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Loie Füller, Maya Deren e Allegra Füller Snyder: três mulheres

pioneiras na história da dança em interface com o cinema

Loie Füller, Maya Deren y Allegra Füller Snyder: tres mujeres pioneras en la historia de la danza en relación con el cine

Loie Füller, Maya Deren e Allegra Füller Snyder: three pioneering women in the history of dance on film interface

 

*Mestre em Dança pela Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Especialista em Dança Contemporânea (UFBA). Licenciado em Dança. Professor

da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) do curso Técnico Profissionalizante

em Dança, Fundador do Coletivo artístico Núcleo B de Dança Contemporânea

**Professor Adjunto II da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Brasil (UFBA)

Programa de Pós-graduação em Dança (PPGDAN). Líder do Elétrico – Grupo de Pesquisa em Ciberdança. 

Doutorado em Artes Visuais pela Universidade Politécnica de Valencia (UPV)

Espanha. Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação

da UFBA, Especialização em Coreografia pela UFBA

Roberto Basílio Fialho*

betobasilio@gmail.com

Ludmila Martinez Pimentel**

ludmilapimentel@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo é sobre os primeiros vestígios da relação da dança com o cinema que podem ser remetidos como precursores da criação da videodança, a partir da análise sobre a obra de Loie Füller e Maya Deren, e das categorias propostas por Allegra Füller Snyder.

          Unitermos: Dança. Cinema. Interfaces. Cinedança. História.

 

Abstract

          This article is about the first traces of the relationship between dance and cinema that can be sent as precursors of videodance, from the analysis of the work of Loie Fuller and Maya Deren, and of categories proposed by Allegra Füller Snyder.

          Keywords: Dance. Cinema. Interfaces. Cinedance. History.

 

Recepção: 30/09/2014 - Aceitação: 23/10/2014.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 198, Noviembre de 2014. http://www.efdeportes.com/

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    A dança, em sua vertente tradicional e criada para ser vista a partir da platéia se estabelece e ocorre em um espaço/tempo limitado e predeterminado; tem natureza efêmera por si mesmo, e por essa razão se constitui uma arte que apresenta dificuldades em seu registro e, portanto, muitas vezes frustrante para alguns estudiosos e pesquisadores dessa arte. No campo da notação coreográfica, podemos também registrar a dificuldade do desenvolvimento e disseminação dos vários sistemas de notação como o Labanotation e o Beneshnotation, entre outros, ou seja, para as metodologias de notação coreográfica desenvolvidas até a Idade Contemporânea ainda se constitui uma dificuldade o processo de registro, notação e documentação da dança, já que requisita recursos e tecnologias específicas para essa finalidade. Consideramos que em contraposição a essa dificuldade de conseguirmos proceder a uma escrita gráfica da dança, o cinema e depois o vídeo proporcionaram uma forma de documentação visual e, por consequência, a preservação da dança ao largo da sua História.

 

Loie Füller: Danse Serpentine

    Assim que, propomos uma investigação que aborde essas interfaces entre a dança e a linguagem das imagens em movimento, já que estabelecemos que são ambas, cinema e vídeo, possibilidades tecnológicas que favorecem o registro da dança, preservando-a como patrimônio cultural; e mais ainda, em esse diálogo entre essas três linguagens podemos inclusive surgir novos objetos de arte, novos tipos de arte, como o cinedança proposto por Allegra Füller Snyder (1965, pp. 34-39).

    Registramos que foi com o desenvolvimento da tecnologia do vídeo, uma tecnologia disponível mais recentemente, e utilizada por muitos coreógrafos, que a documentação da dança se converteu em algo mais cotidiano e comum. A nova possibilidade tecnológica que têm os coreógrafos hoje em dia, somando-se a acessibilidade facilitada pelos preços dos equipamentos, obviamente não é equiparável ao que tinham disponível os coreógrafos do século passado. Atualmente os coreógrafos podem dispor por exemplo de uma câmera digital para proceder ao registro de coreografias, e os que têm mais recursos podem utilizar-se de diversas câmeras com disparos múltiplos e capturar frames da coreografia de pontos de vista distintos, com o qual podem criar um storyboard de imagens, muito semelhante aos estudos de Eadweard Muybridge realizados em finais do século XIX, ou aos vídeos que contemporaneamente se utilizam da técnica de stop motion.

    Precisamos esclarecer que as relações entre o corpo que dança e a linguagem das imagens em movimento já possuem mais que um século de história. Consideramos importante registrar e analisar relações nas quais a interface dança/cinema tem produzido, ao longo do tempo, obras de dança. Essas danças são feita para serem assistidas em suportes audiovisuais. Podemos vislumbrar essas relações em obras produzidas especificamente para o cinema – a dança vai de encontro à tela do cinema para extrapolar seus tradicionais ambientes, criando novos territórios cênicos para a atuação e experimentação artística.

    Estabelecemos que foi a partir dos finais do século XIX, que a linguagem da dança e do cinema iniciam essa relação, desde seu principio de maneira inter-relacionada uma com outra, em co-dependência. Contemporaneamente há obras de dança que são concebidas para serem assistidas apenas no cinema, ou obras de dança presencial que promovem o diálogo com a linguagem audiovisual, ou ainda documentários de dança, de personagens da dança, ou ainda uma nova vertente intitulada dança interativa, ou seja, cotidianamente presenciamos ao surgimento de novas formas artísticas, fruto dessa interface entre essas linguagens.

    Atualizando-se continuamente, a criação artística em dança caminha para experimentar novos territórios e dissolver-se em outras materialidades, pois, o sentido corporal tradicional da dança e da técnica tão fortemente marcada pela exaustão do treinamento dos saltos e giros da dança clássica e moderna, que as academias de dança imprimiram, ganham afinal outras possibilidades estéticas.

    Se contemporaneamente podemos visualizar claramente as relações de co-dependência entre essas linguagens, não podemos deixar de registrar aqui que este patamar atual é conseqüência e é fruto de um largo caminho começado pela arte da dançarina Loie Füller, que já surge em seus primeiros registros feitos por Thomas Edison, mesclando a história da dança com a própria história do cinema. Nos documentos visuais sobre a obra de Loie Füller, observarmos o pensamento de dança que era produzido naquela época, ao mesmo tempo em que percebemos também as qualidades técnicas do cinema daquele período. Füller realizou a primeira composição de uma iluminação para o palco especialmente para a dança – o que reverberou numa revolução sobre as concepções de iluminação cênica também para o teatro e para o cinema. O registro de trabalhos de Füller atestam alusões feitas à artista como “a primeira criadora de corpos de luzes que dançam”1 (PIMENTEL, 2008, p.50) (nossa tradução).

    Cinema e dança encontram no argumento do movimento uma afinidade em que é possível compreender como essas duas artes singulares e se complementaram ao criarem interfaces. Loie Füller, no final do século XIX, foi convidada por Thomas Edison para uma experiência fílmica que resultou na obra La Danse Serpentine (1894) evidenciando o interesse que tinha Edison pelo movimento; e dessa maneira ele foi o responsável por realizar diversos registros de dança nesse período pois filmou a “Srta. Jesse Cameron, campeã infantil de dança de espada, filmou Anabelle em sua dança sinuosa, e a princesa Rajah, dançando enquanto segurava uma cadeira sustentada pelos dentes [...] e dois minutos de Ruth Dennis que dançava uma dança de saia [...]” (BROOKS, 2006, p.9).

 

Maya Deren: A study in choreography for camera

    Também a diversidade contemporânea de trabalhos de dança registrados pelo cinema tem alimentado novas idéias e práticas dessa interface. Cabe ressaltar, ainda, que o registro de uma obra de dança não é a obra em si. A conservação de imagens funciona como uma espécie de memória para o evento que ocorreu, material de arquivo da obra, documentação; é a configuração de um processo em que podemos perceber a maneira como ela aconteceu; uma estratégia de acesso a um evento que aconteceu em um tempo remoto; e, também, um dos tantos possíveis modos de percebermos as diversas configurações (técnicas, estéticas e políticas) que a dança assumiu ao longo do tempo.

    O discurso enunciado por esses registros históricos diminui e esclarece o espaço entre o tempo do registro e o tempo atual – trata-se, aliás, de uma contingência proporcionada pelas tecnologias da comunicação. Hoje, esses registros podem ser encontrados no formato vídeo (VHS, DVD, BLU-RAY) ou ainda nos sites de compartilhamento de vídeos, como o YouTube, caso, por exemplo, da maioria das obras coreográficas comentadas como exemplos aqui, como o registro das performances de Loïe Fuller acontecidas no século XIX.

    Observamos que, em algumas performances de dança no cinema, a câmera proporciona um tipo de visão do movimento ao qual só se tem acesso através desse suporte. Há uma relação de troca de informações em que corpo e aparelhos de capturas de imagem são organizados para que seja estruturada uma composição artística. Nesse caso, a interface é resultado do diálogo entre o corpo que dança com a câmera que o captura. Para ilustrar o que estamos sugerindo, bastaria observarmos filmes lançados dos últimos dez anos, como Moulin Rouge (LUHRMANN, 2001) ou Chicago (MARSHAL, 2002). Trata-se de musicais que, pela singularidade de suas narrativas, capturam inúmeras vezes imagens de dança, e o faz a partir de recortes impossíveis ao olho humano, ao menos nas condições tradicionais de observação de um espetáculo ao vivo. Em um teatro, de um modo geral, o espectador tem apenas a visão panorâmica da dança, se utilizando o que tradicionalmente chamamos da 4a. parede do palco italiano. Na tela do cinema, podemos ter acesso a detalhes, conforme os ângulos escolhidos pelo cineasta, como também imagens em closes ou imagens com recorte de partes do corpo que dança, nos permitindo flagrar as expressões faciais dos dançarinos, ou vê-los de outras formas anteriormente não possíveis.

 

Allegra Fuller Snyder, Jaime Snyder and Olivia May: Live performance

    A interface dança/cinema provoca reconfigurações na linguagem cinematográfica e na forma de se compor dança, e, reflete nos sentidos e na percepção dos envolvidos, seja nos dançarinos, coreógrafos, diretores, filmadores, editores ou no espectador. Tal relação altera as qualidades e proporções da dança, principalmente, a forma de apreensão do movimento de dança, a exemplo do cinema experimental de Maya Deren, que recorta partes do corpo dos seus dançarinos, pela lente da câmera, e evidenciava outros aspectos técnicos e estéticos, como as perspectivas convencionais de tempo/espaço e os modos como essas instâncias afetavam ou era afetadas pelo movimento dos corpos.

    No gênero experimental, a dança encontrou um suporte conceitual para lidar com a imagem cinematográfica, o que se concretizou nas narrativas surrealistas de Maya Deren, transformando a imagem do corpo que dança. Ao recortar partes do corpo dos seus dançarinos, pela lente da câmera, a judia Eleanora Derenkovskaya2 evidenciou outros aspectos técnicos da imagem, como as perspectivas convencionais de espaço/tempo. Com formação em jornalismo e Mestrado em literatura inglesa, Deren se aproximou da dança a partir do trabalho que desenvolveu como assistente de Katherine Dunham, uma coreógrafa, dançarina e antropóloga que pesquisava danças africanas. As pesquisas de Dunhan inspiraram Maya Deren no ensaio literário Religious Possession in Dancing (1942). Foi ainda graças ao trabalho com Dunham que Deren conheceu Alexander Hammid, fotógrafo e operador de câmera, com quem viria a se casar, e que lhe ensinou técnicas de fotografia e cinema.

    O primeiro filme de Deren, Meshes of the Afternoon (1943), realizado em Hollywood, é também seu título mais célebre. Trata-se de uma obra considerada referência no movimento de vanguarda do cinema underground, entre as décadas de 1940 e 1950, assinalada pela crítica como uma poesia visual e marco no campo do cinema experimental. Em 1947, o filme ganhou o Grande Prêmio Internacional para Filmes de 16mm (Classe Experimental), no Festival de Cinema de Cannes, o primeiro, nessa categoria, concedido a uma mulher.

    Em sua pesquisa, que privilegiava a interface dança/cinema, Deren realizou ainda, no formato 16mm, filmes como At Land (1944) e Study in Choreography for Camera (1945). No primeiro, o olho da personagem (interpretada pela própria Deren) funciona como narrador, a partir do recurso da câmera subjetiva3. Já em Study in Choreography for Camera, parceria com o bailarino Talley Beatty, foi definido pela camerawoman do filme, Hella Heyman, “como inovador e herético. Uma espécie de geografia do espaço acontece com base no movimento do bailarino, característica que também constrói a idéia de tempo” (apud SPANGHERO, 2003, p.34).

    Conforme o tipo de pensamento que a artista propunha, a coreografia se dava pela edição do movimento da câmera, que recortava partes do corpo: um mesmo movimento era mostrado, numa mesma seqüência, em espaços distintos, criando uma espécie de simultaneidade alternativa, possível apenas a partir de uma reconstrução espacial levada a cabo pela câmera. Em Study in choreography for camera, a dança do bailarino Talley Beatty transita em cenários diversos, na execução de movimentos que, a partir da edição, reorganizam as tradicionais noções de espaço/tempo. Essa narrativa, que intervém diretamente na concepção de linearidade, alterando-a de modo significativo, desloca o sentido do espectador. O dançarino dá um passo em um ambiente e, na continuidade desse movimento, já está em outro cenário. Eisenstein, filósofo e cineasta, no seu livro O Sentido do Filme (1942) nos faz refletir sobre as montagens de Deren para percebermos como ela, em suas cine-danças conecta diferentes aspectos da percepção: o sentido do tato, o da visão e do movimento. Em Meshes of the afternoon (1943), os sentidos, do espectador, que falamos anteriormente são alterados, a partir de cortes na edição das imagens, para trazer a idéia de continuidade em uma caminhada, Deren, monta a cena para que o dançarino se desloque por quatro locais diferentes, sendo que, o primeiro passo é feito em um carpete, o segundo passo – da mesma caminhada – é na grama, e sucessivamente, o terceiro é na areia, e o quarto na superfície de cimento. Assim, através do andamento da imagem, que permeia a todo o filme supracitado, reordenamos nossa percepção tecendo o entendimento coreográfico ao desenvolvimento harmônico do movimento/filme. A montagem fragmentada, da diretora/coreógrafa posiciona o espectador para acompanhar a seqüência, e seus fragmentos como uma seqüência coreográfica.

    Também aqui são observadas alterações nas dimensões do corpo: em um momento, o corpo está pequeno, podendo ser visto por inteiro; em outros momentos, somente a mão ocupa todo o espaço da tela. O que acontece, sem nos darmos conta, são mudanças na escala do corpo em relação à câmera, o que vai influenciar diretamente em como percebemos essas imagens.

    Vale ressaltar, mais uma vez, que esse é um tipo de atuação de dança só é exequível a partir do suporte da câmera. Assim, através das possibilidades de uso da câmera e da montagem cinematográfica (com recursos como a câmera lenta, por exemplo), as coreografias de Deren criaram um tipo de narrativa, tanto para a dança quanto para o cinema, em que a continuidade espacial convertia-se em tema a ser explorado, registramos que “um dos recursos de edição experimentados por Maya Deren, a dupla exposição (que formata noções de temporalidade), deu origem à idéia da montagem como composição o que supostamente transformaria os filmmakers em verdadeiros coreógrafos” (SPHANGERO, 2003, p.34-35), com esse pensamento Sphangero quer nos propor que ao editar um filme o cineasta opera de maneira análoga a um coreógrafo, propondo e organizando uma “coreografia das imagens, trabalhando com o tempo e o espaço [...]” (SPANGHERO (2003 p.34-35).

    Nessa perspectiva, Deren segmentava o corpo dos dançarinos, a partir da fragmentação das seqüências na montagem – o corpo era seu principal foco, tendo a dança como motivo. Na construção de sua proposta estética, a artista acabou por criar uma relação de interface entre corpo e câmera.

    Em 1946, num esforço pessoal para a divulgação de sua obra, Deren promoveu o Three Abandoned Films, no Teatro de Provincetown (alugado pela própria artista), em que foram exibidos Meshes of the Afternoon, At Land e Study in Choreography for Camera. Esse evento encorajou outros realizadores à autodistribuição dos seus trabalhos pessoais, assim como estimulou a disseminação do cinema independente norte-americano do pós-guerra.

    Além do seu trabalho como coreógrafa e cineasta, Maya Deren foi também uma pensadora do campo da arte. Suas próprias obras podem ser tomadas como ensaios, no sentido de que nos fornecem meios para pensar tanto a linguagem da dança como a do cinema. Mas, além disso, Deren abordou aspectos da estética da imagem, em textos paradigmáticos como “Um anagrama de idéias sobre a arte e o cinema” (An anagram of ideas on art form and film, 1946), em que discute e apresenta reflexões sobre a interface arte-ciência, numa espécie de tratado sobre essas instâncias e o processo criativo, como assinala Spanghero (2003, p.35).

    O trabalho empreendido por Maya Deren introduziu mudanças fundamentais nos padrões de criação artística em dança. Ela transpôs para o cinema o lugar da criação artística em dança quando explorou transformações do tempo e do espaço. Depois de Deren, ocorreu “uma mudança radical ao se propor uma interface tecnológica entre duas linguagens – o cinema e a dança – que não fosse apenas documentação, registro ou simples entretenimento (WOSNIAK, 2006 p.76).

    Na obra de Maya Deren a dança não aparece apenas pelo registro, mas a partir de algo maior: trata-se de uma maneira de utilizar a técnica do cinema para transformar o corpo, o espaço/tempo e, nessa direção, o próprio ato coreográfico. Ao fragmentar o corpo para construir a dança, Deren cria condições para que, num tempo mais adiante, seja desenvolvida a linguagem da videodança.

    Consideramos que após registrarmos e anotarmos a importância que tanto Loie Füller como Maya Deren tiveram e têm na História da dança em interface com o cinema, ainda nos cabe apresentar os conceitos teóricos formulados pela Professora Allegra Füller Snyder em 1965, e ainda pouco conhecidos e aplicados em nessa área de pesquisa.

    Snyder (1965, pp.34-39) nos apresenta três categorias diferenciadas da interface entre dança, cinema e vídeo. A primeira categoria de Snyder seria o “registro fílmico de dança”, no qual acontece a simples gravação de uma coreografia, ou seja, a coreografia foi criada primariamente para ser executada e apresentada para a platéia, em um espaço/tempo real, para ser dançada por bailarinos humanos. Em síntese, a coreografia não foi elaborada para vídeo, e sim que foi feita para o cenário teatral, e logo foi gravada e registrada através de uma câmera, em essa categoria se utiliza somente uma câmera, e também um único ponto de vista.

    A segunda categoria de Snyder é a “dança adaptada”, onde a narrativa de dança é respeitada, mas a coreografia é elaborada e adaptada para a linguagem fílmica, usando a câmera para fazer close-ups, tomadas diferenciadas e outras possibilidades técnicas específicas da linguagem do cinema. É nessa categoria que podemos tirar proveito das possibilidades técnicas da linguagem cinematográfica para a elaboração e produção de videodanças e também de filmes de curta metragem de dança, pesquisando assim as interfaces entre a dança e o vídeo.

    Por último, Snyder nos apresenta a categoria de “cinedança”, resultando ser esta a mais complexa das categorias, porque é nessa categoria que podemos transcender as possibilidades biológicas do nosso corpo gravitacional humano e na qual nos são apresentadas novas possibilidades corporais para a dança. Snyder também expôs que em essa categoria existe uma possibilidade de experimentação muito grande e, evidentemente, há um vasto terreno para a criação de uma nova arte, estabelecemos aqui que o cinedança seria essa nova arte. Nossa proposição consiste em que nessa ultima categoria de cinedança está contida a produção contemporânea de trabalhos que se valem da computação gráfica e da animação digital para criar corpos digitais, ou também efeitos visuais impossíveis à condição humana, ou seja, aqueles trabalhos nos quais se utilizam os recursos do cinema, da edições digital e não-linear de vídeo, e se pode experimentar com outros corpos, corpos dotados de qualidades como voar, girar inúmeras vezes no plano horizontal ou flutuar; como exemplo desta categoria temos os filmes Matrix (irmãos Wachowski,1999) e La Casa de las Dagas Voladoras (Yimou, 2004), ou também trabalhos totalmente feitos em animação digital, como é possível quando utilizamos os softwares Danceforms, Maya, 3Dstudio entre outros.

    Snyder acredita que as novas possibilidades do cinedança e da videodança convidam e trazem a platéia sinestesicamente para mais perto, ou seja, para dentro da experiência transformadora da dança, em oposição ao estágio anterior de simplesmente assistir a dança nos teatros. Snyder considera que a câmera e a edição introduzem formas alternativas de sensação sinestésica do espaço, tempo, movimento, dimensões, profundidade, não-gravidade, e até mesmo expansão de uma nova lógica, ritmo e realidade. O cinedança, os filmes mais experimentais e também os filmes mais populares, convidam a platéia a vivenciar de forma mais sinestésica a dança, e convidam o corpo a festa da dança já que assim nos é oferecido uma nova experiência interna e sinestésica pelo corpo da platéia, através das várias qualidades e possibilidades do movimento em esse suporte.

    Cinedança é também uma possibilidade de mostrar íntimos e diferentes pontos de vista do corpo que eram anteriormente impossíveis para a dança frontal, feita para ser vista tradicionalmente nos palcos. Para Snyder, ainda que a platéia esteja fixa em seus lugares assistindo ao filme de dança, o cinedança oferece a oportunidade de fazer dançar por empatia sinestésica, de “sentir-se e mover-se” para/e através do espaço/tempo, unindo espaços dinâmicos e estados fictícios no corpo.

    E por último, propomos ainda que na categoria de cinedança estão também alojados os trabalhos que investigam as interfaces entre o cinema e a dança contemporânea, podemos citar o filme Lamento da Imperatriz (1989) de Pina Bausch como exemplo dessa categoria, pois esse filme foi o primeiro e único feito por Bausch e que nos revela as ricas e possíveis interfaces entre essas linguagens. Em Lamento da Imperatriz fica evidente que quando um coreógrafo elege fazer um filme de dança, ele também se valerá dos recursos desenvolvidos em sua própria linguagem coreográfica, ou seja, o que tenha amadurecido como assinatura artística ao longo da sua prática coreográfica, o que tenha construído como estética formal, também se estabelecerá e será visível em essa nova possibilidade e formato. Utilizando as categorias propostas por Snyder, podemos classificar que o filme feito por Bausch é uma obra de cinedança, já a obra PINA (2011), filme que relata as experiências dos bailarinos da companhia de Pina Bausch, e mostra também diversas coreografias compostas por Bausch, pertence à categoria de documentário de dança, documentário sobre um personagem da dança contemporânea, transitando entre as categorias de registro fílmico de dança e dança adaptada de Snyder.

    Assim concluímos que Füller, Deren e Snyder, cada qual ao seu jeito, formalizaram uma outra perspectiva de se trabalhar e apreciar com dança, onde a técnica da dança é transcendida para a idéia do que deve ser feito para o que deve ser visto, parece ser algo maior que a dança ou o cinema, mas é a própria dança em expansão onde a técnica de dança questiona a se mesma, para ser composta para este outro espaço que propõem técnicas e métodos diferentes de abordagem corporal e estética.

    Há uma lucidez nos sonhos visuais que a interface cinema/dança produz e este momento é periférico a estética, tanto da dança, quanto do cinema, mas fica claro quando analisamos as três artista que esse artigo se propôs a observar, existe uma sobriedade, atrás das câmeras e se movimenta dentro dos estúdios no momento em que essas danças são pensadas, treinadas, organizadas e configuradas. São os métodos e as metodologias que se impõem nos circuitos desses tipos de composição; é o conhecimento que tais artistas vem produzindo, seja de forma inconsciente ou premeditada – não importa – o que estará sempre em evidência é que a dança possibilitará diálogos com outras linguagens artísticas, pois fica cada vez mais claro que sua natureza é a interface.

Notas

  1. Cf. “[...] la primera creadora de cuerpos de luces que bailan” (PIMENTEL, 2008, p.50). “Tradução nossa”.

  2. Eleanora Derenkovskaya se tornou Maya Deren por motivos políticos, em razão da fuga de sua família para os EUA, na década de 1920, como conseqüência das políticas anti-semitas do Estado Soviético.

  3. Trata-se de um recurso em que a câmera (controlada pelas mãos do operador, sem tripé) assume, como foco narrativo, o olhar de um personagem. Cf. Portal Tela Brasil – Glossário. Disponível em: http://www.telabr.com.br/glossario/index.php?title=P%C3%A1gina_principal. Acesso em jun. 2010.

Bibliografia

  • BROOKS, Lynn Matluck (Ed.) Dialogues. In: Dance Research Journal: USA, 30/01/1998.

  • FIALHO, B. Roberto. Corpointerface: Relações Entre Corpo e Imagem na Cena Contemporânea de Dança, Salvador 2011. (Dissertação de Mestrado em Dança) Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia/Escola de Dança.

  • PIMENTEL, Ludmila Cecilina Martinez Pimentel. El cuerpo híbrido en la danza: transformaciones en el lenguaje coreográfico a partir de las tecnologías digitales. Análisis teórico y propuestas experimentales. (Tesis doctoral). Valencia: Universidade Politécnica de Valencia, 2008. Disponível em: http://dspace.upv.es/manakin/handle /10251/3838. Acesso em: Agosto. 2012.

  • Three kinds of Dance Film” SNYDER, Allegra Fuller. Dance Magazine, New York, vol. 39, pp. 34-39, 1965.

  • SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acessos. São Paulo: Rumos Itaú Cultural Transmídia, 2003.

  • WOSNIAK, Cristiane. Dança, cine-dança, vídeo-dança, ciber-dança: dança, tecnologia e comunicação. Curitiba: Ed. PPGCOM, 2006.

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