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A Capoeira vai ao dojo: um diálogo entre duas tradições

La Capoeira va al dojo: un diálogo entre dos tradiciones

The Capoeira is going to dojo: one dialogue among two traditions

 

*USP

**SEE/SP - PPGE/UFSCar

***DEFMH/PPGE/UFSCar

(Brasil)

Rafael Cava Mori*

realmenteabstrato@bol.com.br

Clayton da Silva Carmo**

spina002@gmail.com

Luiz Gonçalves Junior***

luiz@ufscar.br

 

 

 

 

Resumo

          O presente estudo teve como objetivo estabelecer um diálogo entre as tradições Karate-Do e Capoeira a partir de revisão de literatura e intervenção. Inicialmente, busca arrolar paralelos entre as duas tradições. A seguir, descreve uma intervenção realizada em uma academia de Karate-Do, em que foram trabalhados movimentos característicos da Capoeira. A intervenção integrou uma investigação da modalidade qualitativa, contando com registros em diários de campo. Os resultados foram discutidos de acordo com categorias dos estudos da linguagem de Bakhtin. As considerações sugerem que as duas tradições, embora tenham diferentes origens, podem interagir e proporcionar novas vivências e possibilidades.

          Unitermos: Karate-Do. Capoeira. Diálogo.

 

Abstract

          The present study had as objective establishes a dialogue between the traditions Karate-Do and Capoeira starting from literature revision and intervention. Initially, search to inventory parallel among the two traditions. The following describes an intervention carried out in a fitness center of Karate-Do, in which were worked Capoeira movements. The intervention was part of a qualitative research method, with registrations in field diaries. The results were discussed according to categories of language studies of Bakhtin. The considerations suggest that the two traditions, although they have different backgrounds can interact and provide new experiences and possibilities.

          Keywords: Karate-Do. Capoeira. Dialogue.

 

Recepção: 23/12/2014 - Aceitação: 24/01/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 201, Febrero de 2015. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    É bastante provável que na história do pensamento humano os desenvolvimentos mais fecundos ocorram, não raro, naqueles pontos para onde convergem duas linhas diversas de pensamento. Essas linhas talvez possuam raízes em segmentos bastante distintos da cultura humana, em tempos diversos, em diferentes ambientes culturais ou em tradições religiosas distintas. Dessa forma, se realmente chegam a um ponto de encontro – isto é, se chegam a se relacionar mutuamente de tal forma que se verifique uma interação real –, podemos esperar novos e interessantes desenvolvimentos a partir dessa convergência (HEISENBERG, 1983, p.10).

    O presente estudo teve como objetivo estabelecer um diálogo entre as tradições Karate-Do e Capoeira a partir de revisão de literatura e intervenção. Assim, buscamos estabelecer paralelos entre duas práticas vindas de tradições distintas. De um lado, o Karate-Do, um sistema desenvolvido em Okinawa (ao sul do Japão) para o treinamento desarmado, visando ao combate. De outro, a Capoeira, uma prática de origem afro-brasileira que pode ser descrita como dança, jogo, luta, arte, sem ser esgotada por nenhum destes termos.

    Desse modo, inicialmente arrolaremos alguns paralelos históricos e conceituais entre as duas tradições para, a seguir, descrever a experiência que realizamos de colocá-las em contato. Guiaremos nossas reflexões acerca do encontro provocado tomando como fundamento os estudos da linguagem, particularmente aqueles desenvolvidos por Bakhtin. Em nosso auxílio, encontramos no artigo de Santos (2009) algumas orientações para o entendimento da Capoeira enquanto modo de constituir e expressar um sistema de signos que, embora não tendo natureza fonético-verbal, ainda assim constitui um léxico. Tomar isto em consideração, por sua vez, permitirá que enfatizemos o caráter cultural desta prática, e da prática do Karate-Do, já que “os sujeitos são situados num contexto histórico e cultural específico, ou seja, os sentidos/significados das práticas corporais estabelecem-se e desdobram-se num sujeito imerso em cultura” (SANTOS, 2009, p. 126).

    Explicitamos que a expressão paralelo é utilizada nesse estudo em seu sentido figurado, intencionando descrever o desenvolvimento colateral, de mesma direção, buscando, como no Tao da Física (CAPRA, 1983), pontos para onde convergem duas linhas diversas de pensamento.

Paralelos históricos e conceituais entre o Karate-Do e a Capoeira

    Apesar das marcantes diferenças entre duas práticas que se originaram em pontos geograficamente distantes, há paralelos históricos e conceituais entre o Karate-Do e a Capoeira.

    Uma primeira semelhança é que ambas as tradições, quando consideradas como lutas, se valem do combate desarmado. O Karate-Do, inclusive, deve seu nome a esta característica: karate (空手) significa, literalmente, “mãos vazias”. Seus motivos para a apropriação do corpo como arma também se parecem. A Capoeira foi desenvolvida por africanos escravizados trazidos ao território brasileiro como resistência a uma situação de opressão, conforme Areias (1984):

    Sem conhecerem a nova terra, apartados de suas famílias e dos seus hábitos e costumes, sem falarem a mesma língua, pois eram divididos em grupos de dialetos diversos para dificultar-lhes a comunicação e eventual organização e rebelião, doentes, subnutridos, acuados como bichos, sem acesso a qualquer tipo de armas e totalmente vigiados, para os escravos era muito difícil lutar e reagir contra esse estado de coisas (p. 11).

    Não possuindo armas [...] para se defenderem, [...] torna-se necessário para os negros descobrir uma nova forma de enfrentar as armas inimigas. Movidos pelo instinto [...] de preservação da vida, os escravos descobrem no seu corpo a essência da sua arma (p. 15).

    Já Gichin Funakoshi (1868-1957), considerado o “pai do Karate moderno”, relata:

    Diz-se que Napoleão observou que em algum lugar no Extremo Oriente havia um pequeno reino cujo povo não tinha uma única arma. É quase certo que ele estava se referindo às Ilhas Ryukyu, ao que hoje é a sede administrativa de Okinawa, e que o karatê surgiu, se desenvolveu e se tornou popular entre as pessoas das ilhas exatamente por esse motivo: porque eram proibidas por lei de portar armas. [...] Foi o monarca de Chuzan, Shō Hashi, quem, [...] expediu uma ordem proibindo todos os riukiuanos de possuir armas, mesmo velhas espadas enferrujadas (FUNAKOSHI, 1994, p. 43).

    Dois povos, um acuado em uma terra estranha; o outro, em seu próprio território. Curiosamente, as duas situações são compreendidas, em última instância, à luz das relações mercantis. Os negros são trazidos da África como mão de obra escravizada a ser empregada na produção agrícola do “Novo Mundo”. Okinawa, confluência de rotas comerciais de regiões diversas (Oriente Médio, Coreia, China, Japão, Sudeste Asiático), deveria ter uma população dócil o suficiente para garantir a manutenção e quaisquer tipos de acordos econômicos.

    Devido a Capoeira e o Karate-Do se constituírem em maneiras de armar oprimidos contra opressores, outra característica comum emerge: a possibilidade de suas práticas ocorrerem, inicialmente, apenas na clandestinidade. Isto, por sua vez, leva a outra aproximação, o elemento dança. Vejamos o que diz o Funakoshi (1994):

    É minha observação pessoal que as danças folclóricas de Okinawa utilizam diversos movimentos que são semelhantes aos usados no karatê, e o motivo disso, creio, é que os especialistas que praticavam a arte marcial às escondidas incorporaram aqueles movimentos nas danças para confundir as autoridades ainda mais. Sem dúvida, qualquer pessoa que observe atentamente as danças folclóricas de Okinawa [...] perceberá que elas diferem acentuadamente das danças mais graciosas das outras ilhas japonesas. Os dançadores de Okinawa, de ambos os sexos, usam as mãos e os pés muito mais vigorosamente, e tanto sua entrada na área de dança como sua saída lembram o começo e o fim de qualquer kata do karatê (p. 44).

    Isto parece ecoar as descrições históricas da Capoeira: “Os escravos eram proibidos por seus senhores de praticarem qualquer tipo de luta. Então, eles utilizavam seus ritmos e danças, para treinarem, disfarçadamente alguns golpes, dando assim, origem a capoeira” (SILVA; SOUZA NETO; BENITES, 2009, p.873).

    Stephens e Delamont (2010) discutem seis aprendizados necessários para o progresso do discípulo na Capoeira: os ritmos musicais, as canções, a etiqueta da roda, o humor, a malícia e o axé. De acordo com os autores, apenas os dois primeiros podem ser ensinados, os demais constituem uma espécie de conhecimento tácito, apreendido pelos mais novos através da observação. No caso do Karate-Do, o mesmo fenômeno pode ser observado, com elementos análogos e, a partir destes conceitos de etiqueta, axé e malícia, mais paralelos se desdobram.

    A etiqueta da Capoeira se parece com a do Karate-Do: deve-se respeitar o Mestre ou Sensei, assim como todos os demais alunos mais graduados ou mais experientes; zela-se pelos mais jovens ou novatos; mantêm-se os locais de treinamento limpos e organizados; o oponente deve ser cumprimentado antes do combate ou jogo; os exibicionismos são inibidos ou punidos. As duas tradições têm suas séries de “mandamentos”. No caso da Capoeira, podemos citar os princípios enumerados por Mestre Bimba, criador da escola Regional (SILVA; SOUZA NETO; BENITES, 2009, p. 875), que transcrevemos de modo resumido: 1. Deixe de fumar. 2. Deixe de beber. 3. Evite demonstrar aos seus amigos de fora da “roda” de capoeira seus progressos. 4. Evite conversa durante o treino. 5. Procure gingar sempre. 6. Pratique diariamente os exercícios fundamentais. 7. Quanto mais próximo se mantiver do oponente, melhor aprenderá. 8. Conserve o corpo relaxado. 9. Melhor apanhar na roda do que na rua.

    Já o Karate-Do dispõe de 20 “princípios fundamentais da prática” (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005), resumidos aqui em cinco diretrizes do local de treinamento (dojo kun): 1. Esforçar-se para aperfeiçoar o caráter. 2. Defender o caminho da verdade. 3. Cultivar o empenho e determinação. 4. Cumprir as regras de respeito e de cortesia. 5. Controlar ímpetos agressivos.

    Esta diretriz de número cinco se relaciona ao princípio do Karate-Do mais difundido no Ocidente, karate ni sente nashi (“não existe primeiro golpe no karate”):

    “Uma espada nunca deve ser desembainhada de maneira descuidada ou imprudente” era a mais importante regra de conduta na vida cotidiana de um samurai. Era essencial ao homem digno daquela época praticar os seus recursos até o limite extremo da sua capacidade [...]. Só depois de atingir o ponto em que a situação não poderia mais ser tolerada é que a lâmina era sacada da bainha. Esse era o ensinamento básico da prática do bushidô (o Caminho do Guerreiro) (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005, p. 23).

    A Capoeira observa uma diretriz correspondente: “[...] a prioridade inicial é dada às defesas, pois a capoeira, antes de ser uma arte para o domínio e a opressão, é um trunfo e um segredo para o oprimido defender-se do opressor. [...] antes de tudo, o capoeira precisa aprender a defender-se; o ataque é uma simples conseqüência e continuação da defesa (AREIAS, 1984, p. 86-88).

    Subjacente a estes princípios estão valores fundamentais. Penetrando na essência do Karate-Do, depara-se com uma concepção de mundo, uma espiritualidade, marca das tradições do chamado geido, que abrange os diversos “do” japoneses: Kado (“Caminho das flores”, a arte dos arranjos florais), Sado (“Caminho do chá”, da cerimônia do cha no yu), Shodo (“Caminho do pincel”, a prática da caligrafia), o Budo (“Caminho do guerreiro”, que inclui as diversas lutas) etc. O ideograma do (), traduzido como “caminho”, acrescenta a ideia de via para a iluminação, fazendo do geido um conjunto de práticas zen-budistas. No Budo, não só o elemento zen se faz presente, podendo notar-se algum sincretismo entre princípios do confucionismo, do taoísmo e do xintoísmo. Já no caso da Capoeira, algumas expressões de rituais mágico-religiosos foram incorporadas ao seu vocabulário, manifestando-se principalmente nas canções entoadas nas rodas (BARBOSA, 2005). Da mesma forma que a espiritualidade do Karate-Do se apresenta sincrética, combinando elementos de religiões diversas, a Capoeira faz referência ao candomblé, à umbanda e ao catolicismo.

    O conceito de axé também permite associações entre a prática da Capoeira e as lutas do Oriente de forma geral. Axé é energia, algo que flui:

    No ritual da capoeira, a roda se torna um local de transmissão do axé – a energia vital, espiritual e emocional, ou princípio dinâmico – que circula e flui através dos instrumentos, dos cantos, das palmas e dos movimentos dos corpos. Os jogadores relatam que, no ápice da tensão lúdica, devido ao seu alto grau de concentração, sentem-se em uma espécie de transe quase religioso e que o estado de êxtase que existe nas rodas capoeira é derivado da interação dos participantes (BARBOSA, 2005, p. 94).

    Não seria o axé análogo ao ki () dos orientais? Hyams (2001) transcreve a seguinte explicação de sua professora de Aikido a respeito deste conceito:

    Todos o têm até certo ponto, mesmo um bebê. Você já tentou levantar uma criança ou um cão que não querem ser erguidos? A criança parece mais pesada quando não coopera mas, quando deseja ser erguida, fica mais leve. Isso porque [...] quando a mente e o corpo estão em sintonia, o ki se manifesta (p. 65).

    O axé parece estar mais associado às vivências coletivas, manifestando-se na roda. O ki carrega algo de potência interior, que desabrocha a partir do ser. Todavia, é curioso o modo como as duas tradições se apropriam de um conceito relacionado à energia.

    Finalmente, abordemos algo sobre malícia:

    Quase todos os autores (e praticantes) são unânimes em admitir que este é um dos “fundamentos” da Capoeira – a habilidade de surpreender o adversário, de “fechar-se” e evitar ser apanhado de surpresa pelo outro. O bom capoeirista [...] sabe que a qualquer movimento seu corresponderá um equivalente do adversário, exigindo que esteja preparado até para os mais inesperados (FRIGERIO, 1989, p. 86).

    Pode parecer surpreendente, mas o Karate-Do também exige de seu praticante este mesmo “fechar-se”, desenvolvido no conceito de kime (決め), típico das lutas do Oriente:

    Esconder o kime, realizar o exercício como se não houvesse kime, significa um controle completo tanto sobre o movimento quanto sobre o pensamento. Nesta situação, um pensamento (uma decisão) ou uma emoção (a vontade de ganhar, por exemplo) é uma atividade somática que pode ser detectada pelo outro, um modo corporal de intersubjetividade: a mente também é um movimento. [...] O próprio atacante deve renunciar à decisão, ele deve deixar seu corpo decidir quando atacar, e deve deixar seu corpo realizar o ataque perfeitamente, como foi treinado a fazer. Qualquer coisa não diretamente conectada à tarefa em questão pode ser percebida pelo oponente; o não-dualismo é uma técnica de combate (COHEN, 2006, p. 80 - tradução livre).

    Dirijamo-nos agora para a descrição e a análise de uma intervenção em que a Capoeira foi apresentada a um grupo de karateka, representando um momento em que efetivamente as duas práticas foram postas em contato.

Intervenção: a Capoeira vai ao dojo

    Estruturamos uma intervenção em uma academia de Karate-Do com uma série de três encontros, em que seriam trabalhados movimentos da Capoeira, em três turmas diferentes, em que os participantes, após assinatura de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, escolheram nomes fictícios: A primeira, um grupo de karateka mais graduados, que treinam livremente. No dia da intervenção estiveram presentes os três integrantes mais assíduos, Kenzo, Ogawa e Dante. A segunda, de praticantes de variadas idades e graduações, e somente Giuseppe e Mustafá participaram da atividade. A terceira, de praticantes jovens e novatos, participaram Beto, Primo, Rick, Abe e Akemi.

    Em cada encontro, com a duração de 1h30min, os participantes das três turmas de karate foram apresentados aos objetivos da intervenção e então convidados a integrarem-na, desenvolvendo-se programa envolvendo: histórico da capoeira, movimentos característicos (ginga, martelo, ponteira, bênção, meia-lua, queixada, meia-lua de compasso e queixada lateral) e Renzoku waza (técnicas combinadas, executadas como kihon – fundamentos).

    A intervenção integrou uma investigação inserida na modalidade qualitativa, que envolveu coleta de dados a partir da intervenção contando com registros sistemáticos da observações em diários de campo (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

    A análise de dados foi feita à luz dos estudos da linguagem dos pensadores que integraram o círculo liderado por Mikhail Bakhtin, apresentando este referencial à medida que percorrermos a exposição dos dados coletados.

Resultados e discussão

    Santos (2009), explorando a relação entre o movimento e os processos de significação, afirma que “O mundo nos é dado repleto de sentidos/significados. Entramos em contato com eles por meio das mais diversas práticas. Seja pelas práticas corporais, da língua, da cultura material ou simbólica, vamos nos tornando (educando)” (p. 124). Atribuir significado, através da mediação dos signos (instrumentos culturais que se interiorizam), é atividade característica do ser humano, donde se conclui que significar é humanizar-se.

    A palavra é signo, mas também é gesto. Quando uma pessoa apreende uma nova palavra, o som se despe de sua materialidade, para se (in)corporar ao ser. Por outro lado, se essa pessoa quer reproduzir o som da palavra apreendida, precisa mobilizar seu aparelho fonador, ajustá-lo, modulá-lo, o que constitui gesticulação.

    Quando se lida com práticas como o Karate-Do e a Capoeira, no entanto, a correspondência entre gesto e palavra pode não ser tão unilateral. Santos (2009, p.125) afirma que “[...] o que se expressa não é igual nem ocorre da mesma maneira, ora em palavras, ora corpo”. De acordo com o citado autor, o intercâmbio de gestos, em que movimentos se convertem em palavras e vice-versa, esbarra em limites, havendo “[...] um espaço de expressão e apreensão vital que a palavra não consegue preencher” (p.125).

    E aqui destacamos as práticas corporais como atividades importantes de expressão e apreensão da realidade. Práticas constituintes e construtoras de cultura e que, nesse processo, instituem o acervo de conhecimentos corporais decorrentes da história humana (SANTOS, 2009, p. 125-126).

    Se a palavra é, portanto, primordialmente signo cultural e histórico, aprender uma nova palavra é imergir em cultura, pois “O corpo é expressão da cultura assim como a cultura se expressa no corpo” (SANTOS, 2009, p. 127).

    Quando apresentamos alguns movimentos da Capoeira para os karateka que participaram de nosso estudo, desdobraram-se interessantes processos de significação. Aqui, tomamos de Bakhtin e seu círculo os conceitos de significado e tema ou sentido. O primeiro se refere a uma capacidade potencial da palavra, estabilizada historicamente e de caráter convencional, típico da língua enquanto sistema; o segundo se trata de uma manifestação única do enunciado, unidade real da comunicação verbal e componente não do sistema linguístico tomado in abstracto, mas da concretude da vida (CEREJA, 2005).

    Foram apresentados aos praticantes do Karate-Do sete movimentos característicos da Capoeira: ginga, martelo, bênção, queixada, queixada lateral, meia-lua e meia-lua de compasso.

    Nos três encontros realizados ocorreu o contato com esses movimentos e iniciamos os processos de significação, em que cada uma destas “palavras gestuais”, do léxico da Capoeira, recebia sua contrapartida entre os movimentos do Karate-Do, como se pode observar a seguir:

    Ogawa foi o primeiro a fazer uma relação [...]: a ponteira não só se assemelha ao maegeri; ela é quase idêntica ao maegeri keage, a estilingada frontal com o pé. [...] Ao apresentarmos a meia-lua Ogawa disse: - Ora, mas isso parece o mikazukigeri! - É mesmo, é como o movimento do [kata] Heian Godan! – disse Kenzo (Diário de Campo 1).

    Por serem praticantes menos experientes, percebemos que fizeram menos correlações entre os movimentos trabalhados neste encontro e os movimentos que teriam aprendido previamente na prática do Karate. Giuseppe, no entanto, percebera rapidamente a semelhança entre a meia-lua e o mikazukigeri do kata Heian Godan. Lembrara também que a passagem do pé de apoio por trás do pé que irá chutar, durante a queixada lateral, se parece com a postura kosa dachi, praticada no kata Heian Yondan. (Diário de Campo 2).

    Apresentamos à primeira série de golpes de perna, e [...] os mais velhos perceberam as semelhanças com os chutes do Karate (Diário de Campo 3).

    Pensamos que esta abertura para a apropriação do movimento e, portanto, da cultura da Capoeira, ao mesmo tempo, atua sobre o significado dos movimentos análogos do Karate-Do, na medida em que delimita sua esfera de significação. É como se o tema em questão, aquela situação histórica e singular em que provocamos um contato entre duas práticas diferentes, se incorporasse ao significado dos movimentos do Karate-Do, já que o sistema de significação não é fixo nem biunívoco, mas flexível, mutável, renovável (CEREJA, 2005):

    [...] enquanto a significação é por natureza abstrata e tende à permanência e à estabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao fluido e dinâmico, ao precário, que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda que partindo dele. Se a significação está para o signo – ambos virtualidades de construção de sentido da língua –, o tema está para o signo ideológico, resultado da enunciação concreta e da compreensão ativa, o que traz para o primeiro plano as relações concretas entre os sujeitos (CEREJA, 2005, p. 202).

    Quanto à abertura a uma nova cultura mediada por este processo de significação, retomamos as considerações de Santos (2009, p. 127):

    O corpo é uma ponte entre o ser humano e sua cultura. Posso pensá-lo como um signo que se estabelece entre o sujeito e a cultura. O corpo é do ser humano assim como é da cultura. O corpo como uma forma de mostrar o sujeito e a cultura, uma imagem que mostra a sociedade! [...] parece-me necessário lembrar que estamos tentando fazer uma espécie de tradução entre signos diferentes, mas não desconexos: corpo e palavra.

    Santos (2009), citando Bakhtin, nos auxilia a entender que: “[...] compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos” (p. 127).

    A estruturação da intervenção engendrou, em certa medida, tal processo de significação, pois a proposta de uma sequência de renzoku waza com os movimentos da Capoeira buscou aproximar a execução de chutes, como a queixada e a bênção, do universo vivencial do karateka, pois: “[...] renzoku waza é nada menos que a apresentação de técnicas combinadas, colocadas em sequência, um meio termo entre o kihon e o kata” (Diário de Campo 1).

    Enquanto que para a maioria dos participantes o renzoku waza pareceu ser aceito imediatamente, um dos sujeitos não deixou de demonstrar certo desconforto. Giuseppe, o único que já vinha de vivências anteriores na Capoeira, notou uma espécie de viés dos movimentos trabalhados, como se estivessem sido mecanicamente incorporados à prática do Karate-Do:

    Giuseppe sugeriu alterações no programa, caso a atividade viesse a se constituir num minicurso [...] Ele percebeu que alguns golpes trabalhados no renzoku waza poderiam exigir complementos, pois não eram seguidos de outros movimentos. Lembrou que esta é uma característica da Capoeira, de natureza mais contínua, enquanto o Karate trabalha com séries de movimentos intervalados (Diário de Campo 2).

    Giuseppe, agindo assim, externando seu reconhecimento de uma tensão, agiu como um mediador, ou um tradutor. Sua relativa proficiência em duas linguagens, a Capoeira e o Karate-Do, o ajudou a identificar momentos em que os movimentos da Capoeira lhe pareceram apenas transpostos para o conjunto de práticas do karateka. Seriam, portanto, movimentos destituídos de sua significação original. Isso nos remete à conceituação de signo por Bakhtin (2009): todo signo é ideológico; ainda assim, todo signo é neutro, no sentido de poder transitar por diferentes esferas de significação, conforme mudam as condições sócio-históricas em que é empregado, entendendo que:

    A capoeira configurou-se como uma forma de identidade dos escravos, um recurso de afirmação pessoal e grupal na luta da vida, um instrumento decisivo e definitivo para a população oprimida. O corpo insurgiu-se! Expressou seu inconformismo ao que coibia sua liberdade. O corpo na capoeira nos mostra a possibilidade de uma relação de oposição corporal, nesse sentido é uma luta (SANTOS, 2009, p. 129).

    Daí a importância de termos buscado, durante todo o desenvolvimento dos encontros da intervenção, constantemente relembrar o contexto da criação da Capoeira e seu conteúdo histórico, evitando apartá-la dos processos identitários que integra.

Considerações

    Conforme objetivo assumido, estabelecer um diálogo entre as tradições Karate-Do e Capoeira a partir de revisão de literatura e intervenção, consideramos que tal diálogo se instaurou. Diante dos dados apresentados na seção anterior foi possível observar que, o encontro entre as duas tradições possibilitado pela intervenção, mobilizou processos de significação, em que os movimentos trabalhados assumiram-se enquanto signos e, portanto, enquanto palavras. O conhecimento deste discurso do outro, neste sentido, criou oportunidade de abertura para uma apropriação inicial dos karateka com o universo da Capoeira.

    O contato que provocamos entre as duas práticas, de um lado, apresentou a Capoeira àqueles que não a conheciam; de outro, desencadeou processos de autoconhecimento, principalmente nos momentos de contraste entre os movimentos de uma tradição e os de outra. Neste aspecto, buscamos propiciar uma situação em que sobressaísse o elemento polifônico dos signos gestuais do Karate-Do e da Capoeira. No entanto, consideramos oportuno apresentar a oposição polifonia/monologia para compreendermos o diálogo que se estabeleceu nesse estudo, uma vez que:

    O modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e isônoma do outro; para ele não existe o “eu” isônomo do outro, o “tu”. O outro nunca é outra consciência, é mero objeto da consciência de um “eu” que tudo conforma e comanda. O monólogo é algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece nela força decisória. Descarta o outro como entidade viva, falante e veiculadora das múltiplas facetas da realidade social e, assim procedendo, coisifica em certa medida toda a realidade e cria um modelo monológico de um universo mudo, inerte. Pretende ser a última palavra (BEZERRA, 2005, p. 192).

    Assim, a partir do contato entre as tradições Karate-Do e Capoeira emergiram situações interessantes para a caracterização deste encontro enquanto situação dialógica.

    Chamamos a atenção às palavras diálogo, diretriz para a realização dessa intervenção na academia de Karate-Do, e autoconhecimento, para compreendermos a estreita relação entre ambos, pois conforme Bezerra (2005), no diálogo, “[...] eu me vejo e reconheço através do outro, na imagem que o outro faz de mim” (p. 194). Sendo assim, consideramos que a intervenção atuou nos limites entre identidade e alteridade que, afinal, são inseparáveis, assim como para Bakhtin (1981), ao afirmar que: “Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não poder nem dever terminar” (p. 223).

    Ressaltamos, no entanto, que a intervenção nunca teve a intenção de elaboração de uma forma superior de se praticar o Karate-Do, apenas desejamos explorar o potencial dos participantes, apresentando-lhe movimentos e, portanto, gestos, signos, palavras oriundo de outra tradição. Do contrário, estaríamos justamente negando a alteridade, desencadeando um processo centrípeto de fusão e exclusão do outro. Diferente disso, atuamos no sentido de estabelecer um diálogo entre dois discursos valorizando enunciados de ambos, favorecendo que continuem a circular pela cadeia do “grande diálogo”. No dizer de Bakhtin (1981):

    A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra (p. 176).

    Ao adotarmos o referencial bakhtiniano, levamos em consideração que toda palavra “[...] é história, é ideologia, é luta social, já que ela é a síntese das práticas discursivas historicamente construídas” (CEREJA, 2005, p. 204). Por fim consideramos que tratar desta maneira o movimento das tradições Karate-Do e Capoeira, pode contribuir para uma visão original e ampliada em possibilidades para novos estudos direcionados à compreensão das lutas.

Referências

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