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Pra frente Brasil! Identidade nacional e futebol: 

enquadramentos, esquecimentos e resistências (1958-1983)

¡Vamos Brasil! Identidad nacional y fútbol: encuadramientos, olvidos y resistencias (1958-1983)

Forward Brazil! National identity and soccer: frameworks, forgettings and resistances (1958-1983)

 

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Pós-doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP)

Docente do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ)

Denaldo Alchorne de Souza

denaldo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Entre 1950 e 1983, o futebol adquiriu uma popularidade jamais vista até então. Neste período, várias representações de futebol e de identidade nacional se firmaram. Neste processo participaram diversos atores sociais como o Estado e a imprensa esportiva. Mas esse quadro não estaria completo se não contássemos com a participação das pessoas humildes, do simples torcedor, dos trabalhadores em geral que tinham concepções diversas de nação e de identidade nacional representadas pelos mitos dos jogadores Pelé e Garrincha. Assim, o principal objetivo desse trabalho é o de compreender como o futebol foi utilizado simbolicamente por diferentes atores sociais na construção da identidade nacional no Brasil durante estas datas.

          Unitermos: Identidade Nacional. Hegemonia. Brasil. Futebol.

 

Resumen

          Entre 1950 y 1983, el fútbol adquirió una popularidad no experimentada hasta ese entonces. Durante este período, se construyeron varias representaciones del fútbol y de la identidad nacional. En este proceso participaron diversos actores sociales como el Estado y la prensa deportiva. Pero este cuadro no estaría completo si no fuera por la participación de la gente humilde, trabajadora, simples aficionados, que tenían diferentes conceptos de nación e identidad nacional representada por los mitos de jugadores como Pelé y Garrincha. Así, el objetivo principal de este trabajo es comprender cómo el fútbol fue utilizado, simbólicamente, por estos diferentes actores sociales en la construcción de la identidad nacional brasileña durante estos años.

          Palabras clave: Identidad Nacional. Hegemonía. Brasil. Fútbol.

 

Abstract

          Between 1950 and 1983, the soccer acquired a popularity never seen till then. In this period several soccer and national identity representations consolidated themselves. At this process took part several social actors like the state and the sports press. But this picture wouldn’t be complete if we didn’t rely on the participation of humble people, the single supporter, the works as a whole who had different conceptions about nation and national identity represented by the myths of Pele and Garrincha players. So, the main target in this work is understand how soccer was used symbolically by different social actors in the national identity building in Brazil during this dates.

          Keywords: National Identity. Hegemony. Brazil. Soccer.

 

Recepção: 14/12/2014 - Aceitação: 09/02/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 201, Febrero de 2015. http://www.efdeportes.com/

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    Na Europa, o debate em torno da importância dos esportes com fins político-ideológicos já estava ocorrendo desde o final da Primeira Guerra Mundial. Países como a Itália e, posteriormente, a Alemanha já utilizavam as atividades desportivas como uma forma de expressão de luta nacional, com os esportistas representando seus Estados ou nações. O futebol, em particular, foi um meio eficiente para inculcar sentimentos nacionais devido a facilidade com que até mesmo os menores indivíduos políticos ou públicos podiam se identificar com a nação. O torcedor também participa do espetáculo, muitas vezes interferindo decisivamente no resultado final. Quando a seleção nacional joga, a imaginária comunidade de milhões parece ainda mais real “na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação” (HOBSBAWM, 1990, p.171).

    O Estado brasileiro não ficou passível diante do fenômeno. Desde o início do século XX, os governantes procuraram se aproximar do fenômeno esportivo (PEREIRA, 2000). Durante o Estado Novo controlar essa prática esportiva passou a ser uma das prioridades dos grupos que ocupavam o poder (SOUZA, 2008). Em 1950, a inauguração do Maracanã estava inserida num projeto político que procurava construir uma imagem do Brasil como país empreendedor, vitorioso e bem-sucedido (MOURA, 1998). Em 1958, 1962 e 1970, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Emílio Garrastazu Médici, respectivamente, participaram ativamente das homenagens prestadas aos jogadores campeões mundiais. Nesses anos, a intercessão entre futebol e interesses políticos se manteve através da construção de discursos que procuravam associar o futebol aos projetos dos grupos que estavam no poder.

    Além do Estado, outros atores sociais também elaboraram discursos de “Brasil” e de “povo brasileiro” que se pretendia construir através do futebol, entre eles: a grande imprensa comercial. Após a década de 1930, surgiram diversos periódicos esportivos, com destaque para o Jornal dos Sports, no Rio de Janeiro, e A Gazeta Esportiva, em São Paulo. A invenção do jornalismo esportivo é paralela à invenção do futebol profissional. De certa forma, “é o jornal que cria a demanda e que produz o evento, quer dizer, torna-o visível como fenômeno político ou nacional” (LOPES, 1994, p. 82). Ou seja ao “reescrever” um acontecimento o jornalista cria o espetáculo esportivo e produz a demanda para esse espetáculo. Ao mesmo tempo, por meio dos cronistas e dos editoriais, passam a defender concepções de “nação” e de “povo brasileiro”, valorizando essa ou aquela equipe, esse ou aquele jogador.

    O que podemos observar, tanto nos discursos produzidos pelos grupos que estavam no poder entre 1958 e 1970, quanto pela grande imprensa comercial no mesmo período, é que um aspecto comum os unificava: a ênfase na idéia da disciplina. O Estado e a imprensa, apesar de construírem múltiplas visões de “Brasil” e de “povo brasileiro, viam a disciplina como uma contribuição positiva do futebol para a consolidação da nação. Uma inspiração teórica comum era Gilberto Freyre que, escrevendo sobre futebol desde a década de 1930, fazia o seguinte comentário:

    Não temos os brasileiros de que nos envergonhar, quando se diz do nosso estilo de jogar futebol que dá demasiada expressão às façanhas dos heróis ou bailarinos individuais. Do que precisamos é de conciliar esse individualismo com a disciplina, sem a qual o esforço de um grupo se degrada, afinal, em histeria anárquica (FREYRE, 1955, p. 22).

    Mas o quadro desse estudo não estaria completo se não contássemos com a participação dos torcedores das classes populares, das pessoas humildes, dos trabalhadores em geral, que tinham concepções diversas sobre nação e povo brasileiros, mas, nem por isso, menos importantes. As nações são fenômenos duais,

    [...] construídos essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, não podem ser compreendidas sem serem analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas (HOBSBAWM, 1990, p.20).

    Porém, existe um problema mais imediato: que fontes utilizar para dar voz às pessoas comuns? Uma forma de suplantar tal dificuldade estaria no estudo dos mitos populares daquele período, procurando saber o que eles representavam para determinados grupos sociais. Já faz algum tempo que um grande intercâmbio entre a História e a Antropologia permitiu transformar mitos em fontes históricas. Mas para que alguém seja considerado mito é necessário que as pessoas acreditem em sua força e em seus feitos. Assim, estabelece-se uma relação na qual o mito passa a ser compartilhado pelo imaginário de um grupo a partir da construção de um modelo exemplar de comportamento (ELIADE, 1992, p.87). O mito não é necessariamente uma história inventada; “é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual, transformando-o na formalização simbólica e narrativa das representações partilhadas por uma cultura” (PORTELLI, 2006, p.121).

    Portanto, nada mais legítimo do que procurar nos esportes os mitos populares construídos pelos próprios trabalhadores. Os esportes sempre foram prodigiosos em produzir heróis. Entre eles, o futebol se destaca como o mais popular. E o que podemos constatar é que os mitos criados pelo futebol nem sempre representaram o que o Estado e até a própria imprensa gostariam. Entre 1958 e 1970, devido à excepcionalidade, à predestinação, à identificação e à provação, dois heróis se tornaram jogadores-símbolo de uma geração, numa espécie de síntese das diversas representações de identidade nacional que coexistiam num mesmo contexto. Estamos falando dos mitos de Pelé e de Garrincha.

Ilustração 1. Pelé com Garrincha (Fatos e Fotos, 15 jan. 1962)

    Pelé simbolizou como ninguém o ideal de brasileiro forjado na segunda metade do século XX. Num país com um secular passado escravista, com um racismo não declarado, hipócrita e muitas vezes subestimado e uma população negra em condições econômicas bem inferiores à média da população nacional, o surgimento de um herói negro, que se orgulhava de ser negro e que se destacava perante todos os outros atletas – brasileiros ou não, negros ou não –, representou uma verdadeira abolição da escravatura social. Se a escravidão jurídica tinha sido abolida pela princesa Isabel em 1888 e a econômica continua em andamento, a abolição da escravidão social teve uma vitória importante com a ascensão da majestade de Pelé e de seu reconhecimento perante os brasileiros e o mundo.

    Mas as concepções de “Brasil” e de “brasileiro” construídas pelos trabalhadores eram multifacetadas. A popularidade e o prestígio de Garrincha, na mesma época em que despontava Pelé, são indícios do que acabei de escrever. Ao contrário do “Rei”, o “Anjo de Pernas Tortas” representava um futebol totalmente indisciplinado a ponto de driblar todo um time adversário, sem objetivar o gol. Fora dos gramados, Mané namorava, caçava passarinhos, frequentava botecos e jogava “pelada”. Ele ainda era admirado pela solidariedade com que tratavam os seus “iguais”, por não ter abandonado os amigos, continuar morando ou visitando o lugar onde foi criado, ser próximo dos torcedores e, principalmente, manter um estilo de vida associado aos símbolos que são considerados de uma cultura plebéia (THOMPSON, 1998, p.19). Os populares associavam o futebol e o “Brasil” ao lado lúdico da vida. Aqui o futebol não é um esporte, é um jogo; não é praticado por atletas, mas por jogadores; não é um trabalho de carteira assinada, mas uma diversão. Um dos enigmas dos trabalhadores que habitam essas

    [...] cidades “paternalistas” com caráter de “instituição total” é que, ao olharmos de mais perto, descobrimos terem eles uma certa mobilidade, indisciplina e “liberdade”, que se exercia no próprio interior desse modo de dominação patronal que, além de sua produção industrial, controlava toda a sua vida social (LOPES & MARESCA, 1992, p.125).

    Assim, o enaltecimento do prazer, da festa, do “lado bom da vida”, é um contraponto dos populares às noções de trabalho e de disciplina defendidas pelo Estado e pela grande imprensa comercial.

    Com toda essa importância, os mitos de Pelé e de Garrincha passaram a ser objetos de lutas simbólicas que procuravam silenciá-los ou enquadrá-los às suas visões de mundo e de identidade brasileira.

    Para grande parte da imprensa, como os jornalistas Mário Filho e Thomaz Mazzoni, o futebol fazia parte de um processo de disciplinamento dos instintos mais selvagens dos brasileiros, sem que com isso ele perdesse o que tinha de original, de autêntico e de essencialmente nacional. Após a conquista inédita do campeonato mundial de 1958, Mazzoni escreveu o seguinte comentário:

    O futebol é um jogo associado, de conjunto, e deve imperar sempre a disciplina para tornar[-lo] um quadro, uma máquina, desde [que], naturalmente[,] tenha classe elevada dentro da categoria da disputa. O Brasil, desta vez, contou com todos os fatores que precisa um quadro poderoso para ganhar. Classe somente, não decide. [...] Os resultados foram os melhores e devemos insistir já que escolhemos o bom caminho. A disciplina depende sempre de muitas providências que não podem ser tomadas à última hora. O Brasil, enfim, foi preparado idealmente para a grande conquista. [...] Essa sim, foi uma lição dada pelos brasileiros aos próprios brasileiros e que deve se repetir sempre. União, colaboração, boa vontade e disciplina. A classe faz o resto (MAZZONI, 1958, p.208).

    Para esses jornalistas quem melhor representava, não a nação real, mas a nação que se pretendia construir, era Pelé. Era em Pelé que viam todas as características consideradas ideais em um jogador que se pretendia símbolo de uma nação: era habilidoso, possuía um estilo brasileiro de jogar, tinha origem pobre, era negro e, principalmente, era trabalhador e disciplinado.

    Em 1962, na Copa do Mundo do Chile, o “Rei” se contundiu. Enquanto isso, Mané driblava. Driblava e ganhava o título de bicampeão mundial. Garrincha, mais do que o principal jogador da seleção, foi a “metade da seleção”: organizava as jogadas, cruzava e fazia gols. Quando voltou ao Brasil, as homenagens se concentraram na sua pessoa em detrimento do restante da equipe. Se Pelé era o “Rei”, Garrincha era agora o “Rei dos Reis”, título colocado na faixa estendida sobre a sede do Botafogo. Como explicar a popularidade de um indisciplinado como Garrincha se nós já tínhamos um rei? Para reenquadrá-los, Mário Filho pegou seu lápis e escreveu, além de suas crônicas esportivas, os livros Copa do Mundo, 62, Viagem em torno de Pelé e, depois, a segunda edição de O negro no futebol brasileiro. Para ele a explicação era simples: se Garrincha foi tratado como rei, foi porque Garrincha jogou como Pelé. Garrincha foi Pelé em 1962. Porém, bastou “que Pelé voltasse. Voltou mais ‘Rei’ do que nunca”. Segundo o jornalista:

    Pelé era o Rei. Nunca se escolheu melhor um ídolo. Ou um Rei para reinar no futebol. A diferença entre Pelé e Garrincha. Pelé agarrou a coroa e colocou-a na cabeça. Não para exibi-la: para que ninguém a tirasse. Garrincha nem nada (RODRIGUES FILHO, 1964, p.397).

    Algo semelhante ocorreu com os ideólogos que trabalhavam para os governos pós-1964. Tanto Otávio Costa, na Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), quanto Gilberto Freyre, no Conselho Federal de Cultura (CFC), buscaram ampliar as concepções apresentadas por Mário Filho. Se agora o termo “disciplina” era escamoteado, os de “organização”, “ordem”, “hierarquia” e “coletividade” eram destacados. Através do futebol e, principalmente, através da atuação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, disputada no México, tais noções eram consolidadas. Porém, para que isso ocorresse, era necessário enquadrar seu principal símbolo: Pelé.

    A seleção esperava conseguir em terras mexicanas a posse definitiva da Taça Jules Rimet. Foi a primeira Copa em que os jogos foram transmitidos ao vivo pela televisão brasileira. O elenco era composto de jogadores de cabelos cortados no estilo da caserna e tinha a preparação física coordenada por militares: o chefe da delegação era o major-brigadeiro Jerônimo Bastos e a segurança ficava a cargo do major Ipiranga dos Guaranis. Consolidada a conquista esportiva, o governo explorou o título de todas as maneiras possíveis, procurando potencializar o futebol como um fator capaz de promover a “unidade da nação” e tentando relacionar o desempenho da seleção ao momento de euforia econômica que se estava vivendo (AGOSTINHO, 2002, p.162). Tanto nos filmes encomendados pelo governo quanto nos jornais ou na televisão, a figura de Pelé era recorrente. Era mais que um jogador; era o símbolo de uma campanha; era o símbolo de uma nação.

    Com o tricampeonato e com o enquadramento da figura-chave “Pelé”, o futebol parecia ter realizado a tão almejada visão de sociedade brasileira defendida alguns anos antes por Mário Filho: unir a “brasilidade” com a “disciplina”.

    Se, com o mito de Pelé, o caminho encontrado pelo Estado e pela imprensa foi o seu enquadramento, o oposto se verificou com o mito de Garrincha. Afinal, suas características eram irreconciliáveis demais com o ideário oficial. Quando se começou a verificar na sociedade brasileira toda uma estratégia político-ideológica centrada na promoção do valor do trabalho e da disciplina, as pessoas comuns associavam esse “novo mundo” – um mundo de grandeza, trabalho e disciplina – à opressão e ao desprazer. No seu cotidiano, o trabalhador associava o trabalho à sobrevivência. O dinheiro era parco e as compensações não eram suficientes. Além disso, no “novo mundo” não havia a diversão, o lúdico, mas sim organização, disciplina e obediência ao patrão ou ao supervisor. Não aceitar os valores do trabalho e da disciplina impostos de cima era a esperança de reconstruir um mundo melhor, um Brasil melhor, identificando o prazer à alegria. Se Garrincha era considerado um herói, era porque os trabalhadores o associavam às suas noções de “Brasil” e de “povo brasileiro”, sempre próximos a uma cultura plebéia, ao mundo do prazer e da solidariedade.

    Se não dava para o Estado e a imprensa enquadrar o mito de Garrincha, então a solução foi desenvolver um processo de esquecimento paulatino (POLLAK, 1989). Passaram a destacar não o seu lado lúdico e solidário, mas o lado sombrio, decadente, cheio de escândalos pessoais.

    Garrincha já saíra das páginas esportivas para as manchetes dos jornais de escândalos. Encantados com a notícia de que ele deixara a mulher e oito filhas em Pau Grande para viver com a cantora Elza Soares (com quem casou em 1966, na embaixada da Bolívia), e as notícias sobre as suas dívidas cresciam como só os rumores sabem crescer. Não bastava, assim, que Garrincha não tivesse nada. Era necessário que ele, quase derrotado, ainda ficasse devendo. [...] É irônico que o melhor jogador de futebol do Brasil, junto com Pelé e às vezes maior do que ele, fosse justamente o anti-Pelé, em tudo (A VIDA torta de Mané Garrincha. Veja, 8 mar. 1972, p. 50, 55).

    Dessa forma, Garrincha ficou associado a um modelo negativo, um exemplo a não ser seguido, uma pessoa que negou todas as características mais preciosas na formação de um brasileiro: o seu controle pessoal, a sua disciplina, o seu apreço ao trabalho e a sua obediência aos valores da sociedade.

    Tentaram silenciar o mito de Garrincha, ou associá-lo a valores carregados de negatividade. Mas, apesar das tentativas, os trabalhadores não o esqueceram. Em 20 de janeiro de 1983, depois de três casamentos e treze filhos, Garrincha morria num hospital do Rio de Janeiro, vítima de extensas lesões no fígado e no pâncreas causadas pelo consumo excessivo de álcool. Quando souberam da morte, foram os populares os primeiros a prestar homenagens ao herói. Um herói que tinha vivido como eles, que tinha sofrido os mesmos preconceitos e que apreciava os mesmos valores associados ao lado bom da vida, ao lado bom de ser brasileiro.

    O velório foi organizado pelo deputado federal eleito Agnaldo Timóteo. Os insultos eram inúmeros. Os torcedores, indignados, buscavam culpados:

    Muitos criticavam asperamente a ausência de companheiros dos tempos de glória, e cismaram especialmente com Pelé – um herói de destino exatamente oposto, paradigma do sucesso pessoal e capaz, uma vez encerrados os dias de glórias nos estádios, de continuar levando uma vida brilhante, vitoriosa e milionária (O MÁGICO sai de campo. Veja, 26 jan. 1983, p. 78, 79).

    O corpo foi levado para o povoado de Pau Grande, subúrbio do Rio de Janeiro, onde o craque fora criado e agora seria enterrado. Para lá, foram milhares de trabalhadores. Interromperam seus compromissos, pegaram os trens suburbanos e os ônibus coletivos, e se direcionaram para o povoado com o objetivo de prestar uma última homenagem ao “Anjo de Pernas Tortas”.

    E o caixão baixou à sepultura do cemitério de Pau Grande, depois de percorrer alguns quilômetros entre milhares de pessoas que cantavam o Hino Nacional, sob um coro que, frustrado com o destino trágico do ídolo, fazia extravasar suas emoções disparando palavrões contra Pelé.

    Com as próprias mãos, o povo de Pau Grande ajudou a acabar de escavar a sepultura do cemitério do povoado que recebia de volta o filho famoso (O MÁGICO sai de campo. Veja, 26 jan. 1983, p. 79).

    Foi um enterro concreto, mas foi também simbólico. Os trabalhadores acompanhando os restos mortais do seu herói pelos subúrbios do Rio. O Hino Nacional sendo cantado, mostrando a identificação do mito com a nação brasileira. O extravasar popular, depois do silenciamento imposto durante anos. Os xingamentos contra modelos de “Brasil” e de “povo brasileiro” impostos por outros atores sociais. Finalmente, o enterro simbólico: o herói voltando a sua gente, voltando a sua terra. A sepultura sendo escavada pelas pessoas humildes, com as próprias mãos. Era uma homenagem que o simples trabalhador prestava àquele que havia sido um modelo exemplar de brasileiro.

Ilustração 2. Multidão acompanha o cortejo fúnebre de Garrincha (Placar, 28 jan. 1983)

    Portanto, através da trajetória de dois mitos populares ligados ao futebol, podemos constatar que a nação é sempre uma construção múltipla e variada. Ela é um símbolo com seus significados múltiplos, disputados por diferentes grupos que se organizam para se apoderar do sentido mais apropriado para seu grupo e seus efeitos legitimadores. Os projetos de nação estão sempre no plural. Por mais que um determinado grupo detenha uma proeminência econômica e política sobre os outros, nunca será o único a dar uma resposta a seus questionamentos mais vitais. Outros atores sociais também forjarão significações diversas sobre o que eles consideram uma nação, um povo ou sobre qualquer outro assunto.

Referências bibliográficas

  • A VIDA torta de Mané Garrincha. São Paulo, Revista Veja, 8 mar. 1972, p. 50-56.

  • AGOSTINHO, Gilberto. Vencer ou morrer. Futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

  • ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

  • FREYRE, Gilberto. Ainda a propósito do futebol brasileiro. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 25 jun.1955, p. 22.

  • HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

  • LOPES, José Sérgio Leite. A vitória do futebol que incorporou a pelada. A invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol brasileiro. Revista USP, nº 22, 1994.

  • LOPES, José Sérgio Leite; MARESCA, Sylvain. A morte da “alegria do povo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Ano 7, nº 20, 1992.

  • MAZZONI, Thomaz. O mundo aos pés do Brasil. A desforra de 38, 50 e 54. São Paulo: A Gazeta Esportiva, 1958.

  • MOURA, Gisella de Araújo. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

  • O MÁGICO sai de campo. Revista Veja, São Paulo, 26 jan. 1983, p. 76-83.

  • PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

  • POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, nº 3, 1989.

  • PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

  • Revista Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 15 jan. 1962.

  • Revista Placar, São Paulo, 28 jan. 1983.

  • RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

  • SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em campo! Construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008.

  • THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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