é uma instituição cultural, concordamos com Candau e Moreira (2003, p. 160), para quem “a relação entre escola e cultura não pode ser concebida como entre dois polos independentes, mas sim como universos entrelaçados, como uma teia tecida no cotidiano e com fios e nós profundamente articulados”.
Considerando a escola como entrecruzamento de culturas (Perez-Gomez, 2001), é fundamental que ocupem lugar nos currículos a discussão das culturas juvenis, infantis, populares, dos povos africanos, afro-brasileiros, indígenas, ciganos, dentre outros.
Cada vez mais a escola tem sido compreendida como espaço sociocultural (Dayrell, 1999). Dessa forma, lidar com a pluralidade de culturas e elaborar estratégias e ações que estimulem a prática do respeito e do combate à discriminação e todas as formas de preconceitos é uma tarefa essencial da instituição escolar, historicamente sempre partidária do daltonismo cultural.
Segundo Gomes (2003, p. 75), nunca se falou tanto em cultura, no Brasil, como nos últimos anos. As práticas de diferentes sujeitos sociais e instituições passa a ser adjetivada a partir do vocábulo cultura: cultura infantil, cultura juvenil, cultura indígena, cultura negra, cultura escolar, multiculturalismo, interculturalismo, o que constitui “uma inflexão no pensamento educacional, fruto das mudanças ocorridas em nossa sociedade devido às ações e demandas dos movimentos sociais, dos grupos sociais e étnicos”.
É fundamental que a ênfase na discussão da cultura não recaia apenas no elogio à diversidade e ou à diferença. Caso isso ocorra, caímos nas armadilhas do multiculturalismo conservador/liberal. A compreensão das culturas no campo educacional pode nos ajudar a construir práticas pedagógicas culturalmente relevantes, ou seja, “pedagogia que capacita os alunos intelectualmente, socialmente, emocionalmente e politicamente, pelo uso de referentes culturais para transmitir conhecimentos, habilidades e atitudes” (Ladson-Billings, 2008, p. 36). O estabelecimento de tais práticas está em consonância com a Lei 10639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o Ensino de História e cultura afro-brasileira e africana, conforme previsto no Parecer CNE 003/2004.
A escola é produtora de cultura. A cultura da escola está engendrada nas políticas educacionais, no currículo, na história/funcionamento da instituição e nos significados atribuídos aos sujeitos sociais que dela fazem parte. São as interações cotidianas que dão forma e sentido a essa cultura. Por isso, dois elementos são importantíssimos nesse processo: espaço e tempo. Neste artigo, apresentamos alguns dados de uma pesquisa etnográfica realizada em uma escola pública em Vitória da Conquista-Bahia, aqui denominada de Escola Guimarães Rosa, e que investigou o processo de recontextualização das políticas educacionais no cotidiano da escola. Para a discussão da cultura da escola, trazemos algumas cenas construídas a partir das observações realizadas na escola.
As culturas no espaço-tempo da escola Guimarães Rosa
O espaço escolar indica tanto o lugar físico como um conjunto de relações sociais: “a escola é espaço e lugar. Algo físico, material, mas também uma construção cultural que gera ‘fluxos energéticos’” (Viñao Frago, 2001, p. 77). O tempo engloba duas dimensões: chronos, parte mensurável dos movimentos, com seus horários fixados e kairós, tempo incorporado à vida.
Os tempos de trabalho na escola abarcam as duas dimensões citadas: temos o ano letivo, o bimestre, as aulas com tempo determinado, o horário e dia das reuniões, do conselho de classe, das avaliações, mas temos também um outro tempo que desencadeia alterações na dinâmica dos acontecimentos escolares.
Apresentamos, a seguir, uma cena do cotidiano escolar que procura evidenciar as culturas engendradas nos espaços-tempos da instituição.
A escolha do líder
É hora do intervalo. A diretora entra na sala dos professores e conversa com os professores sobre a possibilidade de liberar os alunos nos dois últimos horários para que em conjunto eles planejem a atividade de sensibilização dos estudantes para a escolha do líder de turma. Todos os docentes presentes concordam. Há preocupação quanto aos professores não presentes por não terem aulas e também com os dos outros turnos. Percebi aqui que mesmo havendo uma boa convivência entre os docentes, há momentos em que as relações interpessoais são conflitantes. Os professores pensam em estratégias para convencer os próprios colegas da necessidade de todos trabalharem a escolha do líder.
Passado esse momento, começam a planejar a melhor maneira de proceder a essa escolha. Sinto a preocupação em tentar traçar um perfil de líder, pois são recorrentes as falas de que o líder não pode ser qualquer aluno. Fiquei a me perguntar o porquê disso e lembrei-me do trabalho de Tura (2003), no qual a autora relata que o representante ideal deveria ser um modelo para os colegas.
Das várias ideias que foram surgindo e algumas descartadas, principalmente as que demandavam a confecção de algum material impresso, pois a escola não dispunha de quantidade suficiente para todas as turmas. Ficou acertado o trabalho com um texto proposto por uma das professoras, uma dinâmica que propiciasse a reflexão sobre dificuldades e elaboração de estratégias, pois os alunos teriam que atravessar um palito de churrasco numa bisnaga sem estourá-la e, por último, a música do grupo. A escolha da musica levou em conta a idade dos alunos e certamente porque eles conhecem-na e também o grupo. Logo em seguida, houve o questionamento de como trabalhar a música. A professora de Artes comprometeu-se a gravar um CD com cópia da música para os colegas, visto a escola dispor de CDs virgens. Quanto à letra, o combinado foi de rodar cópias em papel ofício com fonte menor, de forma que todos os discentes tenham a letra para cantar e, em seguida, interpretar. (Diário de campo)
A dimensão do tempo chronos aparece por diversas vezes nessa cena. A escolha do líder demandava urgência e o grupo não dispunha de tanto tempo. Parece estar presente também a ideia de protagonismo juvenil, aqui entendido como a participação dos jovens no dia-a-dia da escola. O modelo de líder foi uma constante na reunião. Apenas os considerados bons alunos poderiam exercer tal posto. Apesar de a turma escolher, cabia ao professor a habilidade de conduzir o processo de forma que não fosse qualquer aluno o eleito, mostrando-nos que mesmo em momentos de exercício da democracia podem-se forjar estratégias indutoras da opinião dos sujeitos.
É importante observar na cena acima descrita, que em momento algum a direção e o/as professore/as mencionaram que as discentes podiam ser candidatas a lideres de classe. Parece já está naturalizado que para as funções de líder os homens são os mais indicados e é quase automática a consideração, pelo menos nesse grupo, que eles serão os votados e escolhidos. Verificando depois os nomes, não identificamos nenhuma aluna como líder.
Na turma do 3º ano vespertino, em que acompanhamos mais de perto o processo, as estudantes, mesmo sendo em maior número, só indicaram nomes de rapazes para a função de líder. Observando os documentos da reforma curricular para o ensino médio, particularmente as Diretrizes Curriculares Nacionais (1998), é possível perceber certa ênfase ao chamado protagonismo juvenil. No caso das DCNEM essa questão aparece de forma explícita e privilegia a participação dos jovens no desenvolvimento de atividades voltadas ao desenvolvimento da cidadania, conforme alguns trechos selecionados:
Espera-se que a escola contribua para a constituição de uma cidadania de qualidade nova, cujo exercício reúna conhecimentos e informações a um protagonismo responsável, para exercer direitos que vão muito além da representação política tradicional: emprego, qualidade de vida, meio ambiente saudável, igualdade de homens e mulheres (Brasil, 1998, p. 18).
Espera-se que a escola contribua para a constituição de uma cidadania de qualidade nova, cujo exercício reúna conhecimentos e informações a um protagonismo responsável, para exercer direitos que vão muito além da representação política tradicional: emprego, qualidade de vida, meio ambiente saudável, igualdade de homens e mulheres enfim, ideais afirmativos para vida pessoal e para a convivência (Brasil, 1998, p. 18).
Na área das Ciências Humanas [...], todos os conteúdos curriculares desta área, embora não exclusivamente dela, deverão contribuir para a constituição da identidade dos alunos e para o desenvolvimento de um protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política (Brasil, 1998, p. 61).
Em texto que tece críticas ao conceito de protagonismo presente nas DCNEM, Ferreti, Zibas e Tartuce (2004, p. 420) apontam que muitas vezes o protagonismo é encarado como via promissora para dar conta de uma urgência social e das angústias pessoais dos jovens. Para estes autores, este documento, “ao explicitar as razões últimas para a aproximação entre protagonismo e cidadania, deixa claro que ela se assenta sobre o humanismo como componente essencial da reforma, como forma de evitar o esgarçamento social”. Além disso, identificam um hibridismo de discursos, tendo em vista que os discursos dos diversos autores estudados e dos documentos oficiais advogam, de um lado – tal como faz a maioria dos educadores –, a necessidade de desenvolvimento do ser humano completo, para além das necessidades da produção, aberto à diversidade cultural de seu tempo e às responsabilidade sociais. A defesa dos métodos ativos, da contextualização dos conteúdos disciplinares e de um certo nível de integração de tais conteúdos, de modo que façam sentido para os jovens, também podem aproximar esses discursos dos objetivos de educadores progressistas. Por outro lado, os mesmos discursos afirmam a irreversibilidade dos “efeitos negativos da era pós-industrial”, orientam a despolitização da participação juvenil e fazem um apelo à adaptação à nova ordem mundial e à superação individual da segmentação social. Para diversos analistas, é essa face conservadora e economicista do discurso do protagonismo que prevalece nas diretrizes curriculares (Ferreti, Zibas, Tartuce, 2004, p. 422).
No documento curricular do Estado da Bahia há a consideração que de “a elaboração do currículo deve partir da constatação de que os jovens e os adolescentes que freqüentam as escolas são pessoas que nas suas práticas sociais cotidianas interagem em processos de comunicação, com a cultura e com a sociedade” (Bahia, 2005, p. 36).
Nos dois documentos acima citados é possível depreender que se delega ao professor mais a função de orientar do que a de ensinar, já que o jovem estudante deve ser estimulado a participar das atividades que contribuam para o seu processo de construção de conhecimentos. O jovem é apontado como produtor de conhecimentos que devem ser considerados na elaboração do currículo pela escola:
Todo o esforço empreendido nessa construção voltou-se para o desvendamento da identidade do estudante adolescente e do jovem: suas necessidades, seus desejos, suas culturas e suas potencialidades para o desenvolvimento de um protagonismo juvenil que ultrapasse os muros da escola. No processo de discussão, o foco eram os jovens, protagonistas da ação educativa (Bahia, 2005, p.14).
Nos documentos internos consultados e nas entrevistas realizadas, não identificamos elementos/discussões que levassem em consideração os conhecimentos produzidos pelos jovens. Foi possível depreender que os jovens, no contexto da prática, participam do processo de produção das políticas curriculares, pois requerem que suas demandas sejam levadas em consideração pelos docentes.
A discussão do PDE
A reunião iniciou-se às 13h50, com a diretora apresentando os motivos de sua realização. O objetivo do PDE é o/a aluno/a, por isso a diretora disse que o tempo dado pela Diretoria Regional de Educação para a construção do documento é insuficiente. Explica também que a origem da verba é o Banco Mundial e que às vezes o recurso é mal empregado. Após isso, passou-se a um momento de avaliação desses primeiros meses de nova gestão. A vice-diretora do vespertino destacou a importância do trabalho coletivo da comunidade escolar e do compromisso dos docentes, pois não há coordenação pedagógica, estando essa atividade a cargo dos articuladores de área. Destacou a contribuição desses últimos para o andamento do trabalho pedagógico da escola, que têm procurado fazer um trabalho sério e comprometido com o andamento da escola. Em seguida os professores puderam expor-se. Uma discente da extensão apontou a falta de alguns professores. Segundo ela, “quando o professor vai a gente quer aula, que ele explique o conteúdo e não passe apenas trabalho para cumprir a carga horária”. (Diário de campo)
Nessa reunião os docentes disseram desconhecer o projeto pedagógico e a proposta curricular da escola. Afirmaram que no ano anterior fora dito que a leitura de tais documentos seria realizada nos horários de Atividade Coordenada, o que não aconteceu.
Novamente a urgência do tempo aparece como complicador das ações da escola. Geralmente as instâncias governamentais, quando solicitam algum documento às escolas, o fazem sem se preocupar em favorecer a possibilidade de discussão conjunta. Isto traz sérias conseqüências para a organização docente enquanto categoria, bem como a apropriação pelos professores das políticas educacionais. Em todo o tempo de convivência na Guimarães Rosa, 01 ano letivo, não presenciamos qualquer questionamento sobre o Banco Mundial e sua interferência na educação nacional e tampouco sobre o Projeto Bahia.
Nesta escola não percebemos a presença de nenhuma das críticas direcionadas à atuação do Banco Mundial. Mesmo o programa Educar para Vencer, oriundo das verbas do Projeto Bahia e que contava em seus cursos, com a participação de quatro docentes da escola, não chegou a ser questionado durante o tempo em que permanecemos na Escola Estadual Guimarães Rosa. Isso nos aponta para o fato de que a escola é produtora de uma cultura singular e são os sujeitos que dela fazem parte os responsáveis diretos pela criação/manutenção/recriação da mesma.
O jogo de futebol
Chego à escola às 13h45. Quase não há alunos fora da sala de aula. Fico aguardando a articuladora da área de Linguagens, pois havíamos marcado para conversar sobre alguns aspectos acerca da organização da escola. Enquanto ela não chega, dirijo-me a outro espaço onde os alunos fazem a prática de atividades físicas. Não é bem uma quadra, mas um local que funciona como se fosse. Seis garotos arriscam-se nesse espaço, disputando uma partida de futebol. Se caírem, o machucado é para valer. Do lado de fora, dois alunos observam o jogo.
Combinam as regras: cinco minutos ou dois gols. A equipe perdedora dispensa dois jogadores para que os outros entrem. Iniciam a partida. Diante dos chutes fracos de um dos garotos, um dos observadores diz: “Chuta forte, parece moça”. Nenhum deles questiona a fala.
Não é hora do intervalo e, portanto, os alunos estão fora do espaço da sala de aula. No entanto, não há nenhuma atitude por parte da escola para que esses estudantes voltem para sala de aula. Os discentes sentem-se totalmente à vontade na quadra improvisada.
Toca o sinal. Os alunos saem da sala de aula. No corredor, começam a conversar. Aos poucos outros alunos aproximam-se da “quadra”. O jogo prossegue até que um dos estudantes chuta a bola e esta cai na rua. Imediatamente eles se organizam para trazer a bola de volta. Improvisam uma escada e não dá certo. Um deles sobe então nas mãos dos colegas e solicitam a um pedestre que pegue a bola.
Nesse momento, a vice-diretora passa pelo corredor e pede explicações aos alunos: “o que isso significa? E se um de vocês cai e morre aqui na escola?”
Um aluno que está de fora do jogo replica: “que caralho é esse? Ta desejando que o cara morra?” Alguns alunos fazem chacota com a situação. Acham graça do episódio e dizem: “se o cara morre, dois dias de luto”.
Toca novamente o sinal para a terceira aula. Esses alunos vão para a sala de aula e outros vêm para o espaço da quadra. A articuladora de Linguagens chega e então vou para a sala dos professores. (Caderno de campo)
A cultura discente comporta formas peculiares de apropriação e atribuição de sentidos e significados que circulam em diferentes espaços sociais. Segundo Perez- Gómez (2001) a cultura experiencial constitui a base cognitiva de interpretações dos indivíduos. No cotidiano da Guimarães Rosa, há processos sutis de diferenciação e afirmação de estilos juvenis. Além disso, a situação acima mescla elementos que merecem ser destacados: as questões de gênero presentes entre os jovens, pois o jogo de futebol é visto como a comprovação da masculinidade, exigindo não só habilidade, mas força; a desobediência às normas/regras, segundo as quais não é permitido ficar fora da sala de aula; a forma como encaram a autoridade da direção da escola.
Os garotos do futebol dispõem de códigos próprios. Por diversas vezes os acompanhei no espaço da escola utilizado para a prática esportiva e sempre vi o mesmo grupo. Com uma forma de comunicação peculiar, também ajudam-se mutuamente e convencem um companheiro que tem aulas naquele horário a não ir para a sala.
Nesses momentos os estudantes assumem um outro estado. Tomando como base o trabalho de McLaren (1992), mesmo estando na escola, os discentes agem, pela cena anterior, como se estivessem no estado de esquina de rua, pois algumas das palavras ditas e o comportamento demonstrado com a presença da vice-diretora constituem uma determinada maneira de se relacionar. Aqui eles são donos de seu próprio tempo, fazem parte de uma coletividade representada pelos outros colegas na mesma situação, isto é, que estão fora da sala de aula e aproveitando o tempo das aulas para jogar futebol.
As Orientações Curriculares Estaduais reconhecem que os jovens são portadores de uma cultura específica e esta deveria fazer parte do currículo:
A escola, portanto, precisa se aprofundar no entendimento do conceito de juventude, de jovem e de adolescência para criar uma comunicação efetiva que traga no seu currículo temas e/ou conhecimentos que possam ser organizados e sistematizados. Os conhecimentos universais do currículo, incorporados como conteúdos escolares e retratados nos livros didáticos, não referendados como únicos recursos, são importantes, mas a escola precisa reconhecer também outros conhecimentos, saberes que vêm circulando no mundo contemporâneo e que devem ser selecionados, discutidos e sistematizados, bem como utilizados em situações reais de uso (Bahia, 2005, p. 14).
Na cena acima descrita, outro elemento importante a ser considerado e que não está presente nos documentos analisados diz respeito às questões de gênero. As Orientações Curriculares Estaduais destacam a importância de se considerar a diversidade sociocultural nas práticas pedagógicas, mas não fazem nenhuma menção às questões de gênero. Esta é uma necessidade premente das propostas curriculares, pois parece que está naturalizado, nos documentos consultados, que gênero não é uma categoria a ser considerada na elaboração de políticas curriculares.
O conselho de classe
Turno vespertino. O conselho de classe está marcado para as 13:00 hs. Aos poucos os docentes vão chegando. Por volta das 13:15 hs. inicia-se o conselho. Na sala estão a direção, professores e representantes de turmas. Antes de iniciar, a diretora dá alguns avisos e explica o funcionamento do conselho. Os professores comentam sobre os alunos/turmas problemáticos. Os representantes passam a descrever o perfil de suas turmas. Nem todas as turmas estão representadas por seus pares. A representante da 5ª série começa falando sobre sua turma: “é uma turma bagunçada. Eu queria que os professores falassem mais com a gente”. Uma das professoras posiciona-se: “os alunos têm dificuldades de aprendizagem. Os repetentes são muito trabalhosos, o comportamento é inadequado e eles chegam atrasados”. Sugerem uma reunião com os pais e conversa com os alunos. E assim, o perfil de cada turma é delineada, ora por seus representantes, ora por seus professores. 6ª série: turma infrequente, com comportamento social inadequado de alguns alunos, dizem os professores. Fiquei a me perguntar o que seria esse comportamento social inadequado. A 7ª é bagunçada, diz a representante. Os docentes dizem tratar-se de uma boa turma, sem maiores problemas. Na 8ª o problema é a falta de interesse e os estudantes chegam atrasados. A turma do Fluxo é desmotivada, faltosa, alguns alunos desrespeitam o professor. Um professor questiona se os alunos podem fazer as avaliações sem freqüentar as aulas. Chega então o momento das turmas de ensino médio. 1º C: turma desmotivada, desinteressada, não faz atividade, são faltosos, apresentam baixo rendimento. Sugere-se reunião com os pais e conversa individual com os alunos. As outras três turmas têm características muito próximas, na avaliação docente: são participativas, têm pequenos grupos na sala, mas os alunos são bons. (Caderno de campo)
O conselho de classe é o momento de avaliar as aprendizagens dos alunos. Ele é realizado ao final de cada bimestre. Durante a reunião para a definição do primeiro conselho da escola, verifiquei um clima de apreensão e receio entre os docentes com a participação/presença dos alunos. A direção fez esta proposta e não foi consenso a sua efetivação. Cada turma escolheu representantes, que geralmente foram os líderes. Observamos a participação de vários representantes dos estudantes, mas sem um maior questionamento da estrutura/organização da escola. A presença da família é apontada como uma das soluções para os problemas de disciplina, aprendizagem e falta dos discentes.
A dinâmica de funcionamento do conselho é a seguinte: inicialmente o representante fala da turma, em seguida os professores e, por último a direção, que pergunta se há algum aluno destaque ou com comportamento social inadequado. Os problemas apontados por quase todos os docentes podem ser resumidos a comportamentos inadequados, indisciplina e dificuldades de aprendizagem. Segundo uma das professoras: “os alunos da 8ª são desinteressados, chegam atrasados. São alunos fraquíssimos”. Neste momento um professor questiona o tipo de comportamento que um aluno deve ter para ser considerado destaque. Não houve respostas.
A cena abaixo revela a complexidade que se tornou a tarefa docente no cotidiano das escolas, pois além das novas funções atribuídas ao professor, ele precisa continuar atentando-se para o clima da sala de aula, realizar sua tarefa, verificar o aprendizado dos discentes. Para conseguir dar conta de tudo isso, ele conta com práticas típicas de outras instituições (como as prisões, por exemplo) e que foram incorporadas pela escola, como o livro de ocorrências.
Após consulta aos documentos da escola, dirijo-me à sala dos professores para lê-los com mais cuidado. Já estamos no fim do terceiro horário. Passados alguns minutos, bate o sinal para o recreio. É o momento em que os docentes conversam sobre questões/problemas de suas respectivas salas e também aproveitam para descansar um pouco. Aos poucos, os docentes vão adentrando pelo espaço a eles reservado. Uma das professoras entra e diz: “Sabe a sétima?, finalmente descobri quem é que fica gritando o tempo todo. Coloquei dois alunos da turma para me ajudar e agora sei o nome do menino que fica atrapalhando a aula. Já pedi para chamar os pais dele. Não vou ficar chamando a atenção de menino que não quer nada. Não chamo atenção nem de meus filhos. E quero que ponha no livro de ocorrências. Ele só entra com os pais”. (Caderno de campo)
Aqui aparecem outros elementos presentes na cultura da escola, a ideia de aluno fraco, a necessidade de reprovação, a vigilância, esta última, um elemento muito presente na cultura cotidiana da escola por meio do livro de ocorrência, conforme demonstra o estudo de Gomes (2015). A consequência disso para as políticas públicas é que quando naturalizadas no cotidiano da escola, elas são inclusive justificadas, pois sua incorporação acontece de forma acrítica, baseada principalmente numa tentativa de homogeneizar, o que tornaria possível o trabalho com os alunos.
Considerações finais
No decorrer deste artigo, procuramos evidenciar o quanto à escola produz uma cultura específica e que esta precisa ser considerada no estudo das práticas pedagógicas realizadas no interior da sala de aula. Apresentamos os resultados de um estudo etnográfico realizado em uma escola secundária localizada no interior do Estado da Bahia-Brasil, dialogando com autores que tem se dedicado ao entendimento da diversidade presente no interior das instituições educativas. Os dados apresentados constituem importantes elementos que podem estimular outras pesquisas que objetivem compreender o cotidiano escolar e a riqueza da diversidade cultural/racial/de gênero nele presente.
Bibliografia
Bahia. Secretaria Estadual da Educação (2005). Orientações Curriculares Estaduais para o Ensino Médio. Salvador, SEC. 3 vol.
Brasil. Ministério da Educação (1998). Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília, MEC.
Candau, Vera y Moreira, Antonio F. B. (2003). Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos. Revista Brasileira de Educação, vol.23, p. 156-167.
Dayrell, J. (1999). A escola como espaço sociocultural. En Juarez Dayrell (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
Ferreti, Celso; Zibas, Dagmar y Tartuce, Gizela (2004). Protagonismo juvenil na literatura especializada e na reforma do ensino médio. Cadernos de Pesquisa, vol. 34, n. 122, p. 411-423.
Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LCT.
Gomes, N.L. (2003). Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, n. 23, p. 75-85.
Gomes, E.S. (2015). Conflito aluno-escolar: conflitos, classificação e poder. En B. G. Eugenio, Santos, J.J.R., Bezerra, T.S.A. (Org). Diferenças, sexualidades e relações etnicorraciais em educação. Campina Grande: Ed. Realize.
Ladson-Bilings, G. (2008). Os guardiões de sonhos: o ensino bem-sucedido de crianças afro-americanas. Belo Horizonte: Autêntica.
McLaren, Peter (1992). Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes.
Perez-Gomez, A. (2001). A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: Artmed.
Viñao Frago, A. (2001). Do espaço escolar e da escola como lugar: propostas e questões. En Viñao Frago, A. y Escolano, Augustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A.
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Septiembre de 2015 |