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Consumo abusivo de bebidas alcoólicas em populações indígenas: 

estudo bibliográfico sobre as implicações psicológicas,

estratégias de tratamento e intervenção

El consumo excesivo de bebidas alcohólicas en poblaciones indígenas: estudio bibliográfico 

sobre las implicaciones, las estrategias de tratamiento y de intervención psicológica

Abuse of alcohol in indigenous populations: bibliographical study
on the psychological implications, treatment and intervention strategies

 

*Graduada em Psicologia

Preceptor do Projeto Manifestações Físicas

Culturais de Populações Indígenas-PET/UNIR

**Graduada em Psicologia

Bolsista do Projeto Manifestações Físicas

Culturais de Populações Indígenas-PET/UNIR

***Prof. Dr. Ramón Núñez Cárdenas

Tutor do Projeto Manifestações Físicas Culturais

de Populações Indígenas-PET/UNIR

Professor do Departamento de Educação Física

da Universidade Federal de Rondônia

Coordenador do Centro de Estudo de Esporte e Lazer (CEELA)

Integrante do Grupo de Estudos do Desenvolvimento e da Cultura Corporal

****Coordenadora do Projeto Profª. Drª. Ivete de Aquino Freire

Vice Manifestações Físicas Culturais de Populações Indígenas-PET/UNIR

Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Rondônia

Líder do grupo de Estudos do Desenvolvimento e da Cultura Corporal

Michele Freire Seixas*

Rafaele Emília Pereira Da Silva**

Sophia Borges Campos**

Ramón Núñez Cárdenas***

Ivete De Aquino Freire****

nunezcardenas@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O consumo abusivo do álcool pode resultar em consequências irreversíveis para quem a ingere. O álcool é uma substância muito consumida no Brasil, colaborando para este aspecto a legalização e o fácil acesso ao produto. O uso do álcool vem se tornando cada vez maior em comunidades indígenas, tendo este fenômeno sido apontado como resultado da influência da cultura urbana. Entre outros aspectos, o alcoolismo se tornou um problema social frequente nestas populações: acarreta implicações psicológicas diversas no indivíduo além de influenciar nas relações interpessoais e na sua cultura. O presente estudo buscou identificar e analisar publicações que fazem referência ao consumo excessivo de álcool por populações indígenas, bem como as estratégias de tratamento e intervenção. Realizou-se uma pesquisa do tipo Bibliográfica. Foram consultadas as bases de dados Scielo, Capes e Google acadêmico, sendo selecionadas 13 bibliografias; e utilizadas para a análise apenas 10; todas em Português.

          Unitermos: Alcoolismo. Indígenas. Psicologia. Tratamento. Intervenção psicológica.

 

Abstract

          The abuse of alcohol can result in irreversible consequences. Alcohol is a much consumed substance in Brazil, contributing to this legalization easy access to the product. The use of alcohol is becoming increasingly in indigenous communities, and this phenomenon been appointed as a result of the influence of urban culture. Entre outros aspectos, o alcoolismo se tornou um problema social frequente nestas populações: acarreta implicações psicológicas diversas no indivíduo além de influenciar nas relações interpessoais e na sua cultura. Among other things, alcoholism has become a common social problem in these populations: causes many psychological implications for the individual and influences in interpersonal relations and in their culture. This study sought to identify and analyze publications that reference to excessive consumption of alcohol by indigenous populations as well as the treatment and intervention strategies. We conducted a search of the kind Bibliographic. Databases were consulted SciELO, Capes and Google Scholar, being selected bibliographies 13; and used for analysis only 10; all in Portuguese.

          Keywords: Alcoholism. Indigenous. Psychology. Treatment. Psychological intervention.

 

Recepção: 22/05/2015 - Aceitação: 24/07/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 207, Agosto de 2015. http://www.efdeportes.com

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Introdução

    As bebidas alcoólicas estiveram presentes em muitas culturas e em diversos períodos da história. Devido a este evento, o álcool encerra diversos significados e assume papéis singulares de acordo com cada cultura. Apesar deste tipo de bebida ser conhecido desde os tempos mais remotos, somente no século XVIII a substância foi objeto de estudo com maior enfoque por parte da medicina. Neste período Benjamin Rush descreveu os seus efeitos no corpo e na mente humana, concebendo o consumo excessivo como enfermidade (Souza, 2001). A partir destes estudos constatou-se que o consumo abusivo do álcool pode causar problemas à saúde e resultar consequências irreversíveis para o usuário.

    Para Edwards et al (2005) o álcool tem significado simbólico quando usado de acordo com os hábitos, rituais sociais, culturais e religiosos. Entretanto, a partir do que afirma o autor, os estudos sobre a ingestão desta substância devem ir além destes aspectos uma vez que o consumo produz impactos fisiológicos no organismo humano. O seu uso resulta em efeitos farmacológicos e tóxicos, atuando na mente, nos órgãos e sistemas do organismo humano.

    De modo geral, a dependência do álcool pode ser explicada por duas vertentes teóricas distintas: processos psicológicos e processos químicos ou farmacológicos. Do ponto de vista químico, mudanças de neuroadaptação no cérebro contribuem para a compreensão da compulsão para beber, com o aumento da tolerância, com a abstinência e com as demais características da síndrome. Na vertente psicológica, destacam-se fatores como a personalidade e influências ambientais. A dependência de álcool pode estar relacionada com a busca de um estimulante/euforizante, o desejo de aliviar a ansiedade, o estresse e a necessidade de sedação (Littleton E Little apud Edwards, Marshall, Cook, 2005).

    Estudos indicam que nem todas as pessoas que bebem em excesso tornam-se dependentes; algumas podem ser mais vulneráveis que outras. Esta variação de vulnerabilidade ao álcool ocorre devido a fatores constitucionais, genéticos, de personalidade entre outros (Edwards, Marshall, Cook, 2005). Considera-se que há dois tipos de quadros clínicos: os decorrentes da ingestão excessiva e a dependência propriamente dita. Tanto uma situação quanto a outra resultam em prejuízos físicos, emocionais e sociais. Para Souza (2001), a Síndrome da Dependência do Álcool (alcoolismo crônico), é entendida como uma gradação – inicia com a ingestão de bebidas até chegar alcançar uma situação de dependência. É caracterizada como um grupo inter-relacionado de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos. As incapacidades relacionadas ao álcool consistem em disfunções físicas, psicológicas e sociais, que advém direta ou indiretamente ao uso excessivo da bebida e a dependência.

    Segundo Loureiro (2010), a dependência e o consumo abusivo de substâncias psicoativas apresentam nos dias atuais proporções epidemiológicas, não se restringindo a uma classe social específica ou guetos, e tampouco a uma característica da conduta marginal. Este fenômeno é um problema social presente em diversas culturas, inclusive nas comunidades indígenas do Brasil. De acordo com a FUNASA (2000), o alcoolismo entre os grupos indígenas brasileiros, tem como agravante a aproximação das populações indígenas das não-indígenas. Teixeira (2001), seguido de outros autores (como Fernandes, 2002; Souza, 2007 e Loureiro, 2010, por exemplo) confirmam as informações da FUNASA (2000): a presença etílica nas comunidades indígenas, pode estar relacionada com a proximidade e o convívio da comunidade indígena com a cultura urbana.

    Considerando-se o exposto, o presente trabalho tem como objetivo principal identificar e analisar publicações que fazem referência ao consumo excessivo de álcool por populações indígenas, bem como as estratégias de tratamento e intervenção. Determinaram-se os seguintes objetivos específicos: a) Reconhecer a prevalência do alcoolismo em aldeias; b) Verificar as estratégias de tratamento para alcoolismo; c) Identificar as principais dificuldades encontradas no tratamento; d) Conhecer as atuações da psicologia no âmbito indígena em relação ao alcoolismo.

Metodologia

    Para alcançar os objetivos propostos no trabalho foi realizada uma pesquisa do tipo bibliográfica. Foram consultadas as bases de dados Scielo, Capes e Google acadêmico, sendo selecionadas 13 bibliografias; e utilizadas para a análise apenas 10; todas em Português. Os critérios utilizados para a seleção dos manuscritos foram os seguintes: a) Artigos reconhecidos a partir dos seguintes identificadores: alcoolismo e indígena, indígena e intervenção; b) materiais em língua portuguesa.

    Para registro inicial das informações, utilizaram-se as seguintes categorias de análise: identificação dos objetivos do trabalho, o tema do material bibliográfico, região de enfoque, etnia e resultados.

Consumo do álcool nas comunidades indígenas

    É fato que o consumo abusivo de álcool está presente entre as populações indígenas, sendo o contato interétnico o principal elemento desencadear deste processo. Entre os diversos autores consultados para a composição deste trabalho verificou-se que a historicidade deste consumo, é fundamental para a compreensão do fenômeno.

    Os fatores que podem ser citados como influência para o consumo abusivo de álcool em comunidades indígenas, de acordo com Langdon (2001), são o processo de pacificação e a inserção do índio na sociedade envolvente. Esse contato favoreceu a introdução das bebidas destiladas presentes na sociedade dos não índios. Langdon (2001) sinaliza que outras consequências internas resultaram do contato índio/não índio, a exemplo da violência em geral. Por este motivo, o autor considera que definir como o consumo de bebida alcoólica se dá entre as comunidades indígenas passa necessariamente pelo estudo da história de pacificação da aldeia.

    A grande maioria dos trabalhados consultados seguem esta orientação: contextualizam historicamente, em menor ou em maior medida, a entrada do álcool nas comunidades indígenas. Fernandes (2002) pontua que em todos os testemunhos do contato interétnico, tanto os do passado quanto os do presente, a cachaça era produto indispensável nos inúmeros processos de “pacificação”. Estas relações muitas vezes eram estabelecidas e manipuladas pelos interesses coloniais. Em ano anterior, uma publicação de Langdon (2001) já registrava que no processo colonizador, observava-se a utilização da bebida destilada como forma de aliciamento dos índios pelos dominadores.

    Quase dez anos após a publicação de Langdon (2001) e Fernandes (2002), surge o trabalho de Maciel et al (2011) que confirma as idéias dos primeiros. O contato dos povos não índios com as populações indígenas possui papel fundamental quanto ao consumo de bebidas alcoólicas destiladas. Desse modo, é inegável que a proximidade dos centros urbanos junto às tribos indígenas são fatores agravantes para essa situação. Um exemplo disso é o que ocorre na etnia Potiguara, localizada no interior do estado da Paraíba. A publicação de Maciel et al (2011) destaca que as aldeias da região estudada ficam próximas de muitas usinas de álcool, fator que influencia no consumo das bebidas alcoólicas.

    Reforçando o que dito anteriormente, Melo, Maciel e Neves (2009) citam que a FUNASA em 2002 apontou o alcoolismo como um dos problemas cada vez mais freqüentes nas comunidades indígenas que tem um relacionamento mais estreito com a população regional.

    Fernandes (2002) acentua que o alcoolismo indígena, tal como ocorre nas distintas etnias, resulta do contexto social em que as bebidas são consumidas. Trabalhos de Souza et al (2005) e Maciel et al (2012) complementam: nos estudos sobre a questão, deve-se compreender o significado do consumo de bebidas alcoólicas para cada etnia. Neste contexto, os estudos consultados (Teixeira, 2001; Souza e Garnelo, 2007; Melo, Maciel e Neves, 2009; Souza, Dernandes e Garnelo, 2010; Maciel et al 2012) destacam que o álcool era tradicionalmente consumido nas festividades e rituais e se constituía importante elemento da vida social uma vez que se configurava como um dos elementos que contribuía para construção da coletividade e para reafirmação dos valores do grupo. Estudos demonstram que ainda hoje algumas culturas mantêm essa tradição. Segundo Maciel et al (2012), para etnias como os Kaingang, residentes na região sul do Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas em festas se relaciona com a intensificação das relações sociais. Entretanto, publicação de Langdon (2001) já alertava para o uso não ritualístico do álcool em comunidades indígenas. Dez anos depois, Melo, Maciel, Oliveira e Silva (2011) ponderando dados em população aldeada no Mato Grosso do Sul, confirmam que nas comunidades indígenas, o consumo do álcool está distanciado da cultura e dos rituais, tendo hoje um consumo abusivo.

    Antes de sofrer as influências das populações externas, as sociedades nativas impunham limites claros ao consumo de bebidas alcoólicas. Tais restrições configuravam o controle social da embriaguez, mecanismo considerado completamente perdido com o processo de colonização (Fernandes, 2002).

    Um importante mecanismo de controle do consumo do álcool nas comunidades indígenas consumidoras de caxiri (bebida alcoólica produzida a partir de fermentação da mandioca) foi citado por Fernandes (2002); Souza e Garnelo (2007); Souza, Schweickardt e Garnelo (2007). Mencionam os autores que tradicionalmente a ingestão da bebida se dava durante as festas, que duravam dias e terminavam quando a quantidade preparada de bebida se esgotava. Assim, o consumo do caxiri até seu término, se constituía principal mecanismo regulador da quantidade de bebida ingerida. Entretanto, em algumas etnias a cachaça também passou a ser consumida nas festividades. De acordo com Souza e Garnelo (2007) determinadas etnias do Alto Rio Negro adotaram a lógica de consumo do caxiri para bebidas destinadas. Dito nas palavras dos autores “A lógica de consumo do caxiri até o seu término foi transposta para a cachaça”.

    Mudanças no significado do consumo de bebidas alcoólicas trazem consigo diversas perdas sociais para os povos indígenas, a exemplo dos mecanismos de regulação da quantidade de bebida ingerida. Finalizando este ponto, recorremos a Fernandes (2002). O autor pontua que o alcoolismo é uma conseqüência da desagregação destas sociedades imposta pelo contato com o não índio.

    O contato interétnico favoreceu o acesso a bebidas alcoólicas não tradicionais nas aldeias indígenas. Na região Sul do Brasil, a introdução de bebidas destiladas na época da colonização e “conquista”, marcaram uma desestruturação entre os grupos indígenas (Teixeira, 2001). Complementando este enfoque Fernandes (2002) pontua que o contato interétnico utilizando as bebidas alcoólicas como moedas de troca, fomentaram o consumo etílico nas sociedades indígenas brasileiras.

    Em outro contexto, Fernandes (2002) discute a mudança do tipo de bebida alcoólica ingerida nas aldeias. O autor menciona a influência européia na ingestão de bebidas destiladas. Estas bebidas possuem um poder dopante e debilitante bem maior que as fermentadas ingeridas tradicionalmente pelos indígenas. Fernandes (2002) afirma que a mudança no tipo de bebida contribuiu para o uso abusivo do álcool nas comunidades indígenas.

    Souza et al (2005) reforçam o dizer de Fernandes (2002) sobre a inserção de bebidas destiladas nas aldeias. Ao abordarem os aspectos relativos aos significados da ingestão de álcool para os indígenas, destacam a diferença entre o uso de bebidas fermentadas e destiladas. A discussão sobre esta diferença é relevante na medida em que o primeiro tipo de bebida faz parte de tradições bastante antigas de algumas culturas; e o consumo, pode ser fundamental para a estrutura social dessas comunidades. No caso dos Kaingang, o uso das bebidas fermentadas foi sendo substituído pelo consumo de bebidas destiladas fabricadas em alambiques (Souza et al 2005). Entre os Potiguaras, etnia localizada no estado da Paraíba, observa-se que o uso/abuso do álcool está disseminado na comunidade; e o consumo se dá desvinculado dos rituais e inserido na vida cotidiana. Neste contexto verifica-se o uso/abuso das substâncias destiladas, com prevalência da cachaça/cana/aguardente (Melo, Maciel, Oliveira e Silva, 2011).

    No contexto do consumo de álcool em populações indígenas, Melo et al (2011) acercam-se a este tema focando um aspecto não mencionado pelos demais autores. Trata-se da abordagem do alcoolismo ligado a questões socioculturais e econômicas, tais como a ociosidade e a baixa qualidade de vida. Este destaque das autoras considera o consumo do álcool como consequência e como origem de diversos problemas das comunidades indígenas. A partir do contato interétnico verificou-se não só alterações no significado da ingestão de bebida alcoólica e no tipo de bebida, mas, sobretudo transformações nos contextos social e cultural, que se refletem na fragilização do modo tradicional de vida e em última instância, no cotidiano destas populações. Melo et al (2011) reforçam: o alcoolismo é construído através do tempo e do contato entre sociedades não paritárias e diferenciadas.

Prevalência do alcoolismo em aldeias

    Parece ser consenso entre os estudiosos sobre o tema que consumo das bebidas alcoólicas pelos indígenas está crescendo cada vez mais no Brasil (Souza et al, 2005). Seguem os estudos localizados que contribuem para esta afirmativa.

    Fernandes (2002), em estudo nas comunidades consumidoras de Caxiri, adverte que como resultado da fragilização cultural das distintas etnias, o consumo de cachaça está sendo iniciado cada vez mais cedo. Um dos costumes que se dissipa é o controle no início da ingestão de Caxiri. Historicamente o início do consumo desta bebida representava a passagem da infância para a vida adulta, entretanto, na atualidade observa-se o uso da bebida fora de ocasiões ritualísticas. Associada a esta mudança adiciona-se o consumo de bebidas não tradicionais quando o Caxiri acaba.

    Publicação de Souza et al (2007), confirmam os estudos de Fernando (2002). A ingestão da cachaça é cada vez mais precoce entre as populações indígenas e as tradições que permeiam o uso das bebidas tradicionais estão perdendo o seu significado e importância. O consumo do álcool como um dos elementos de rituais tradicionais, está sendo substituído pelo uso indiscriminado de bebida destilada.

    Souza et al (2010) chamam a atenção para a vulnerabilidade dos jovens indígenas frente ao apelo social do consumo etílico. Mencionam os autores que a inserção dos jovens indígenas no contexto social como um todo é precária, e ao mesmo tempo os mesmos estão inseridos em múltiplas redes de interação social que tem consumo grupal de bebidas alcoólicas. Neste contexto, fazer uso da bebida pode significar um mecanismo de alianças entre os pares ou por outro lado, uma demonstração de virilidade.

    Melo, Maciel, Oliveira e Silva (2011) em pesquisa junto aos Potiguaras, evidenciaram que 41,8% da amostra estudada tem pelo menos um membro da família consumidora de bebidas alcoólica; a maioria ingere bebidas destiladas e o consumo se inicia até com 10 anos de idade. Dos 55 entrevistados, 27,3% afirmou que a bebida traz diversos problemas para toda a família, inclusive a morte. A amostra apresenta também 5% de casos de indivíduos com cirrose hepática. As consequências do consumo de álcool observadas pelos autores do estudo foram as seguintes: 82% de problemas sociais, 49% de problemas automobilísticos, 80% de problemas orgânicos, que incluem 42% de morte, inchaço, problemas no fígado e fraqueza. Problemas familiares foram apontados 35,6% e problemas psicológicos por 17,8% da amostra. Pontuam os autores que o consumo de bebidas alcoólicas na etnia Potiguara ocorre de forma abusiva e precoce, necessitando-se de um trabalho mais efetivo de prevenção e de resgate da cultura dessa comunidade.

Estratégias de intervenção e tratamento do alcoolismo em comunidades indígenas

    A maioria dos autores consultados cita que o problema de alcoolismo entre comunidades indígenas deve ser visualizado levando-se em conta as características culturais de cada população e a multivariedade do fenômeno etílico. Segundo Souza, Dernandes e Garnelo (2010) os estudos que abordam este campo através das ferramentas da epidemiologia se mostram pouco eficazes em apreender a multivariedade do real e incorporar dimensões subjetivo-valorativas e culturais que são essenciais para a compreensão dos fatores que influenciam a produção da saúde e da doença.

    De acordo com Guimarães e Grubits (2007), há uma necessidade de intervenções específicas nas comunidades indígenas, pois a questão do alcoolismo e da violência pode ter significados e interpretações diferenciadas para cada grupo étnico. O alcoolismo não deve ser visto de forma isolada, mas considerar o contexto sociocultural no qual está inserido. Maciel et al (2012) ainda enfatiza a necessidade do conhecimento da diversidade social e da cultura indígena para que a atuação e intervenção dos profissionais de saúde sejam realizadas.

    Melo et al (2011) destacam a importância de se considerar o campo coletivo-social nas estratégias de intervenção ao consumo do álcool nas comunidades indígenas. Já Langdon (2001) enfatizou a necessidade de se deslocar o alcoolismo do campo individual/universal para o campo coletivo, cultural e multifatorial. Também explica que a maneira como se bebe e quanto se bebe nas culturas indígenas é definida pelas especificidades da etnia.

    Vianna et al (2012) contextualizam o tratamento etílico na atuação psicológica. Destacam a importância de se levar em conta que o índio não é um ser genérico, e que cada um possui sua singularidade, assim como cada etnia.

    Segundo Langdon (2001), o consumo de bebidas alcoólicas na população indígena é marcado por desconhecimento e falta de estudos que dimensionem o fenômeno. A escassez de conhecimento limita o desenvolvimento de ações preventivas e de propostas de trabalho adequadas à população indígena. Passados dez anos, Melo et al (2011) reafirmam o que foi dito por Langdon (2001), sobre a necessidade de mais estudos voltados ao fenômeno do consumo abusivo de álcool por indígenas. Tais estudos podem contribuir na compreensão do uso do álcool nas comunidades indígenas e dos problemas de saúde vinculados. Sabe-se que os conhecimentos produzidos pelas pesquisas podem servir de base para a implantação de serviços de atenção básica à saúde acerca desta problemática.

    Souza (2001); e Melo, Maciel e Neves (2009) abordam as estratégias de intervenção e tratamento do alcoolismo em comunidades indígenas sob uma ótica distinta dos demais autores. Mencionam a relevância de ações preventivas no combate ao consumo abusivo de álcool nas aldeias. No que parece se identificar com esta abordagem, Souza et al (2007) ressaltam que algumas comunidades indígenas estão se mobilizando e se sensibilizando a respeito da problemática do consumo de bebidas dentro das aldeias. Pontuam os autores que um dos fatores relacionados a esta mobilização decorre da carência de profissionais de saúde.

    Orientados por Souza (2002), verifica-se que existem diferentes modelos de tratamento que seguem princípios que devem ser lembrados: a) não existe modo único ou infalível; b) as abordagens devem ser simples e as mais seguras possíveis; c) a atuação médica deve ser preponderante nas fases agudas; d) os familiares devem ser envolvidos na reabilitação; e) devem contar com organizações não-oficiais e serem estimuladas novas (opções) alternativas de tratamento.

    Maciel, Oliveira e Melo (2012) apontam que uma das dificuldades no tratamento do alcoolismo nessas comunidades estão relacionadas a visão do alcoolismo, suas causas, consequências e tratamentos totalmente ancorados nas questões culturais do homem não índio. Nesse sentido, o enfoque do problema ocorre desvinculado da cultura indígena o que resulta contraproducente para a obtenção de resultados satisfatórios. Segundo os autores, outra dificuldade é o total desconhecimento dos profissionais de saúde acerca das redes de serviços disponíveis para tratamento/ acompanhamento dos usuários que se tornaram dependentes.

    Ainda sobre as dificuldades do tratamento de alcoolismo em populações indígenas, Maciel, Oliveira e Melo (2012) destacam a falta de conhecimento dos profissionais acerca da diversidade social e cultural indígena, aspecto essencial para as intervenções que visam o resgate da cultura, a solução dos problemas relacionados ao alcoolismo e o aumento da qualidade de vida dessas populações.

    Sobre a importância dos conhecimentos dos profissionais relativos a diversidade da cultura indígena, Maciel, Oliveira e Melo (2012) consideram que conceito de representações sociais e sua relação com o alcoolismo, são fundamentais para as intervenções nas comunidades indígenas. As representações sociais consistem na compreensão e explicações feitas a partir de uma releitura significativa do mundo, com uma linguagem compartilhada com os outros membros do grupo social em que estão inseridos. O conhecimento sobre as representações sociais no contexto da cultura indígena e sua aplicação nas estratégias de tratamento do alcoolismo além de contribuir para o reconhecimento da identidade coletiva e individual e do fortalecimento organizacional, cultural e social indígena poderá somar no resgate da cidadania. Ressaltam ainda os autores a necessidade imperativa de mais pesquisas que permitam o melhor dimensionamento do problema, bem como a caracterização das especificidades culturais de cada etnia.

Atuação da psicologia na prevenção e tratamento do consumo abusivo de álcool em comunidades indígenas

    Dentre os materiais analisados não foi localizado nenhum modelo ou relato de experiência de ação preventiva ou de tratamento voltado ao consumo etílico em populações indígenas. Entretanto, a literatura consultada sinaliza caminhos para se chegar a tais metas.

    De acordo com Loureiro (2010) no campo de atuação da Psicologia, em uma situação de dependência alcoólica, a intervenção deve considerar como o paciente experimenta no seu funcionamento psíquico, os laços diretos de pertencimento, sua relação com os pais, irmãos de sangue e filhos; deve apreciar ainda, como funciona o psiquismo de um índio e quais são suas representações afetivas e seus possíveis conflitos.

    Outra contribuição da Psicologia no tratamento do uso/abuso do álcool consiste em uma sensibilização para a busca de uma ressignificação da identidade indígena. Silva (2010) enfatiza que é importante reconstituir a trajetória histórica da população indígena para que se possa compreender o processo de formação e transformação da sua identidade. Outra reflexão feita pelo autor refere-se à consideração que deve ser levada sobre a identidade cristalizada e projetada nessa população pelo imaginário da sociedade moderna. Neste contexto, é importante conceber a identidade como algo fluída, construída e reconstruída em seus espaços temporais incorporando a idéia de novas crenças, ressignificações e de abandono de certas práticas e costumes.

    Além de considerar a identidade da etnia, outro fator importante no campo de atuação da Psicologia em uma situação de dependência alcoólica é apreciar a cultura da comunidade. O ser humano costuma ter muitos comportamentos e sentimentos de acordo com a cultura que o cerca. Esta observação se aplica tanto para o indígena quanto ao homem não-índio. De acordo com Valsiner (2012), a noção de cultura tem uma longa história no pensamento social e na psicologia adota vários sentidos devendo todos eles ser considerados.

    Considerando o foi dito por Valsiner (2012), pode-se traçar algumas pistas para a atuação do profissional de psicologia na prevenção e tratamento do consumo abusivo de álcool em comunidades indígenas. Uma delas, poderia ser estudar e analisar o comportamento de determinada etnia a partir da cultura que o cerca, objetivando verificar o melhor meio de intervir e realizar ações psicoeducativas com a comunidade indígena. Neste contexto, diversos temas podem ser explorados, inclusive o alcoolismo.

Análise dos dados

    Entre os artigos analisados que abordam o consumo do álcool nas comunidades indígenas verificou-se predomínio a alusão da influência do contato destes povos com a sociedade não indígena. Há concordância entre todos os materiais consultados que o contato interétnico não só transformou as motivações para o consumo de bebidas alcoólicas e os tipos de bebidas ingeridas, mas resultou em influências relevantes na vida social, econômica e cultural das populações indígenas. Essa aculturação, por sua vez, resultou num processo de despersonalização e desconstrução de uma dinâmica social que resultou em prejuízos a qualidade de vida destes povos.

    Relativo à prevalência do alcoolismo em aldeias, somente o estudo de Melo, Maciel, Oliveira e Silva (2011) apresentam dados quantitativos específicos sobre a questão. As demais publicações consultadas fazem referência a importância de se levar em conta as características culturais de cada população e a multivariedade do fenômeno etílico, mas não abordam a temática da prevalência propriamente dita.

    Verificou-se escassez de estudos epidemiológicos voltados a prevalência de alcoolismo em comunidades indígenas. Apesar de Souza (2002) e Souza, Dernandes e Garnelo (2010) argumentarem que os estudos da epidemiologia se mostram pouco eficazes em apreender a multivariedade do fenômeno, não se pode desconsiderar que se trata de uma ferramenta fundamental na elaboração de políticas públicas de combate e prevenção de patologias. Embora se reconheça que a compreensão do alcoolismo em comunidades indígenas passa necessariamente pela concepção de que o contexto sociocultural é multifatorial conforme designa Souza (2002), e que as estatísticas epidemiológicas não alcançam tal profundidade, estudos epidemiológicos permitem identificar populações e fatores de risco oferecendo subsídios importantes para combate efetivo do problema. Nas publicações analisadas não se observou nenhuma estratégia efetiva para substituição dos estudos epidemiológicos.

    Souza (2002) sugere como instrumentos diagnósticos capazes de "identificar" alcoolistas em populações, os chamados instrumentos de “screening” ou de "triagem". Segundo o autor, estes instrumentos associados a diversos elementos adequados a informações demográficas, ocupacionais e outras, permitem a obtenção de dados apropriados para subsidiar programas de tratamentos ou de prevenção. Entretanto, Souza, Schweickardt e Garnelo em 2007 concluíram que na população indígenas estudada, a utilização do CAGE mostrou-se inadequada.

    Segundo a FUNASA (2000), o alcoolismo está entre as enfermidades mais comuns nos grupos indígenas brasileiros, com destaque para as regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Estes dados, apesar de superficiais, indicam que ainda hoje a ferramenta disponível para o combate e prevenção do uso/abuso de bebidas alcoólicas nas diferentes comunidades indígenas bem como a identificação dos fatores de risco é a epidemiologia.

    Verificou-se predomínio de publicações que mencionam a importância de se levar em consideração o contexto sócio-cultural que a população indígena está inserida, assim como a importância do contexto coletivo para a influência do comportamento individual. Entretanto, são escassos os estudos voltados ao uso de álcool nas populações indígenas na referida abordagem.

    No âmbito da psicologia, nenhuma publicação foi localizada abordando esta área de conhecimento na prevenção e tratamento do uso/consumo de álcool em populações indígenas. Embora se tenha conhecimento de que as medidas preventivas são as mais eficientes na obtenção de melhores resultados no combate ao consumo abusivo de álcool, também nenhum estudo foi localizado neste sentido.

    Constatou-se que uma possibilidade para atuação no campo da psicologia, em situação de dependência alcoólica seria compreender como o paciente experimenta no seu funcionamento psíquico os laços diretos de pertencimento, sua relação com os pais, irmãos de sangue e filhos.

    Mesmo sendo o alcoolismo registrado entre as enfermidades mais comuns nos grupos indígenas brasileiros os estudos analisados não dispõem de dados atualizados sobre o consumo de álcool entre estes povos; não abordam os tipos de quadros clínicos existentes nas populações indígenas. Não dão a conhecer quais os casos decorrentes da ingestão excessiva e aqueles considerados dependência da substância.

Conclusão

    O alcoolismo caracteriza-se pela dependência do álcool, prejudicando o indivíduo em diversos âmbitos de sua vida social, familiar, psicológica e na saúde, tanto física quanto mental. A dependência do álcool em comunidades indígenas é apontada nos estudos como consequência do contato que as distintas etnias passaram a ter com os não-índios. As desagregações destas sociedades impostas pelo contato se fortaleceram com o aceso de bebidas destiladas nas aldeias. Além dos prejuízos a saúde da população a mudança de comportamento também influenciou nas tradições e costumes culturais, a exemplo do consumo de bebidas fermentadas com cunho ritualístico.

    Apesar do significado número de estudos e pesquisas a respeito do consumo do álcool e o alcoolismo em diversas etnias, são escassos aqueles que avançam na discussão/proposição de estratégias de intervenções nas aldeias por parte dos profissionais da saúde, seja de forma preventiva ou de tratamento. Não foram localizados estudos experimentais ou relatos de experiência que poderiam contribuir para a formatação de estratégias gerais no combate ao fenômeno do alcoolismo. Sabe-se que as intervenções comumente utilizadas na cultura do não-índio repercutem pouco ou nenhum efeito positivo junto a populações indígenas. Isto porque, as estratégias devem ser específicas para cada etnia, respeitando às diferenças culturais de cada grupo

    Desta forma, os profissionais da saúde, em particular, os psicólogos, para realizarem algum tipo de intervenção, devem pesquisar a respeito da cultura de cada população que irá atuar (seus costumes, tradições, sua dinâmica). Levantamentos desta natureza deverão oferecer subsídios para pensar e preparar atividades mediadoras em relação ao alcoolismo de acordo com a cultura de cada etnia.

    Deduz-se que o êxito na prevenção e tratamento do consumo abusivo de álcool em comunidades indígenas passa necessariamente pelo respeito a cada etnia que o psicólogo ou o profissional de saúde das distintas áreas de conhecimento pretendem atuar. Considerar a etnia significa respeitar a singularidade e as tradições individuais e únicas de cada grupo; significa superar a visão que o índio é um “ser genérico”, que tem as mesmas características, independente da etnia na qual ele faça parte. Cada grupo indígena possui uma subjetividade grupal, características que a diferem de outros povos. Analisando-os individualmente, o psicólogo poderá mediar adequadamente a situação do alcoolismo em um grupo indígena, podendo assim, proporcionar uma melhor qualidade de vida àquela população.

Bibliografia

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