efdeportes.com

Formação em Educação Física e os desafios do serviço público de saúde

Formación en Educación Física y los desafíos del sistema público de salud

 

Professor de Educação Física do Instituto Federal de Educação, Ciência

e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG – Campus Betim, MG

Mestre em Educação pela PUCMinas

Doutorando em Psicologia pela PUCMinas

Mauro da Costa Fernandes

mcfernandes040@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este estudo, de caráter exploratório e descritivo, tem o propósito de apresentar reflexões sobre a formação inicial em educação física, nível bacharelado, em um Centro Universitário localizado num município do interior de Minas Gerais, nos anos de 2011 e 2012, realizados em Unidades de Saúde da Família. No processo de construção das discussões estabeleceu-se um diálogo com os seguintes documentos: 1) o projeto político pedagógico do curso de bacharelado em educação física da instituição; 2) o referencial bibliográfico das disciplinas responsáveis pela prática de observação, quais sejam: PIMPO e Saúde, Sociedade e Educação Física; 3) a produção dos registros dos discentes em seus “cadernos de campo”. A partir dessa experiência, destacamos um tensionamento nas representações de saúde dos discentes além de elementos significativos para se pensar propostas de formação em educação física que dialoguem com o serviço público de saúde.

          Unitermos: Serviço público de saúde. Formação profissional. Educação Física.

 

Recepção: 27/09/2014 - Aceitação: 10/12/2014

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 200, Enero de 2015. http://www.efdeportes.com/

1 / 1

Introdução

    O presente trabalho de caráter exploratório e descritivo visa apresentar reflexões sobre uma experiência na formação inicial, nível bacharelado, nos dois semestres iniciais do curso de educação física em um Centro Universitário no interior do estado de Minas Gerais, nos anos de 2011 e 2012. Tal perspectiva diz respeito à inserção supervisionada dos discentes do curso de educação física em Unidades de Saúde da Família – ESF, no município a qual pertence a instituição de Ensino Superior.

    No intuito de apresentar um recorte deste processo, nos propomos a dialogar com os seguintes documentos: 1) o Projeto Político-Pedagógico do Curso de Bacharelado em Educação Física instituição de Ensino Superior; 2) o referencial bibliográfico das disciplinas responsáveis pela prática quais sejam: PIMPO (Prática Integrada Multiprofissional em Saúde) e Saúde, Sociedade e Educação Física; 3) a produção dos registros dos discentes em seus “Cadernos de Campo”.

Tensionamentos do tema Saúde na Formação em Educação Física

    Alguns estudos e pesquisas vêm apontando que a Educação Física, como campo de formação e atuação profissional, tem privilegiado apenas um pequeno estrato da população (BAGRICHEVSKY, 2003; CARVALHO, 2001; FREITAS, 2007). O binômio “Educação Física e Saúde” tem prevalecido apenas para uma lógica que atende aos indivíduos que podem pagar pelos serviços prestados. Em um instigante texto, Carvalho (2001), nos questiona: Quem é o sujeito da relação atividade física e saúde? Ela argumenta que a produção de conhecimento na área vem afirmando a necessidade da prática dirigida a toda a população, mas apenas na dimensão do discurso. No plano da concretização das práticas, da sistematização de propostas de intervenção, o que se observa é justamente o contrário: atende-se a uma minoria, atende-se a quem pode pagar pelo serviço.

    Portanto, o que se observa no contexto contemporâneo, no campo da formação profissional em Educação Física, é um movimento voltado, na maioria das vezes, para a iniciativa privada: academias, hotéis, clubes; que reproduzem uma lógica voltada para o consumo e para interesses de indústrias de cosméticos, de equipamentos, de beleza e de lazer. Nessa lógica, a figura do personal training é emblemática.

    Não pretendemos nos opor radicalmente a esse contexto, entretanto, pensamos que é necessário propor projetos de formação profissional que tensionem a lógica hegemônica. Nesse sentido, pensamos ser importante lançarmos algumas questões: Por que o serviço básico de saúde, de atendimento à população, de um modo geral, tem sido pouco contemplado e estruturado nos projetos de formação profissional em Educação Física? Como se dá a formação em educação física voltada para a saúde pública? Que entendimento de sujeito, de saúde, são considerados nos processo formativos de discentes?

O diálogo com o Serviço Público de Saúde

    A organização e a oferta dos serviços públicos de saúde no Brasil têm avançado significativamente após a implantação do Sistema Único de Saúde – SUS, a partir da década de 1990. O sistema ampara-se em princípios como a universalidade, a integralidade, a equidade e o direito à informação. Tais princípios, além de se constituírem como significativos avanços na forma de se estruturar o direito aos serviços de saúde no Brasil visam articular e organizar ações de promoção da saúde, prevenção de doenças, cura e reabilitação.

    A Estratégia Saúde da Família – ESF - é considerada um modelo de Atenção Primária em Saúde – APS - focado na unidade familiar com base em estratégias e intervenções - no âmbito da prevenção de doenças, promoção da saúde, além de recuperação, reabilitação e cuidados através de equipes de saúde da família - comprometidas com a dimensão da integralidade da assistência à saúde e consistente com o contexto social, econômico, cultural e epidemiológico da comunidade em que está inserido.

    De acordo com Andrade et al.

    Atenção Primária em Saúde pode ser compreendida como uma tendência, relativamente recente, de se inverter a priorização das ações de saúde, de uma abordagem curativa, desintegrada e centrada no papel hegemônico do médico para uma abordagem preventiva e promocional, integrada com outros níveis de atenção e construída de forma coletiva com outros profissionais de saúde. (ANDRADE et al. 2008, p. 786).

    A disciplina PIMPO (Prática Integrada Multiprofissional em Saúde) no primeiro semestre do curso visa aproximar e inserir os discentes com o campo de atuação profissional bem como o acompanhamento dos processos cotidianos de atendimento à comunidade no serviço público de saúde. Com ênfase em “Saúde Coletiva”, a disciplina se organiza a partir de visitas, observações, entrevistas com profissionais da saúde e a comunidade, nas Equipes de Saúde da Família – ESF - do município.

    A articulação da disciplina PIMPO com outras da matriz curricular do curso se dá a partir do diálogo com o campo da Saúde Coletiva, que, segundo Nunes (1994) é entendido como um campo de saberes e práticas que toma como objeto as necessidades sociais de saúde com objetivo de construir possibilidades interpretativas e explicativas dos fenômenos relativos ao processo saúde-doença, visando ampliar significados e formas de intervenção. Para Carvalho:

    as ações da Saúde Coletiva têm como eixo norteador as necessidades sociais em saúde e, nesse sentido, preocupam-se com a saúde do público, sejam indivíduos, grupos étnicos, gerações, classes sociais e populações, instigando uma maior e mais efetiva participação da sociedade nas questões da vida, da saúde, do sofrimento e da morte, na dimensão do coletivo e do social. (CARVALHO, 2008, p. 139).

    Com a intenção de nortearmos nosso olhar durante as visitas e observações, construímos um roteiro que contemplou determinados aspectos do cotidiano de nossas ações junto aos profissionais de saúde das Equipes de Saúde da Família: as condições materiais e o cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde nas unidades; as demandas de saúde-doença das respectivas comunidades que freqüentam as ESF; hábitos e condições de vida (moradia, saneamento, segurança, emprego, transporte, lazer, renda, dentre outros) dos sujeitos que visitamos em suas residências, juntamente com os(as) Agentes Comunitários de Saúde.

    Os grupos realizam as visitas, observações, entrevistas, nas Unidades de Saúde da Família e em seu entorno, uma vez por semana, pela manhã. No total uma média de seis a oito visitas in locco no horário de 08:00 às 11:15h para cada um dos grupos, por semestre.

    As ESF localizam-se em diferentes territórios e contextos da cidade. Geralmente em bairros com famílias de baixo poder aquisitivo, muitas em situações de extrema pobreza, com condições precárias de saneamento básico, transporte público, segurança, espaços de lazer, dentre outros. Uma delas situa-se numa área rural, aproximadamente 17 km de distância do centro do município. Durante as visitas os alunos(as) se deparam também com condições materiais distintas nas ESF; desde instalações precárias para o atendimento à população, banheiros com vasos sanitários quebrados, infiltrações, pouco espaço para os usuários; até locais mais ampliados para o atendimento, bem arejados, onde, em uma delas, chamou atenção o fato do terreno ter sido doado pela própria comunidade e edificado num “mutirão” para o funcionamento dos serviços.

    Os relatos foram produzidos pelos alunos de forma individual e coletiva nos grupos de trabalho, os quais serão reproduzidos da mesma forma em que foram escritos em seus “cadernos de campo”; a seguir destacam-se as primeiras impressões dos discentes quanto ao espaço, materialidade e entorno das unidades:

    Ao chegar à ESF, no bairro...., pela primeira vez fiquei surpreso, pois o ambiente externo é bastante agradável. Internamente o espaço para a execução das tarefas é pequeno, falta mais amplitude para os profissionais desempenharem seu papel. Com apenas uma sala para a enfermeira e outra para a médica, os outros profissionais, como a nutricionista, dividem a sala com a enfermeira. Os materiais recebidos ficam esparramados pelo chão por falta de lugar para guardá-los. A ESF é para atender o bairro de... porém sua localização se encontra em outro bairro, levando ao questionamento de alguns usuários e moradores quanto à dificuldade de acesso ao local. (Aluno 1)

    A ESF do bairro... estava em condições bem precárias pois todos os cômodos apresentavam infiltrações. Faltava material de trabalho, o banheiro dos funcionários estava sempre com defeito, não tinham um lugar adequado para receberem a comunidade pois era uma varanda com apenas 10 cadeiras... (Aluno 2)

    A ESF... fica numa área rural, próximo à BR 040. Percebi que a estrutura era muito boa, a visão que tive foi positiva. Ao entrar me deparei com alguns pacientes aguardando o atendimento. A partir deste momento, fizemos a nossa primeira abordagem com o pessoal da secretaria; pedimos algumas informações, depois ficamos aguardando até que um dos profissionais viesse nos atender. Enquanto aguardávamos, observamos que havia uma movimentação no salão com um grupo de pessoas mais velhas (idosas); estava sendo realizada uma aula, percebemos que estas pessoas estavam se exercitando através de alongamentos. Logo depois, fomos chamados pela enfermeira para um primeiro contato. Depois de nos apresentarmos ela começou a nos mostrar a estrutura da ESF; fomos aos pouco conhecendo o local e fizemos várias perguntas. Ficamos também com a companhia de duas agentes de saúde que ajudaram a mostrar o local e falaram bastante das visitas que elas realizam, além dos procedimentos que são tomados. (Estudante do Grupo 1)

    Ao chegarmos ao primeiro dia, fomos recepcionados pela própria supervisora, pois a enfermeira responsável estava ministrando uma atividade para o grupo de caminhada. Assim que esta chegou nos conheceu e apresentou a ESF e seus profissionais. A primeira coisa que nos chamou atenção foi o que ela fazia, que era passar alongamentos para um grupo, na grande maioria idosos, que haviam acabado de realizar uma caminhada também orientada por ela. (Grupo 2)

    Na perspectiva relatada um dos pontos que norteou nossas discussões diz respeito à estrutura física em algumas ESF, o que aponta para reflexões sobre a precarização nos ambientes de trabalho em saúde, na qual a lógica da improvisação dos espaços, da limitação material; parece freqüente nessas unidades. Diante disso, surge uma questão problematizadora: Como promover saúde se os “ambientes” dessa “promoção” são precários para os sujeitos trabalhadores e usuários?

    Outra questão significativa em nossos debates e que despertou atenção de alguns alunos(as), foi a presença de práticas de caminhada, alongamentos, em algumas unidades. Embora o propósito de nossa prática de observação neste momento do curso não seja fazer uma análise, propriamente dita, das práticas corporais no serviço público de saúde, o fato de alguns estudantes se depararem com sua presença em algumas unidades foi “novidade” para grande parte dos alunos que desconheciam tal perspectiva no SUS.

    Durante os seminários da disciplina surgiram questões para discutir a presença das práticas corporais no SUS e, nesse sentido, buscamos dialogar com Carvalho (1995, 2001, 2006) dentre outros autores. Algumas emergiram nos debates: como articular as práticas corporais nas ESF com os demais programas para as comunidades em relação à promoção de saúde?; quais sentidos e significados orientam a presença das práticas corporais no serviço público de saúde?; é possível a promoção de saúde a partir da sistematização de um programa de caminhadas, alongamentos, desconsiderando as condições de vida dos sujeitos?

    As visitas domiciliares faziam parte das ações a serem realizadas pelos discentes e se consolidaram como profícua experiência formativa. É importante destacar que as visitas domiciliares eram acompanhadas pelos(as) Agentes Comunitários de Saúde - ACS. A seguir, alguns relatos referentes às visitas:

    Ficamos extremamente comovidos com o caso da Sra..., moradora do bairro há seis anos. Encontra-se no último grau de obesidade, pesa 140 quilos e é diabética. Ficamos sabendo que a mesma tentou uma cirurgia de cateterismo para desobstruir veias do coração pelo SUS; porém, a maca suportava só 120 quilos, sendo mandada para casa, com a recomendação médica de dieta para perda de 20 quilos. A Sra... relatou que isso a desanimou completamente, pois não possui condição financeira para comprar alimentos de baixa caloria indicados na dieta. (Grupo 1)

    Entramos em algumas casas junto com a agente de saúde onde observamos que essas casas são muitos simples; o chão de cimento liso tipo vermelhão; não tinha muita privacidade, pois, em algumas casas não tinha porta e elas eram substituídas por um lençol onde o chão era de cimento grosso com quartos bem pequenos que mal cabia uma cama de solteiro. Algumas casas o banheiro era do lado de fora e quase não se via móveis dentro dessas casas. (Grupo 3)

    Existem cadastradas nesta ESF cerca de 860 famílias, aproximadamente 3318 pessoas, distribuídas para seis agentes de saúde. Uma das coisas que a ACS nos disse foi que a prefeitura não dá o suporte necessário, pois falta constantemente material de trabalho, fazendo com que elas (as ACS), tenham que comprar com o seu próprio dinheiro esse material. Suas funções como ACS são: visita domiciliar, marcação de exames, entrega de exames, divulgação de datas de vacinas. (Grupo 1)

    A carga horária de trabalho dos ACS, de 40 horas semanais e rendimento mensal de um salário mínimo, aliado às precárias condições de trabalho diárias, nos suscitou reflexões a respeito de suas condições de saúde. São eles(as) que realizam o contato direto com as famílias no entorno das ESF durante as visitas e no cotidiano das diversas relações estabelecidas nos territórios.

    Os ACS, em sua grande maioria, são moradores do território onde se localiza a Unidade de Saúde da Família. São profissionais que atuam, dentre outras, em ações que objetivam a promoção da saúde das respectivas comunidades. Neste sentido parece-nos problemático estabelecer conexões entre o processo de promoção de saúde e as condições de trabalho (e até de vida, porque não) desses sujeitos.

Considerações finais

    Percebemos através dessa experiência, possibilidades de fomentar e aperfeiçoar projetos de formação em educação física para atuar no serviço público de saúde, que dialoguem com os sujeitos e suas condições objetivas de vida. A parceria com o setor público de saúde, concomitante às práticas de observação nos diferentes níveis de atenção desse setor, nos instiga ao reforço cada vez maior dessa organicidade.

    Entendemos que para além das reflexões e da possibilidade de diálogos que tivemos a intenção de apresentar neste texto, buscamos sensibilizar nosso olhar para o cotidiano de trabalho na área da saúde, mais especificamente no setor primário, que necessita ser considerado a partir de suas especificidades. Nesse sentido, os processos formativos na área da saúde podem estar em constante diálogo com esse segmento da sociedade.

    Em função das limitações deste texto, outros relatos não puderam ser contemplados, nem tampouco análises mais ampliadas, o que nos convida para outras possibilidades.

Referências bibliográficas

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Búsqueda personalizada

EFDeportes.com, Revista Digital · Año 19 · N° 200 | Buenos Aires, Enero de 2015
© 1997-2015 Derechos reservados