O universo simbólico dos praticantes das provas de ultra-resistência El universo simbólico de quienes participan de las pruebas de ultra-resistencia The symbolic universe of practitioners of the ultra-endurance events |
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*Universidade Estácio de Sá, RJ Pesquisadora Grupo de Estudo em Atletismo – GEATLE **Universidade Veiga de Almeida ***Professora do Município, RJ (Brasil) |
Geovana Alves Coiceiro* Vera Lúcia Menezes Costa** Flávia Mendonça Garcia*** |
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Resumo O presente estudo utilizou uma pesquisa etnográfica para abordar 11 praticantes de provas de ultra-resistência, cujo objetivo é identificar os elementos simbólicos que emergiram nos discursos (ORLANDI, 2001; DURAND, 1997; CHEVALIER e GHEERBRANT, 1998; BRANDÃO, 1991). Dentre os símbolos que despontaram podemos destacar a escada, a flecha e o portal. Concluímos que viver no limite a que esses poucos praticantes se submeteram significaria talvez a morte, mas para esses seres ultra-humanos, tal morada se encontra no extremo. O imprevisível e o incontrolado caminham junto aos atletas, desafiando-os. Objetivaram se inscrever na imortalidade. Unitermos: Imaginário social. Esportes de risco extremo. Provas de ultra-resistência.
Resumen Este estudio utilizó una investigación etnográfica con 11 practicantes de pruebas de ultra-resistencia, cuyo objetivo es identificar los elementos simbólicos que surgieron en el discurso (ORLANDI, 2001; DURAND, 1997; CHEVALIER y GHEERBRANT 1998; BRANDAO, 1991). Entre los símbolos que surgieron se destacan la escalera, la flecha y el portal. Se concluye que vivir en el límite a que esos pocos practicantes se someten significaría quizás la muerte, pero para estos sujetos “súper humanos”, esa morada se encuentra en el extremo. Lo impredecible y lo incontrolable acompañan a los atletas, desafiándolos. Buscan quedar registrados en la inmortalidad Palabras clave: Imaginario social. Deporte de alto riesgo. Pruebas de ultra-resistencia.
Abstract This study used an ethnographic research to address 11 practitioners of ultra-endurance events, aimed at identifying the symbolic elements that emerged in the discourse (ORLANDI, 2001; DURAND, 1997; CHEVALIER e GHEERBRANT, 1998; BRANDÃO, 1991). Among the symbols that emerged can highlight the ladder, the arrow and the portal. We conclude that living on the limit to which these few brave souls subjected themselves would perhaps mean death, but to these ultra-human beings, an abode is found in that which is extreme. The unforeseeable and uncontrolled goes hand in hand with athletes, challenging them. They sought to enlist themselves in immortality.Keywords: Social imaginary. Sports of extreme risk. Ultra distance.Recepção: 05/11/2014 - Aceitação: 22/11/2014.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 198, Noviembre de 2014. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
As provas de ultra-resistência já não são mais novidades para a sociedade contemporânea. Elas podem ser vivenciadas, quase que simultaneamente, por muitas pessoas em diferentes partes desse mundo globalizado. E um dos principais responsáveis por essa propagação são os meios de comunicação, responsáveis por divulgarem, difundirem e comercializarem as provas atléticas, assim como as proezas atléticas fantásticas que são realizadas pelos atletas que praticam essas provas, vale destacar aqui que a maioria desses atletas são amadores, diferentemente dos esportes olímpicos, que tem o profissionalismo predominante. Cada vez mais vemos atletas desafiando tempo e espaço, estendendo seus próprios limites. Esses atletas apresentam um ultra-rendimento, configurando uma cultura de excelência própria da contemporaneidade, cujo fascínio maior é pelo esporte de alto rendimento, esse sim, que engendra seus heróis-atletas (ou seriam atletas-heróis?) com suas performances espetaculares cujas imagens passaram a ser consumidas por milhões de pessoas em todo o mundo.
Foto da Ultramaratona Aconcagua (50 Km), em Mendoza, Argentina
http://ultramaratonaconcagua.com
Mas o que são provas de ultra-resistência? Quem são os atletas praticantes dessas provas? Podemos dizer que são seres ultra-humanos? Ou, pelo menos, que são movidos por um imaginário de ultra-humanos?
As provas de ultra-resistência se enquadram no grupo das provas de risco extremo (BRASIL, 2006) que exigem esforço intenso do organismo, autocontrole emocional do praticante, domínio das condições de uso dos equipamentos, alimentos específicos, expõem a vida do praticante na busca dos limites do desempenho, pois a duração das provas, que pode chegar a vários dias, ou mesmo semanas, leva o atleta a um desgaste fisiológico e emocional que supera aquilo que conhecemos como humano. Assim, são poucas, ou melhor, pouquíssimas pessoas, que detêm as condições físicas e psicológicas necessárias para a prática desses esportes (COICEIRO; COSTA, 2006). Dentre uma série de provas de ultra-resistência podemos destacar: as ultramaratonas (corridas acima de 42.195 m), as corridas multy day (corridas com duração de vários dias, em diferentes condições climáticas e pisos), o Ironman (3.8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42.195 m de corrida – respectivamente nessa ordem), o ultraman (10 km de natação, 421 km de ciclismo e 84.4 km de corrida), o ultratriathlon (com disputas que podem chegar a 10 vezes o Ironman, ou seja, 38 km de natação, 1.800 km de ciclismo e 422 km de corrida – essa prova chama-se decaironman), as provas ciclísticas de vários dias ou até mesmo meses (Cape Epic, Tour de France, Le Tour Ultime, Giro d’Italia, Race Across América, Vuelta ciclista a Espanha, Extra distance, dentre outras), as travessias a nado (o Canal da Mancha, dentre outras, com 35 km de percurso, é considerada a travessia mais difícil de todas), a escalada (os montes Everest e K2).
O interesse por essas provas aumentou significativamente nos últimos 40 anos, quando a maioria das provas de ultra-resistência que conhecemos hoje ganhou o cenário mundial e o fascínio do homem moderno. As provas se apresentam como um grande desafio aos atletas, que precisam se submeter aos esforços excessivos, testando os limites de suas capacidades físicas primárias e centrais (TUBINO, 2006). E nos perguntamos, quais são os limites humanos? A fisiologista Ashcroft (2001), em seu livro A vida no limite, deixa bem claro que é possível presumir, mas não saber com certeza o que o ser humano é capaz de suportar.
O máximo do desempenho de um competidor de ultra-resistência se traduz num grande esforço físico, em competência técnica, na capacidade de resistir à dor, na sua concentração, mas não podemos esquecer do prazer em realizar o exercício. Muitos estudiosos chamam esses atletas de loucos, desequilibrados, alucinados, caçadores de emoções (ZUCKERMAN, 1983), de colecionadores de experiencias e sensações (JAMESON, 1996), de bárbaros e dionisíacos (MAFFESOLI, 2001, 2003, 2004), de conquistadores do impossível (QUINODOZ, 1995). Nós, pesquisadores do imaginário, vemos um corpo que se movimenta, pensa, deseja, sonha, decide, ama, tem necessidades reais e imaginárias, mas tem também desejos inimagináveis, ocultos até para ele mesmo; mas exercita sua vontade, e faz.
Os comportamentos desses atletas, as suas crenças, as suas esperanças se enraízam em imagens, em mitos, em utopias, em sonhos e em fantasias, permitindo-lhes traçar suas estratégias, elaborar seus projetos de provas ou feitos atléticos, dando início às suas ações que, aos nossos olhos de simples mortais, parecem impossíveis de ser realizadas e, como já falamos, impossíveis de ser explicadas apenas no plano racional.
Estudiosos da pós-modernidade, Jameson (1996) e Maffesoli (2001, 2003, 2004), Le Breton (1991, 2000) têm uma visão que fundamenta o que acabamos de falar. Para os autores, os indivíduos da pós-modernidade se ambientam no “fluxo ininterrupto de imagens” colonizado em seus hábitos, fantasias e aspirações, vivem em uma cultura do eterno presente, que substitui a experiência pelo espetáculo, são chamados por Jameson de “colecionadores de experiências e sensações” e por Maffesoli de “bárbaros, dionisíacos, tribais”. Para esses sujeitos a identidade não se completa, depende do que está por vir. A plasticidade do eu é passaporte para a viagem no universo do consumo, com seus êxtases de experiências e sensações que nunca são os últimos. A liberdade pós-moderna se faz, então, da urgência dos prazeres.
Metodologia
O presente estudo empregou uma pesquisa descritiva do tipo levantamento. O instrumento de coleta de dados foi uma entrevista semi-estruturada aplicada a 11 praticantes brasileiros de provas de ultra-resistência, tais como a ultramaratona, o ironman, o ultraironman e o ultraciclismo, que são identificados por nomes fictícios. Tem como principal objetivo identificar os elementos simbólicos que emergem nos discursos (ORLANDI, 1987, 2000, 2001) desses praticantes. Para desvelar esse simbolismo utilizou-se como fonte primária os estudos de Gilbert Durand (1982, 1996, 1997, 1998), pois através da sua metodologia será possível compreender as configurações de imagens que sustentam as ações dos atletas, identificando as figuras míticas (BRANDÃO, 1991, 1999) dominantes e sua tipologia, os estudos de Chevalier e Gheerbrant (1998) na interpretação dos símbolos.
Discussão dos resultados
Ao praticarem as provas extremas de ultra-resistência, nossos informantes cultivam um sentimento de elevação, de potência, que vai mantê-los ao longo das disputas atléticas. Engendram um esforço verticalizante em suas performances, distanciando-se do mundo dos mortais, e se encaminham ao alto, ascendem ao lugar dos seres sobre-humanos, divinos. Essa ascensão, verticalidade, elevação e luminosidade vão suscitar uma potência e um autocontrole de fundamental importância para os atletas, pois essa elevação e potência vão se dar em contrapartida à queda, à descida ao mundo das trevas, momento de vertigem embriagada que permite ir ao encontro da exaustão e do esgotamento das suas forças oníricas, conhecer a morte, flertar com ela, mas precisando sobreviver. Desenvolvem assim as virtudes de suas almas: audácia, ímpeto, coragem e autocontrole (COICEIRO; COSTA, 2007). Tais atletas tornam-se grandiosos e soberanos, verdadeiros mitos em seus esportes. Esse gigantismo vai atingir nossos heróis, que adotam uma atitude de contemplação monárquica (BACHELARD, 1991), ligada ao arquétipo psicossociológico da dominação soberana, no dizer de Durand (1997). As pessoas também vão agigantar as imagens desses atletas, o que pode ser facilmente observado quando, por exemplo, o ultraironman Sergio Cordeiro, a ironman Fernanda Keller, o ultraman Alexandre Ribeiro, o ultramaratonista Valmir Nunes, o ultraciclista Júlio Paterlini aparecem para assistir a alguma competição de seus respectivos esportes, ou de outra prova de ultra-resistência, sendo admirados e contemplados por todos. Esses atletas tornaram-se verdadeiras lendas vivas da ultra-resistência.
Segundo Durand (1997), essa sensação de soberania acompanha os atos e posturas ascensionais, e dessa forma podemos entender por que esses atletas se sentem soberanos, divinos, épicos, olímpicos com as façanhas que realizam, as quais são destinadas a pouquíssimas pessoas.. Dessa forma despontam os simbolismos da escada, da flecha e do portal.
Simbolismo da Escada
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1998), a escada é o símbolo por excelência
da ascensão e da valorização, ligando-se à simbólica da verticalidade.
Mas essa ascensão é gradativa e vai acontecer através de uma passagem que
se comunica em sentido duplo com os diferentes níveis, de forma que o alto e
o baixo, o céu e a terra possam se vincular.
A escada apareceu inicialmente quando observamos nos discursos dos informantes
uma espécie de hierarquia, na qual as distâncias menores a serem percorridas
eram desprezadas em relação às distâncias maiores. Esse desprezo, no
entanto, acontecia quando os atletas já estavam num degrau bem alto, e para
chegar a esse degrau todos passaram pelos degraus iniciais, ou seja, os mais
baixos, percorrendo distâncias menores, quando no início de suas
participações esportivas. Nesse momento identificamos a ligação existente
e necessária entre as provas de longa distância e as de ultradistância. Há
uma ascensão gradual que vai preparando o corpo e a mente do atleta para os
esforços extremos. A Figura 1 apresenta a hierarquia que encontramos na fala
de ultramaratonistas. A cada degrau transposto maior é a emoção, e subindo
de degrau em degrau o atleta ascende ao alto, atinge uma elevação integrada
de todo o ser, e, despojando-se e desnudando-se de certos valores culturais da
modernidade, encontra paz e tranqüilidade para lutar e ultrapassar os
obstáculos do caminho.
Figura 1. Escala hierárquica dos praticantes de ultramaratona
Elaborada pelas pesquisadoras
Uma vez apresentados e tendo experimentado as provas de ultra-resistência, os praticantes vão criar uma identificação tão forte, que as provas/competições, e até mesmo treinos de distâncias pequenas e intensas não vão agradar mais, gerando um desprazer visível por provas de curta distância.
“Hoje em dia, prova curta eu não tenho a menor vontade de fazer [...] porque depois que você faz um ironman, prova de endurance é mais tempo de você com você mesmo, mais tempo você despendendo energia. Você não tem vontade de ir numa prova que acabe em 2, 3 horas, é muito pouco. É um prazer tão grande ficar fazendo aquilo por mais de 6, 7, 8, 9 horas, e por aí vai”. (Forrest Gump)
Eliade (1996) assinala que
[...] o simbolismo da escada, não é uma criação histórica. Trata-se de um comportamento arcaico da nossa psique. Representa o caminho rumo à realidade absoluta e, na consciência profana, a compreensão dessa realidade provoca um sentimento ambíguo de medo e felicidade, de atração e repulsa etc. As idéias de santificação, de morte, de amor e de libertação estão implícitas no simbolismo da escada. (p. 47)
Em resumo, todo simbolismo ascensional significa a transcendência da vocação humana e a penetração nos níveis cósmicos superiores. É dessa forma que chegamos a outro símbolo ascensional: a flecha.
Simbolismo da Flecha
A flecha, assim como a escada, é o intercâmbio entre o céu e a terra. No seu sentido descendente, é um atributo do poder dos deuses, no seu sentido ascendente, liga-se aos símbolos da verticalidade: com sua trajetória reta e aérea, desafia a gravidade, libertando simbolicamente o arqueiro da sua condição terrena (Chevalier; Gheerbrant, 1998).
Para Champeaux e Sterckx, “a flecha é o símbolo universal da ultrapassagem de condições normais; é uma liberação imaginária da distância e da gravidade; uma antecipação mental da conquista de um bem fora do alcance” (1966, p. 324).
As provas de ultra-resistência vão impor longas e desgastantes provações aos seus praticantes que precisam a todo tempo superar a sua condição para concluí-las. A flecha é lançada, na maioria das vezes, no momento em que é dada a largada de uma prova, mas em alguns casos pode acontecer quando começa todo o planejamento para uma prova. O percurso é longo e tortuoso, mas não impossível de ser feito. Nossos ultra-atletas arqueiros fazem suas projeções e se lançam, com a coragem de verdadeiros guerreiros partindo para um campo de batalha. Superam todas as adversidades do caminho, cruzam desertos, mares, montanhas, selvas, por quilômetros e quilômetros, horas e horas, dias e dias, enfrentando o calor e o frio extremo. A segurança da trajetória da flecha, a confiança em que ela vai atingir o alvo, assim como seu impacto, deve-se à coragem e à força do caráter de quem a lança. Afinal, é através da flecha que o lançador se projeta. Ao longo dessa trajetória podemos observar um eu em expansão, que vai buscar os seus próprios limites e deseja ultrapassá-los, sob um instinto de força e grandeza, buscando um significado para a vida.
Chevalier e Gheerbrant (1998) acrescentam que a flecha indica a direção em cujo sentido é buscada a identificação, ou seja, é ao diferenciar-se que um ser consegue alcançar sua identidade, sua individualidade, sua personalidade. Ela é um símbolo de unificação, de decisão e de síntese. Mas pode-se observar que, ao longo desse arrebatamento, existe uma certa elevação e grandeza. Em Durand (1997) encontramos que “a finalidade do arqueiro é a ascensão, suscita sobretudo um impulso” (p. 134), impulso através do qual a intuição e o self se ultrapassam, em transcendência, em direção ao sobre-humano. Quando lançada, toda flecha tem um alvo, que no caso das provas de ultradistância é a linha de chegada. Não é possível imaginar outra possibilidade e todos os guerreiros da ultra-resistência vão lutar com todas as suas forças para cruzar essa linha. Contudo, a desistência, as fraturas, a morte, podem ser encontradas pelo caminho. Cruzar essa linha significa que a batalha foi vencida; os medos e as dificuldades, superados; e o poder, reafirmado e fortalecido. Esse tão esperado momento despontou no discurso dos informantes através de um outro simbolismo: o do portal.
Simbolismo do Portal
As provas de ultra-resistência vão ter na sua organização os pórticos de largada e de chegada, representando respectivamente o início e o término de uma competição, ou mesmo de uma etapa da competição.
O pórtico de chegada é, para a maioria dos atletas de ultradistância, o objetivo final. Mas, para atingi-lo e cruzá-lo será preciso planejamento, estratégias, treinamento, resistência física e mental para superar as várias horas e dias correndo, nadando ou pedalando.
O portal simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. Essa passagem vai ocorrer, numa concepção simbólica, do domínio profano para o domínio sagrado, ou seja, vai representar a passagem vida à morte à libertação. O portal não indica unicamente uma passagem, ele também seduz a atravessá-lo (Chevalier; Gheerbrant, 1998).
Observamos que essa passagem simboliza muitas vezes a saída do cosmo, acessar uma realidade superior. Para isso, será preciso ir além das limitações físicas e emocionais da condição de cada um, transcender, para ser salvo das amarras da modernidade, e viver uma vida repleta, plena e intensa. Vejamos algumas falas.
“A linha de chegada para mim representa a maior parte do treino [...] Sempre que estou treinando eu estou pensando na linha de chegada da prova [...] a consciência que eu obtiver da linha de chegada me conduz ao resultado [...] desculpe-me o palavreado chulo, mas é como um “gozo”. É maravilhoso sentir algo tão esperado. (Camelo)
“A linha de chegada, para mim, é um sonho a ser superado. Você depois de mais de 200 km, com os pés dilacerados, fedendo a suor, cruzar a linha de chegada, é algo que não existe descrição, de tão fantástico”. (Talibã)
Contudo, para atingir e ultrapassar o pórtico de chegada será preciso primeiro adentrar pelo pórtico de largada, iniciar a trajetória que será marcada por longo, escuro e tenebroso caminho de provações, e ir ao encontro da luz, da salvação, que se encontra após cruzar o pórtico de chegada. Vale a pena passar por tudo isso para viver esse momento. A vitória é, acima de tudo, pessoal.
Para complementar, podemos destacar o amor que o atleta sente por si mesmo, por seus feitos e realizações, uma admiração idealizada em si, uma admiração narcísica, mas não é o de eterno apaixonado pela sua própria imagem. Mas um Narciso idealizador, que vai a busca de um ideal, que não se reduz em apenas contemplar sua imagem refletida nas águas do rio, ele quer é mergulhar nessa água, ir às profundezas mais íntimas do seu ser. Despi-lo de mentiras, falsidades e trapaças, estabelecendo uma relação pura e se entregando de corpo e alma nas suas verdades mais íntimas. Essa idealização vai se ligar a uma esperança, de poder ir mais além, de ser o único, ser um homem capaz de estender, expandir seus limites, um homem capaz de chegar ao seu máximo.
Uma vez conhecedor do seu interior, mais íntimo, os atletas da ultra-resistência, imaginam-se detentores de uma força particular, que fortalece a cada disputa. E assim se sentirá o grande, o todo poderoso, o SUPER-HOMEM, O IRONMAN. Desenvolve um amor, uma satisfação por si e pelos seus feitos e realizações. Sem saber esses atletas ficam inacessíveis ao amor pelos outros, pois sem perceber, desejam e amam intensamente a si mesmo.
A inglesa Rosalind "Roz" Savage foi a primeira mulher
em cruzar em solo três oceanos: o Atlântico, Pacífico e Índico
http://www.rozsavage.com
Consumidos pelo desejo de superação é preciso fazer com que em cada performance atlética um novo homem nasça – sendo ele mais forte, poderoso e onipotente – em detrimento ao velho, que precisa ser ultrapassado. Esse ciclo morte-sono-renascimento, é o motor da metamorfose e é assim que se processa a eterna busca pela vida que o ultradistance está a procura.
Considerações finais
Atingimos o portal de chegada de mais um estudo. Fomos levados ao limite de nossas possibilidades físicas e mentais diante da investigação que foi desencadeada e que nos permitiu não somente presenciar o espetáculo do esporte em geral, mas admirar o desempenho humano na busca ininterrupta em expandir o limite (humano) do que é humanamente possível realizar nas provas de ultra-resistência.
Podemos concluir que a vitória dos atletas de ultra-resistência não se reduz aos simples gestos mecânicos de suas modalidades esportivas. Os desejos, as emoções, as fantasias se apossam deles, tornando suas conquistas magníficos espetáculos de como o ser humano busca realizar-se através de grandes feitos que o aproxima dos deuses do Olimpo. São momentos de fruição, o encontro desses atletas com os deuses, os heróis e os mitos. A dor, o cansaço, o sofrimento são substituídos por uma vontade de viver cada vez mais intensamente esse momento. E para nós, admiradores das provas de ultra-resistência, resta a espera e o desejo de contemplar, mais uma vez, a demonstração de superação, caráter, honra, imaginação e vontade protagonizados por esses atletas de ultra-resistência.
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