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Aproximações etnográficas entre skate e futebol

Enfoques etnográficos en el skate y el fútbol

 

Mestre em Ciências do Movimento Humano

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

(Brasil)

Marcelo Rampazzo

rampazzo1842@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          O presente artigo trata de como as pesquisas etnográficas sobre futebol contribuem para descrever, e tornar inteligível um contexto esportivo estranho para este pesquisador: o skate. Diante disso, recorro a pesquisas já consolidadas e reconhecidas pelas suas contribuições etnográficas, para compreender o esporte em sua diversidade de contextos e significados. Recorro a algumas reflexões metodológicas que tenho em comum, entre minha pesquisa com jovens praticantes de skate, e aquelas apontadas pelos pesquisadores do futebol. Ao longo da escrita, descrevo e interpreto algumas possibilidades de categorização, e transferências de interpretações, que possibilitam dar inteligibilidade o contexto do skate, aproximando-o das reflexões sobre futebol.

          Unitermos: Etnografia. Esporte. Skate. Futebol.

 

Resumen

          En este artículo se aborda una investigación etnográfica sobre cómo el fútbol contribuye a describir y hacer inteligible un contexto deportivo extraño para este investigador: el skate. En este sentido, me oriento hacia investigaciones ya consolidadas y reconocidas por sus contribuciones etnográficas para entender el deporte en su diversidad de contextos y significados. Me oriento hacia algunas cuestiones metodológicas que hay en común entre mi investigación con jóvenes patinadores de skate, y los señalados por los investigadores de fútbol. A lo largo del escrito, describo e interpreto alguna posibilidad de categorización, y las transferencias de las interpretaciones que permiten la comprensión del contexto skate, cercano a las reflexiones sobre el fútbol.

          Palabras clave: Etnografia. Deporte. Skate. Fútbol.

 

Recepção: 30/03/2015 - Aceitação: 23/04/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 203, Abril de 2015. http://www.efdeportes.com/

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    Início este trabalho descrevendo algumas das obras, que primeiramente me ajudam a compreender a sociedade a partir de noções da Sociologia e da Antropologia discutidas em uma disciplina, no segundo semestre de 2011, para posteriormente situar o esporte, mais especificamente os esportes que me proponho a trabalhar nesta obra (o skate, e o futebol).

    Cito primeiramente a tese de Mascarenhas (2002), o autor faz um resgate histórico e geográfico de como o futebol primeiramente chega ao Rio da Prata, mais especificamente as cidades de Montevidéu e Buenos Aires, sendo trazido pelos ingleses que atracavam suas embarcações nos portos destas cidades. Levavam além do fluxo de mercadorias, o esporte moderno no caso o futebol. Os ingleses enquanto ficavam nas cidades para desembarcar suas mercadorias, tinham como momento de descontração a prática do futebol, para exibição e disseminação do mesmo.

    Já nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, foram privilegiadas dentro do contexto brasileiro. O simples interesse do imperialismo britânico não seria potencialmente influente na inserção do futebol em uma cultura brasileira auto-referenciada e socialmente auto-segregada. Mascarenhas (2002) compreende que os tradicionais agentes de difusão mundial do futebol não poderiam alcançar no Brasil uma plena cobertura do território, abrindo plenas possibilidades de outros agentes externos difundirem esta inovação.

    A obra de Damatta (Antropologia do óbvio, 1994) em que autor procurou traçar ar linhas de uma “identidade brasileira” pelo futebol, mostrando as relações entre o significado do futebol (enquanto esporte moderno imbuído de valores liberais, como a meritocracia e a competição) na sociedade brasileira em relação com o Estado, e como esses significados uniam os diferentes. “De fato, o futebol ajuda uma coletividade dividida a afirmar-se como uma coletividade capaz de atuar de modo coordenado, corporadamente e eventualmente vencer” (Damatta, 1994, p.16). Para Damatta, as regras do futebol permitem que aqueles desprovidos de poder e de riqueza no seu cotidiano, pelo futebol, possam se sentir em igualdades de condições, “o futebol nos apresenta um espetáculo no qual vencedores e perdedores se alternam sistematicamente [...] portanto, só com o futebol conseguimos, no Brasil, somar Estado nacional e sociedade” (Damatta, 1994, p.17).

    Neste artigo, procuro usufruir de trabalhos etnográficos sobre futebol para, a partir deles, compreender o skate enquanto prática no lazer dos jovens. Trabalhos estes que são diversos em suas abordagens, e que foram realizados em diversos contextos futebolísticos. A partir disso procuro levantar a seguinte indagação: Como as pesquisas etnográficas sobre futebol contribuem para compreender o contexto de jovens praticantes de skate?

Reflexões metodológicas

    O que suscitou a pensar nesta questão sobre as contribuições das pesquisas etnográficas sobre o futebol, e como estas pesquisas ajuda-me compreender o skate? Isso se deve, pois entendo como hegemônicas as pesquisas no que tangem as discussões sobre esporte numa perspectiva sociocultural, que tem como metodologia de pesquisa a etnográfica. Nessa direção, opto por analisar estudos de caráter etnográfico, pois, também é o método pelo qual realizei minha pesquisa com jovens praticantes de skate, na cidade de Porto Alegre. Por ser minha primeira empreitada e uma pesquisa etnográfica, procurei sustentação em pesquisas etnográficas que tiveram como objeto de seus estudos o esporte. Busquei em trabalhos já consolidados e reconhecidos no meio acadêmico, como as pesquisas de: Damo (2002; 2005), Stigger (2002) e Toledo (1996; 2000).

    Procuro objetivamente, compreender como essas pesquisas sobre futebol e contribuem para que eu possa descrever e interpretar minha pesquisa com jovens praticantes de skate, fazendo as articulações e possíveis transferências de categorização.

    Compreender o skate a partir do futebol, foi-me suscitado em uma de minhas observações no campo. Em um diálogo com jovens praticantes de skate, a cada momento em que os jovens falavam e me explicavam o skate, eles remetiam a uma analogia com o futebol. Isso se deu, a partir do momento que, identifiquei-me como pesquisador na área da Educação Física, mas que não tinha nenhuma vivência, ou familiaridade com o skate. Os jovens praticantes de skate usavam explicações sempre remetendo, ou comparando o skate com o futebol, a fim de, fazer com que um leigo sobre o skate (no caso eu), pudesse minimamente compreender o que o skate significava para eles.

Observação e estranhamentos aos esportes

    O primeiro elemento que abordo neste artigo é o estar em campo, ou seja, é a materialização da pesquisa que num primeiro momento se deu por levantamentos teóricos do contexto (skate, ou futebol) e sujeitos (jogadores, boleiros, espectadores jovens/juventude, trabalhadores que vivem de determinado esporte, etc.) que foram pesquisados. Para que se seja possível de entender um determinado contexto e os sujeitos que fazem parte dele, se faz necessária a observação (direta/participante), sendo esta construída por técnicas de observação e inserção no contexto, mas também sendo característica desta técnica de pesquisa os seus percalços como, por exemplo, a familiaridade e o estranhamento. A partir disso também discorro primeiramente o contexto de minha pesquisa, os “achados” e as “perdas”, e a catarse que o campo me suscitou, compreendendo o skate pelas pesquisas sobre futebol.

    Em minha pesquisa de campo fui estudar os jovens praticantes de skate, e a partir disso em minha dissertação procurei questionar: Quais os significados estão em disputa entre os jovens que praticam o skate, e como esses significados fazem parte de seu cotidiano?

    O maior problema que considero para esta pesquisa não é, não ter familiaridade nenhuma com o skate (enquanto prática ou estilo de vida), mas o que me suscitou e possibilitou essa empreitada nem um lugar totalmente estranho (a pista de skate), foi que este era um espaço público, apesar do “caos” que vi em minha primeira observação (e por vezes em algumas outras observações), entendi que aquele lugar seria possível de dar a ele uma inelegibilidade, que talvez sem a observação sistemática da pista e dos sujeitos não seria possível.

    Optei primeiramente fazer observações mais gerais da pista, do que observações mais pontuais dos sujeitos. Com isso imprimi quase que um roteiro de observação, no qual eu circundava os espaços da pista, observando os diferentes sujeitos que faziam parte daquele contexto. Inicialmente subdividi os sujeitos da pista em três grupos distintos: Os espectadores; as pessoas que vivem do skate; os praticantes do skate. Toledo (2000) contribui a fazer essa distinção que o mesmo faz para sua pesquisa sobre futebol, mas que posso transferir para o skate em seu sentido, sendo reelaborada a partir do meu contexto de pesquisa: “Quando se está utilizando das categorias profissionais, torcedores ou especialistas como nativas isto não sugere que sejam consensuais entre os próprios ‘nativos’, ao menos tomando todos os níveis do campo esportivo” (Toledo, 2000, p.18).

    Defino brevemente cada um destas subcategorias de sujeitos que freqüentam a pista: Os espectadores são formados geralmente por pais e/ou avós (adultos) que trazem seus filhos a pista, ficam a cuidá-los, observá-los. Essa pesquisa em campo foi realizada na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, tornou-se recorrente observar os espectadores com cuias e erva-mate, para seu chimarrão, estas podendo ser vistas com mais recorrência no inverno, mas com menor recorrência também estão presentes no verão.

    Já as pessoas que vivem do skate1, não necessariamente andam ou praticam o skate. São os comerciantes do skate, como a família que tem uma Van que vende cachorros-quentes, refrigerantes e outros produtos comestíveis, algo muito semelhante ao que Toledo (2000) encontra quando pesquisa o futebol:

    “o tradicional comércio, nem sempre formalizado, que atende aos torcedores, barraquinhas de sanduíches e bebidas, venda de coloridos souvenires de todas as espécies, adereços que alimentam a emoção torcedora, bandeiras, bonés camisas, qualquer objeto que suportasse o distintivo do clube” (Toledo, 2000, 109-110).

    Também na pista, encontram-se aqueles que têm um comércio voltado para o skate, com venda de peças (shapes2, rodinhas, rolamentos, trucks, etc.) e acessórios (bonés, camisetas, tênis, etc.). Especificamente cada um destes comerciantes de produtos voltados para o skate, é de uma loja específica e distinta em relação às outras. Isso faz com que seu público consumidor seja distinto, e que estes procurem de certa forma, se filiar à imagem de uma ou outra loja. E claro, a loja procura filiar os praticantes por patrocínios a alguns skatistas, formando o quê os nativos chamavam de times ou equipe. Essa relação entre mercado e praticantes, ajuda-me posteriormente a compreender como os grupos se formam.

    Os praticantes de skate, uso essa definição em minha pesquisa, e não skatista, pois assim, como Bastos (2006) minha intenção não é definir quem é ou não é skatista, dizendo que todos que tem um skate nos pés são skatistas, apesar de suas próprias definições de ser skatista, já que por definição própria todos são skatistas. “Nenhum skatista pode ser mais skatista que outro, mas podem ser diferentes” (Bastos, 2006 p.68). Diante do que relatei em momentos anteriores nesta escrita, o objetivo é compreender como os significados da prática do skate fazem parte do cotidiano dos jovens. Diante de minhas limitações no que tange uma (não) vivência anterior no skate, pelos meus objetivos da dissertação, e por essa “diferença” entre estilo de vida de ser skatista, criei a categoria que denominei de praticantes de skate. Assim, pela catarse que tive ao longo do processo de pesquisa, entre estar em campo e algumas leituras, pude relacionar os praticantes de skate com o senso prático.

    Este senso prático que é produzido, reproduzido, convertido pelos jovens praticantes de skate manifestado pelo corpo, dotando “o corpo do senso prático exigido pelas performances é dotá-lo de um senso preciso das múltiplas relações de espaço e de tempo, a que os futebolistas denominam seguidamente como ‘momento’” (Damo, 2005 p.285), mas que na pista de skate, são traduzidas pelas manobras que os praticantes fazem com o uso de seus skates, nos diversos espaços da pista.

Skate e futebol: práticas esportivas

    Um ponto significativo para mim ao longo da pesquisa foi justamente no dia que tive o auxílio fundamental de meu orientador que foi comigo em uma das observações. O professor interrompe um grupo de jovens indagando-os: Tudo bem pessoal? Nós estamos fazendo uma pesquisa com os skatistas aqui da pista, vocês poderiam nos responder umas perguntas?

    Nisso, um jovem praticante prontamente responde: “Nós não somos um bando de vagabundo, apesar de todo mundo fala isso”. Com essa resposta os risos são inevitáveis. O sujeito que fala isso é Everton3: “ia ser bom fazer um trabalho sobre a gente, porque todo mundo nos vê como vagabundo. Eu por exemplo, não faço nada, mas eu ganho dinheiro pra anda de skate” (DC4 15/10/2011). E os jovens praticantes daquele grupo que esta a sua volta falam algumas frases: “ele ganha pra andar de skate”, “ele tem patrocínio”, “tem uma marca que banca ele”.

    Em seguida, o professor insiste novamente no questionário falando: Eu sou professor da Educação Física da Universidade e esse aqui é meu orientando e nós estamos fazendo uma pesquisa com os praticantes de skate aqui da pista. Nossa intenção é mostrar como é esse mundo do skate, e quem são as pessoas que estão nesse mundo, o que elas fazem.

    No momento em que o professor fala em mundo do skate Jeferson (um dos jovens que ali estava) fala:

    “Bah o skate é um mundo a parte ele é separado de tudo”. Paulo (outro jovem): “É o skate é um mundo ‘deslocado’ de todo o resto”. E nisso André (mais um integrante daquele grupo) que estava mais próximo de mim me diz: “é por isso que as pessoas não nos entendem, por que é um mundo muito distante do que eles vivem no dia a dia, o skate é uma coisa nossa ‘ta ligado’!?” (DC 15/10/2011).

    Com esse estranhamento e tentativa de desvencilhar o skate de uma imagem de preconceito com o mesmo, ocorre durante o tempo todo que estamos aplicando os questionários e fazendo a observação. Conforme vão surgindo às perguntas do questionário, também vão surgindo explicações as suas respostas e brincadeiras, e algumas respostas tem a ajuda de seus amigos. Quanto ao questionário acredito ser interessante ressaltar que seu intuito não era o de trazer dados numéricos para a pesquisa, mas sim de ter acesso a algumas informações pertinentes à pesquisa, como por exemplo, uma das questões que eu questionei aos jovens: Você pratica algum outro esporte? As respostas que recorrentemente apareceram foi o “não”, mas com alguns relatos (além das perguntas e respostas diretas: não) os jovens explicitavam: “Já joguei bola [futebol] no tempo de escola”; ou “só ando de skate mesmo”.

    Bah tu pode ver né, tipo o Ronaldinho. Quando ele da uma bicicleta ou faz um golaço, todo mundo acha bonito, fica de pé e aplaude. Aqui é a mesma coisa, quando um cara acerta uma manobra “ralada pra caralho” gente fica de pé aplaude, assovia, faz de tudo pra reconhece o esforço do cara, a única coisa é que não tem o mesmo público, mas o sentimento de ver um cara fazendo um gol de bicicleta e outro acerta uma manobra difícil é o mesmo. Mas por exemplo os torcedores no estádio. Cada torcida torce pro seu time, e não vai comemora se o cara do outro time fizer um golaço de bicicleta, cada uma pro seu lado. Mas aqui não! Agente torce, a gente reconhece o cara que acerta as manobras mais difíceis, aqui a gente não tem time, o nosso time é ver as melhores manobras (DC. 15/10/2011).

    Pelos relatos dos jovens eles projetam suas explicações do skate a partir e em comparação com o futebol profissional, ou, de espetáculo. E apesar de os mesmos sujeitos terem consciência de que o skate não tem o mesmo reconhecimento do que o futebol em suas concepções, o ponto máximo de êxtase do acerto de uma manobra e o reconhecimento por parte de outros praticantes, se compara a um gol de bicicleta, que pode ser assistido milhares de torcedores em um estádio de futebol. O futebol espetáculo projetado nas explicações dos jovens, compreendo-o a partir da tese de Damo (2005):

    “Sabe-se que os torcedores não vão ao estádio para ver um jogo qualquer, mas para ver jogar e torcer pelo time que representa seu clube. Virtuosismos à parte, o que se espera é que os (seus) atletas representem satisfatoriamente o (seu) clube, razão pela qual eles precisam demonstrar, além dos qualificativos propriamente futebolísticos, uma série de outros atributos visando atender às demandas emocionais dos torcedores. Os jogadores são aqueles que dispõem de dom/talento, uma predisposição inata que, segundo as representações nativas [do futebol], não teria valor e sequer existiria, não houvesse um público para reconhecê-lo, aclamá-lo, reivindicá-lo e remunerá-lo” (DAMO, 2005 p. 61-62).

    Interpretando o relato dos jovens, e a partir da contribuição de Damo (2005), encontro algumas aproximações, mas, também distanciamentos entre futebol espetáculo e a prática do skate pelos jovens.

    O primeiro ponto distinto que é possível de se interpretar é a noção de torcer. Enquanto no futebol cada torcida torce respectivamente para seu time/clube, no skate a torcida, ou melhor, o ato de torcer aparece como uma forma de reconhecimento a realização do outro. Em uma primeira analise os jovens praticantes deixam de lado um pertencimento a uma ou outra “bandeira”, para passar a dar um reconhecimento que é personificado pelo praticante que tem o sucesso na realização de uma manobra, sendo o sentido desta comparada a um gol que seria seu equivalente no futebol.

    Já o segundo ponto, está intrinsecamente ligado ao primeiro: a prática e o talento reconhecidos pelos outros. Pelo relato dos jovens e em vários momentos de observação no campo, pude perceber que se faz necessário um conhecimento prévio do skate se, se quiser torcer por ele, ou seja, o dom/talento que jogadores de futebol e praticantes de skate tem para suas respectivas práticas, ser reconhecidos pelos outros. Pela obra de Damo (2005) isso se faz pelos torcedores, que se doam e desejam o mesmo dos jogadores pelo seu clube, mas que guardada as devidas proporções, no skate quem torce pelos praticantes são os próprios praticantes, pois como relatei anteriormente os espectadores da pista de skate é formado por adultos (pais, avós entre outros) que dificilmente comemoram a realização de alguma manobra, por não serem imbuídos pelo senso prático do skate.

    Nessa direção Damo (2005) expõe a relação entre futebol e o sentido: “aqueles a quem o futebol não faz sentido são os que não o conhecem suficientemente, não foram socializados freqüentando os estádios ou praticando-o, enfim, não foram educados para os sentidos profundos do jogo” [...] (Damo, 2005 p.30). A partir desta relação futebol e o sentido atribuído, posso também concebê-la no skate. Sendo assim o ato de torcer, comemorar, reconhecer a execução bem sucedida de uma manobra fica a cargo dos outros praticantes.

    O skate que é praticado na pista, que em parte, é projetado e comparado pelo discurso dos praticantes comparando o skate ao futebol espetáculo, faz sentido aos sujeitos que comungam além deste discurso e prática. Mas esta prática que vivenciam é realizada em seu tempo livre, no lazer. A procura pela pista se intensifica aos finais das tardes, finais de semana onde a procura pela pista se inicia pela manhã e só termina ao escurecer da noite. Isso se mostra interessante quando o skate é compreendido a partir de uma perspectiva da diversidade/heterogeneidade dos esportes praticados nos lazer que são distintos e diversos, em comparação com os esportes de rendimento, apontada por Stigger (2002).

    Stigger (2002) ao realizar três pesquisas etnográficas em três grupos de contextos diferentes na cidade do Porto/Portugal (Caídos na Praia e Anônimos – futebol; e Castelo – voleibol) mostra no capítulo que trata - Rendimento, sucesso, comparação e acesso - que os esportes praticados por aqueles sujeitos são distintos em relação ao esporte de rendimento que leva em conta a performance dos competidores, fazendo com que hajam vencedores e vencidos, sendo este homogeneizado em algumas analises sociológicas do esporte.

    [...] “em nenhum dos grupos investigados aparece, como regra geral, a valorização dos resultados esportivos dos seus jogos. [...] quando consideram que um jogo é bom [?] [...] não colocaram as vitórias em evidência, mas outros aspectos foram valorizados, como: o fato de o jogo ter ocorrido, a convivência como os amigos, os jogos equilibrados, o divertimento e assiduidade e a continuidade do grupo” (Stigger, 2002 p. 201 destaque do próprio autor).

    Nessa direção apontada por Stigger (2002) é que procuro desenvolver o próximo subitem, levando em consideração que os esportes pesquisados pelo autor foram esportes coletivos (futebol e voleibol), e que eu pesquiso é um esporte individual, mas que essa prática individual não significa necessariamente uma individualidade, muito pelo contrario, no decorrer de minha pesquisa pude perceber como os grupos de praticantes de skate se formam, e a partir de um grupo especifico (os calças coladas) como este se constitui pela pertença, e pela sua distinção em relação a outro grupo (os calças largas).

Os grupos e a pertença

    Anteriormente em um dos diálogos que transcrevi neste texto, um dos sujeitos relatava que “não havia times”, “a gente torce pra todos”, isso até certo ponto faz sentido para aqueles sujeitos, mas também se mostra contraditório, já que no decorrer de nossa conversa naquele dia (15/10/2011), e no decorrer de minhas observações o discurso nós/eles se evidência e acentua com o passar do tempo. Como relatei, minha inserção em campo se deu a partir do contato dos jovens que formam um grupo específico que se autodenomina: “calças coladas”.

    [...] “bom mas só que tem os ‘calça larga’, eles sim torcem só pra um, pra um deles, mas nós aqui não, agente torce pra todo mundo”. Eu fico intrigado com a expressão que ele usa “calça larga” e os questiono: “Por que ‘calça larga’’? Paulo responde: “É eles são os ‘calça larga’ e nos os ‘calça colada’, tipo emo5. Jeferson: “e por isso os ‘calça larga’ não gostam de nós, por que nós gostamos de Rock e eles de Rap, agente aqui torce pra todo mundo e eles torcem só pra um, nós não. Nós viemos mais para cá, por causa da curtição, dos amigos, de esta aqui junto com a galera. Eles vem sempre pra andar e pra mostrar pros outros que eles são os melhores, mas agente não muito preocupado com isso” (DC. 15/10/2011).

    Essa distinção entre nós e eles se traduz da forma mais visível primeiramente pelas roupas, onde os calças coladas usam calças e roupas muito justas ao corpo como. Já os calças largas, além de suas roupa largas, só pude perceber a distinção entre um e outro a partir do momento em que os próprios praticantes daquele contexto me expusessem esses dois grupos distintos entre eles. Claro que na pista ainda há outro grupos, e sujeitos que freqüentam a pista sozinhos, mas só faz sentido se falar em calça colada, a partir de sua distinção entre os calças largas.

    Há uma série de dualismos, que os calças coladas expõe como elementos de distinção entre seu grupo, e o grupo dos calças largas. Há um consumo de alguns elementos, como marca e estilos e, um não consumo de outras. E nessa relação de adesão, e não adesão, são sinais de distinção fundamentais para se compreender a formação dos grupos. A seguir, trago outro trecho de diário de campo, realizado no dia de um evento na pista de skate:

    “Aqui é mais pela sua loja, pela marca, pelo patrocinador, ai tem esses dualismos, tipo Grêmio e Inter. Ou tu gostas de Rap, ou de Rock. Tu és da loja C6 ou da loja D. Tu usa drogas ou tu não usa, tem sempre essas coisas. Nós aqui gostamos de Rock, somos da loja D e não usamos drogas” (DC. 22/10/2011).

    Claro, que esse relato é de um sujeito circunscrito em um grupo específico (os calças coladas), e condicional, já que faz esse relato em um evento organizado pelos patrocinadores dos calças largas, mas que não exclui as possibilidades de se compreender o dualismo de distinção entre os grupos. Neste mesmo evento pude presenciar o que até então ainda não observará que, além dos grupos distintos, neste evento que ocorreu e em outros eventos que pude observar, havia o que os praticantes e locutores dos eventos chamaram de times ou por vezes de equipe.

    Esses times/equipes eram formados em grande parte pelos calças largas (que são sujeitos mais velhos em relação aos calças coladas, e que participam de circuitos profissionais de skate, como o que Bastos [2006] pesquisou) sujeitos que vivem do skate e sustentavam suas práticas pelos patrocínios que recebiam das lojas. Lojas essas que formavam times/equipes com grupo de skatistas experientes, no qual representam essas lojas, ou marcas. Como a prática do skate necessita de alguns equipamentos como: tênis, shape, trucks, rodinhas, além das roupas, as lojas que vendem esses produtos formam esses times/equipes. É claro, que com tantos produtos os skatistas tenham um patrocínio para cada um de seus equipamentos, por exemplo: um praticante pode ter o patrocínio do seu shape da loja H ou D, e o patrocínio da loja L para seus trucks, somado o patrocínio da loja M para suas roupas, além do patrocínio da loja C para seus tênis. Assim, os praticantes mesmo que tenham o patrocínio apenas de uma loja, estes já passam a fazer parte do time/equipe desta. Com isso iniciam-se as disputas, que no cotidiano da pista parecem ser mais simbólicas, mas que nos dias de eventos, se materializa pela competição, acirrando esta disputa.

    A partir disso, posso compreender essa disputa entre os calças coladas VS calças largas, em seus respectivos times, ratificada algumas páginas acima pelo patrocinador dos calças coladas que dizia “ou tu é Grêmio ou tu é Inter”, assim, compreendo essa rivalidade a partir do que Damo (2002) expressa a rivalidade e a disputa entre gremistas VS colorados: “Seja como for, a paixão pelos clubes e a rivalidade entre eles não deixa qualquer dúvida acerca dos motivos pelos quais gremistas e colorados empenharam-se na materialização da uma noção de pertencimento e status que hoje é movido pelo orgulho [...]” (Damo, 2002 p.74).

    Vale lembrar que no dia a dia da pista a disputa entre calças coladas e calças largas é simbólica, e que estes times/equipes organizados em prol de uma marca ou loja, ganham especificidade e notoriedade de suas funções nos dias de eventos, algo semelhante ao que Toledo (1996) relata sobre as torcidas organizadas por eles estudadas: [...] “o momento maior de uma Torcida Organizada são os próprios dias de jogos. Momentos em que a condição de ser um torcedor organizado aciona as marcas distintivas dos grupos, ou seja, marcas de identificação, visibilidade e oposição entre torcedores” [...] (Toledo, 1996 p.52).

    Por fim, vale considerar que estes são apenas alguns elementos de distinção do skate, que pude apreender e explicitar neste momento, os relacionando com alguns elementos de distinção explicitados nas pesquisas sobre o futebol.

Considerações finais

    Nesta pesquisa propus inicialmente a abordar as aproximações etnográficas entre futebol e skate, mas o relendo neste momento final percebo que o que fiz está mais para uma descrição densa do contexto no qual eu pesquisei o skate a partir de trabalhos que tratavam do futebol nas diversas relações com os sujeitos que os pesquisadores classificaram: boleiros, torcedores, especialistas, jogadores, etc. Tentei assim, mostrar algumas proximidades que encontrei entre o skate e o futebol, mas não desconsidero ainda os distanciamentos entre estes temas.

    Mas compreendo indiscutivelmente que os pesquisadores sobre futebol deram grande contribuição, para se compreender o esporte a partir de uma perspectiva sociocultural. Parece-me que a Educação Física há pouco descobre a etnografia como perspectiva de se pesquisar e compreender o esporte, e avançar em uma de suas áreas de conhecimento da Cultura Corporal, que por anos ficou alheia aos pesquisadores da Educação Física, nas quais estes procuravam aterem-se aos debates sobre a saúde, do rendimento/performance, os aspectos biológicos, fisiológicos e mecânicos da prática dos esportes.

    Por fim, vale considerar novamente, que minha pesquisa é circunscrita na especificidade de um contexto de jovens praticantes de skate, em uma pista da cidade de Porto Alegre, e que a leitura/compreensão a partir do futebol, é uma maneira possível que encontrei neste artigo, de dar inteligibilidade aos meus dados de campo.

Notas

  1. Tomo essa expressão de empréstimo de Bastos (2006).

  2. Shape é a tábua onde o skatista apóia os pés (parte superior) para realizar manobras. Os trucks, são os eixos do skate, ficam fixados na base inferior do skate.

  3. O nome deste e de todos os colaboradores da pesquisa são fictícios, exceto os dos pesquisadores.

  4. Diário de Campo.

  5. É um novo estilo de vida dos jovens que tem aparecido mais recentemente nos últimos anos, assim como foram em outras épocas os Punks, os Hippies, entre outros.

  6. Uso apenas a letra inicial de cada loja, ou marca, para não fazer sua divulgação.

Referências bibliográficas

  • Bastos, Billy Graeff (2006). Estilo de vida e trajetórias sociais de skatistas: da “vizinhança” ao “corre”. 174p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humanos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

  • Bourdieu, Pierre (2009). O senso prático. Tradução de Maria Ferreira; revisão da tradução Odacir Luiz Coradini. Petrópolis, RJ: Vozes. Coleção Sociologia.

  • Damatta, Roberto (1994). Antropologia do Óbvio. In: Revista USP, n°22. p.10-17.

  • Damo, Arlei Sander (2005). Do dom à profissão: Uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. 435p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

  • Damo, Arlei Sander (2002). Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre, RS: Ed. Universidade/UFRGS. Coleção Academia.

  • Geertz, Clifford (1989). A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.

  • Mascarenhas, Gilmar (2001). A bola nas Redes e o Enredo do Lugar: uma Geografia do Futebol e seu advento no Rio Grande do Sul. Tese (doutorado). São Paulo: USP.

  • Stigger, Marco Paulo (2002). Esporte, lazer e estilos de vida: um estudo etnográfico. Campinas, SP: Autores Associados, Chancela editorial. Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). Coleção educação física e esportes.

  • Toledo, Luiz Henrique (2000). Lógicas no Futebol: Dimensões simbólicas de um Esporte Nacional. 341p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo.

  • Toledo, Luiz Henrique (1996). Torcidas organizadas de futebol. Campinas, SP: Autores Associados/Anpocs. Coleção educação física e esportes.

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