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Uma investigação acerca do modo de brincar de crianças e 

os efeitos de gênero em diferentes contextos socioculturais

Una investigación acerca del modo de jugar de los niños y los efectos del género en diferentes contextos culturales

Children games and gender effects in different social-cultural contexts

 

Universidade Regional do Noroeste

do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí

(Brasil)

Eduarda Virginia Burckardt

Maria Simone Vione Schwengber

eduarda_lang@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          A presente pesquisa é parte de uma investigação inspirada nos campos da Educação e dos Estudos de Gênero. Este estudo consiste em uma pesquisa qualitativa com a proposta de investigar como as crianças estão brincando em diferentes realidades sociais e os efeitos de gênero na rotina (do brincar em casa) de crianças na faixa etária de 3 a 8 anos no município de Ijuí (RS). Com o objetivo de compreender como se caracteriza a infância das crianças que brincam nas diferentes realidades sociais e culturais no âmbito familiar, buscou-se observar os aspectos/fatores relacionados com o brincar nas questões de gênero que interferem na rotina dessas crianças. Foram utilizados neste estudo os seguintes instrumentos de análise: observações participantes, entrevista e fotografias. Participaram da pesquisa duas famílias, uma de classe alta e outra de classe baixa. O estudo foi feito com esses dois grupos por eles apresentarem características diferenciadas, possibilitando um diálogo por meio da categoria gênero nos dois contextos. São apresentadas as brincadeiras e as influências de gênero das crianças ante cada realidade sociocultural observada, mostrando-se que, nos dois contextos, as brincadeiras estão acontecendo, porém, cada ambiente tem suas marcas e significações. Dessa forma, constatou-se que as crianças das duas famílias brincam – uma com muitos brinquedos tecnológicos, aliados à educação e à construção do gênero instituída, e a outra com materiais diversos, com tempo mais “livre”, utilizando-se do faz de conta de forma significativa, sem instituir normativas de gênero.

          Unitermos: Crianças. Gênero. Infância.

 

Abstract

          This research is part of an investigation inspired by the fields of Education and Gender Studies. The study consists of a qualitative research aiming at investigating how children have played in different social realities and the effects of gender on the home playing routine of children aged 3-8 years old in Ijuí (RS). With the aim of understanding the characteristics of the childhood of children that play at home in different social-cultural realities, we attempted to observe aspects/factors related to playing by considering gender issues that interfere with those children’s routine. The following instruments of analysis were used in this study: participant observations, interview and pictures. Two families participated in this research: an upper-class family and a low-income family. These two groups were chosen because they presented different characteristics, which favored a dialogue by means of the gender category in both contexts. The games played by the children and the gender influences became apparent in both social-cultural realities, showing that playing occurs in both contexts, but each environment has its own marks and significations. It was concluded that children of both families play – some with a number of technological toys, aligned with education and the instituted gender construction, and others with different materials and more “free” time, using make-believe play in a significant way without instituting gender norms.

          Keywords: Children. Gender. Childhood.

 

Recepção: 17/09/2014 – Aceitação: 07/10/2014.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 197, Octubre de 2014. http://www.efdeportes.com/

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    Pela estrada afora eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovozinha. A estrada é longa, o caminho é deserto e o lobo mau passeia aqui por perto... mas à tardinha, ao sol poente, junto à mamãezinha dormirei contente.1

    A história da Chapeuzinho Vermelho, um clássico da literatura infantil2 de origem européia do século 14, conta as aventuras de uma menina que foi levar doces para a vovozinha, obedecendo a uma ordem de sua mãe para agradar a vovó que estava doente. Chapeuzinho Vermelho, no entanto, muda o caminho e decide ir pelo bosque colhendo algumas flores para sua avó. Por lá acaba encontrando o lobo mau e conversa com ele, sem receio, e, ingenuamente, fala onde está indo.

    Já no século 21 surge a necessidade de recontar a história, modificando as características dos personagens, adequando-os a uma nova linguagem. Por exemplo, citamos o filme Deu a Louca na Chapeuzinho, lançado em 2005, que retrata a história de uma menina determinada que busca algo mais, que tem desejos, sonhos e muita curiosidade. Ela é esperta, investigativa, vai além do que lhe é mostrado, e, com sua astúcia, desvenda fatos, interage e tem uma rotina um pouco diferente da clássica Chapeuzinho Vermelho. A história, dessa vez, é ela quem quer contar:

    A história eu vou... contar... de uma garota já cansada de pedalar, eu sei... é uma história antiga, mas tem valor... ela tinha um bom coração e só vivia a repetir uma triste canção... queria tanto me divertir... do bosque sair! vem... me tira daqui... por favor... eu quero um novo mundo... eu quero um outro mundo... eu quero um novo mundo... eu quero um outro mundo.3

    Analisando a diferença de uma história para a outra, observamos que as crianças não são as mesmas de anos atrás. Assim como tudo vai mudando, muita coisa está diferente no mundo infantil, desde seu lugar na sociedade, sua rotina, seus medos, anseios, desejos e, com isso, observamos os efeitos marcantes de gênero na vida das crianças.

    Uma coisa, porém, é fato e não se pode negar: o capuz vermelho está presente nas duas histórias, o que nos faz pensar na proteção e na manutenção de parte do título Chapeuzinho Vermelho. Assim, existe a infância nos dois contextos, mas cada uma de forma diferente. Na história clássica a Chapeuzinho Vermelho era ingênua e feliz com a vida que tinha; já o filme Deu a Louca na Chapeuzinho retrata uma menina aventureira, que quer se divertir, sair do bosque, ir atrás de um novo mundo.

    Essas duas histórias fizeram-nos pensar o quanto a vida das crianças é determinada pelo seu contexto e por seus pertencimentos, apesar de as infâncias serem tênues e diversas em cada ambiente. As famílias dizem muito como as crianças vivem. Assim, é sobre as diferenças de infâncias e os efeitos de gênero que trataremos neste texto.

    Perguntamos: Como está se constituindo a infância que brinca em diferentes realidades sociais e os efeitos de gênero na rotina em casa de crianças na faixa etária de 3 a 8 anos no município de Ijuí (RS)?

    Dessa forma, buscamos compreender como se caracteriza a infância das crianças que brincam nas diferentes realidades sociais e culturais no âmbito familiar, e observar os aspectos/fatores relacionados às idéias de gênero que interferem na rotina dessas crianças.

    Para problematizar os discursos sobre infância discutimos os processos sociais e culturais que caracterizam a contemporaneidade. Essa caracterização abrange aspectos como as formas de relação entre as crianças, a tecnologia, os modos de produção, a política, o conhecimento e nossa relação em cada época. Isso diz respeito a uma mudança que se dá no âmbito da cultura e exige um redimensionamento de olhar também para as infâncias.

    Somos atingidos por uma série de fatores, como a globalização e as tecnologias, e, junto disso, surgem muitas diferenças, fazendo-nos pensar que a infância não é vivida por todos do mesmo modo. Assim, nos deparamos com a multiplicidade de infâncias que se diferem de um lugar para outro, e isso se deve muito às diferenças entre as classes.

    No Brasil, um país em que vivem milhões de habitantes, nem todos tem as mesmas condições. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE – (IBGE, 2013), as classes sociais são classificadas conforme a renda mensal familiar, com opção de sete agrupamentos definidos por salários mínimos.

    A infância não se limita apenas a fatores biológicos, mas também a fatores sociais. Crianças que pertencem a classes sociais distintas têm diferentes formações e diversidade de oportunidades; logo, não existe uma natureza infantil e sim condições de ser criança. Na contemporaneidade, Guareschi e Hüning (2006, p. 183) ressaltam que as crianças são sujeitos que se constituem no mundo contemporâneo, desafiando os saberes tradicionais que tentaram dominar a infância. Estamos hoje diante do novo, e o melhor que se pode fazer é admiti-lo e complexificar nosso olhar sobre as crianças, sabendo-o limitado. O que o mundo contemporâneo demanda daqueles que trabalham com educação, com crianças, com pessoas, é uma maior capacidade de diálogo com as diferenças e o desconhecido.

    A idéia de que as crianças são sujeitos que estão se constituindo no mundo contemporâneo desafia novas pesquisas e novos olhares para compreender quem é esse sujeito hoje que tanto se difere do exposto por Ariès (1981), que entendia a criança como adultos em miniatura.

    Para nos referirmos às infâncias devemos considerar alguns conceitos que contextualizam estas idéias. A palavra infantia etimologicamente é oriunda do latim, e significa incapacidade de falar. Já, se recorrermos ao dicionário de Língua Portuguesa, encontramos alguns conceitos como: infância, período de crescimento que vai, no ser humano, do nascimento à puberdade; infantil, próprio para a infância, pueril, ingênuo. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente Brasileiro – ECA – (CURIA; CESPEDES; NICOLETTI, 2013) – Lei n° 8.069, de 13/7/1990 – criança é a pessoa que possui até 12 anos de idade incompletos.

    Essas definições revelam uma concepção de “naturalização” e acabam generalizando que todas as pessoas vivem a mesma etapa da mesma maneira. Na literatura pedagógica remetem a infância à idéia de pureza, inocência, fragilidade, e outras a consideram sem competência, desqualificada, como tábula rasa.

    Diferentemente dessas idéias, não se compreende a infância como fenômeno natural, mas como uma construção social que possui localização temporal e espacial e que acontece de forma plural, sendo afetada por efeitos sociais que modificam sua condição, estando em constante movimento e construção. De acordo com Fernandes (2008, p. 13):

    A infância deve ser vista como um constructo social na medida que se refere a um estatuto social delineado por fronteiras que variam ao longo do tempo e através das sociedades, mas que são incorporadas na estrutura social e assim manifestam através de determinados tipos de conduta que simultaneamente constroem. A infância diz então respeito a um contexto cultural particular.

    Considerando que existe uma pluralidade de infâncias que se distingue em cada contexto sociocultural, optamos por estudar duas casas/lares como lugar de análise da infância, abrigando essas diferenças.

Metodologia

    A pesquisa foi pautada em uma investigação qualitativa com inspiração etnográfica e, segundo Negrine (1999, p. 61), “a base analógica desse tipo de investigação se centra na descrição, análise e interpretação das informações recolhidas durante o processo investigatório, procurando entendê-las de forma contextualizada”.

    Com a proposta de analisar duas realidades de infância, buscamos na cidade de Ijuí (RS) uma família que vive em uma região centralizada com fácil acesso às necessidades do dia a dia, e outra que reside na parte periférica da cidade, com difícil acesso ao centro.

    Assim, organizamos uma entrevista com os pais para, por meio desta, compreender como concebem a infância, o que auxiliou na observação da rotina das crianças, suas brincadeiras, seus brinquedos, roupas, e suas formas de ser e estar.

    Na busca de desenvolver os objetivos, recorre-se à utilização de mais técnicas de observação do que de interrogação, caracterizando a pesquisa como um estudo de campo em um grupo, ressaltando a interação entre seus componentes (GIL, 2007).

    Durante o processo, os dados foram surgindo aos poucos pelo viés de oito observações (quatro em cada família) que constroem e sustentam as entrevistas que, inicialmente, tinham a intenção de ser iguais para as duas famílias, mas, compreendendo a situação destas, foi necessário fazer adequações na família B em razão de eles não terem acesso a tecnologias e condições de responder a entrevista. Assim, fomos fazendo as perguntas no decorrer das observações, que, posteriormente, passaram por um movimento de análise e reescrita. No diário de campo registramos episódios da rotina das crianças. As anotações foram sobre os elementos que nos instigavam e as relações que conseguíamos fazer com o referencial teórico que estávamos empregando. Nas observações e conversas com as crianças, buscávamos considerar o sujeito e suas situações, sendo esta utilizada na categoria de análise.

    A categoria usada para compor a observação foi: as questões de gênero no ambiente familiar, estudadas nas duas famílias. Com o propósito de investigar a rotina dessas crianças, utilizamos falas e acontecimentos que apareceram na investigação, buscando problematizar as questões de gênero nos dois ambientes. Dialogamos com as duas famílias, verificando as realidades da infância de cada uma.

Gênero

    A expressão “gênero” refere-se à construção social dos sexos (GOELLNER, 2013). Nascemos todos iguais, seres humanos, machos e fêmeas, e vamos sendo produzidos e nos produzimos de diferentes modos, pelas roupas, cores e brinquedos, que vão determinando, no contexto social, a qual gênero pertencemos.

    Durante as observações as questões das diferenças de gênero apareceram. Segundo Goellner (2013, p. 25), “algumas normas comportamentais compartilhadas, bem como as diferenças sociais e econômicas existentes entre os grupos humanos – principalmente de raça, classe e sexo – derivam de distinções herdadas e inatas”.

    Assim, percebemos que algumas características são marcadas pelo contexto em que se vive e se tornam mais viçosas em alguns ambientes. A família, que aqui chamaremos de A, é constituída pelo pai, mãe e dois filhos, que vivem juntos na mesma casa; o pai é agrônomo (empresário) e a mãe trabalha em um banco; os filhos estudam em escolas privadas; moram em um bairro bem-localizado no município; possuem como meio de transporte um carro e têm uma boa casa de alvenaria. No período em que as crianças estão em casa ficam sob os cuidados de uma “babá”.

    A outra família, que aqui chamaremos de B, é constituída pela mãe e sete filhos4 que vivem juntos na mesma casa. A mãe trabalha como catadora de papelão e sustenta a família. O pai não vive com eles. As crianças são filhos de pais diferentes e apenas alguns vão para a escola, que fica no bairro onde residem na parte periférica da cidade. O meio de transporte da família é uma carroça (com dois cavalos), também utilizada para o trabalho. A casa é de madeira e está em mau estado de conservação.

    Durante o tempo que passamos com a família A fomos bem-recebidas desde o início, e a casa estava sempre de portas abertas para nós pelo fato de já termos contato por meio do trabalho. Foi possível observar que eles têm uma estrutura familiar organizada, sendo os pais a referência. As crianças possuem bons hábitos de higiene, as roupas são bem-cuidadas e quase todas de marca. Elas são o “centro” da família, sempre limpas, e na casa percebe-se, pelas fotos nas paredes e os inúmeros brinquedos, o importante lugar que elas ocupam.

    A família B conhecemos pelo fato de já terem participado de outras pesquisas, porém foi mais difícil adquirir a confiança deles. Nesta família, foi possível observar que a sua estrutura familiar é diferente.

    A mãe é a referência e os irmãos mais velhos também o são para os menores. Os hábitos de higiene são precários. As roupas são quase todas recebidas de doações, e as crianças estão, muitas vezes, sujas e em segundo plano, e assim vão se adequando ao estilo de vida levado pela família (mãe).

    Na rotina da família A os pais saem de casa cedo para trabalhar, retornando somente para almoçar e à noite. As crianças acordam entre 8 e 9 horas da manhã e a “tata” já está lá para recebê-los e auxiliar na higiene (ir ao banheiro). Neste momento a televisão (na sala) já está ligada em um canal de desenhos infantis; eles vão para lá e, deitados no sofá, tomam o café (leite e bolachas).

    Na família A, logo na primeira observação, a entrevistadora diz: Bom dia!

    A menina responde: Vamos brincar de boneca? Só meninas brincam de boneca.

    No primeiro contato que tivemos com a família a menina já disse isto, deixando claro que bonecas são apenas para meninas e que o irmão não poderia brincar junto. Durante as observações foi se afirmando o comportamento das crianças. Em todos os lugares da casa percebemos características do que era dela e do que era dele.

    Segundo Nicolino e Silva (2013), as marcas sociais indicam uma construção cultural que determina identidades e corporalidades, diferenciando e hierarquizando as atividades/brincadeiras e comportamentos de meninos e meninas socialmente aceitáveis.

    Como podemos ver na Figura 1, no quarto dos brinquedos cada um tinha uma mesa para desenhar – uma azul e outra rosa – e, assim, quase todos os brinquedos eram duplos e as cores iam identificando o que era da menina e o que era do menino, ficando clara a forte separação de gêneros.

Figura 1. Cores que identificam – família A

Fonte: BURCKARDT, Eduarda. Setembro 2013

    Segundo Goellner (2013, p. 30):

    O gênero é observado como algo que integra a identidade do sujeito, que faz parte da pessoa e a constitui. Nesse sentido, masculinidade e feminilidade definem-se reciprocamente, visto não existir nenhuma essência a priori determinada para uma e outra identidade. Essas identidades ao contrário são produzidas na cultura, não havendo uma fixidez na sua reprodução.

    Assim sendo, as diferenças entre homens e mulheres se constroem ao longo da vida e por meio de inúmeras práticas sociais, como se vê na imagem a seguir:

Figura 2. Brinquedo menino/menina, família A

Fonte: BURCKARDT, Eduarda. Setembro 2013

    Nas observações da família B nota-se outra realidade entre as crianças. A televisão é um meio pouco utilizado (quase nada), pois as crianças não têm o hábito de ficar dentro de casa. Todos levantam às 7 horas da manhã. Os irmãos mais velhos vão para a escola e os pequenos, juntamente com a mãe, ficam em casa. As crianças passam a maior parte do tempo no pátio, e as observações foram todas feitas aí em função do pouco espaço dentro de casa. Eles possuem uma televisão que não tem canal específico para crianças e tampouco está em bom funcionamento para assistir os outros.

    Em virtude do contexto socioeconômico vivido por esta família, muitas coisas eles ganham, não podendo escolher a cor, o modelo e menos ainda dividir o que é de meninos e meninas.

    As crianças na família B vivem todas juntas, brincam das mesmas brincadeiras e as roupas não identificam se são meninas ou meninos. É usado o que serve em cada um, sem preocupação com cores, como se vê na Figura 3 a seguir. Os cabelos também não delimitam o gênero de cada um, pois são cortados todos da mesma forma.

Figura 3. Roupas meninos/meninas, família B

Fonte: BURCKARDT, Eduarda. Setembro 2013

    Dessa forma, ressaltamos que as normas que foram instituídas para homens e mulheres, tanto de roupas, atividades, cortes de cabelo, etc., não se deram de modo natural, mas foram sendo constituídas num processo cultural, como observam Saraiva e Kleinubing (2013, p. 125): “Não é apenas no momento do nascimento e da nomeação de um corpo macho ou fêmea que faz destes sujeitos masculino ou feminino. A construção do gênero dá-se ao longo de toda a vida, continuadamente, infindavelmente”.

    Observação família B:

    Em meio às observações e conversas trocadas:

    Entrevistadora: Vamos prender a franja com esse prendedor! (e mostrei o prendedor).

    Crianças: Eu quero! Eu quero!

    Todas as crianças, independentes de ser menina ou menino, quiseram colocar o prendedor no cabelo.

    Na família B não observamos em nenhum momento essa divisão do que é de menina e de menino; pelo contrário, todos fazem as atividades/brincadeiras juntos. Assim, para Schwengber (2013, p. 341),

    As identidades de gênero não são tomadas aqui como individualidades, nem como processo estático (e definido), mas como processo aberto que envolve uma incessante reorganização de significados culturais, com os quais nos relacionamos nos contextos socioculturais. Assim, entendo as identidades como múltiplas e plurais, podendo ser assumidas, ao mesmo tempo, pelo menos ou por diferentes atores sociais. As identidades são construídas, produzidas de forma discursiva e dialógica pelas representações dos discursos e dos objetos culturais.

Considerações finais

    Pelas nossas observações depreende-se que as crianças de classe média alta têm uma vida confortável, desfrutam de espaço e de uma forte demarcação das posições de gênero. Há alto investimento na família, podendo ser observado na compra dos objetos, tais como quarto, brinquedos, roupas. Destacamos que nessa família os brinquedos “educativos” giram em torno do futuro. Neste caso, funcionam como alternativa para o cuidado e, ao mesmo tempo, como investimento nas crianças. O contrário se observa no grupo de classe popular: não há a possibilidade de investimentos com a “preparação para o futuro” das crianças. Na classe popular da família B as crianças acabam se ocupando, principalmente as meninas, com tarefas domésticas. Na família A, geralmente acompanhados pela empregada, não organizam os seus próprios brinquedos.

    Inúmeras atividades corporais são realizadas pelas crianças da família B. A riqueza de objetos encontrados no pátio de casa transformam o simples brincar em momentos de criatividade e imaginação.

    Em uma ocasião as crianças encontraram um pedaço de tecido sujo e velho que estava no chão e colocaram nas costas. Ficamos observando. Elas foram para o alto de um monte de terra que tinha na parte da frente da casa e desceram correndo. Todas riam ao ver o movimento do pano (capa). Quando interagimos e perguntamos se elas estavam voando como os super-heróis, não responderam, ficando em seu olhar um ar de dúvida. Foi então que comentamos: – Igual ao Batman, Homem Aranha! E elas não conheciam nenhum desses super-heróis.

    Já na família A as crianças têm muitos brinquedos industrializados, conservando seu caráter de brinquedo, sendo destinado para a criança pela mesma razão. Quando entramos no quarto cheio de brinquedos falamos para as crianças: – Nossa! Quanto brinquedo legal tem aqui! Eles responderam: – Tem que dar um prêmio, de tanta coisa que tem aqui!

    Percebe-se que na família B, mesmo as crianças não sabendo quem eram os super-heróis que citamos, com um pedaço de tecido sujo elas estavam brincando de voar, cair, correr, e estas atividades, segundo Bomtempo (2007, p. 59), “representam experiências concretas que envolvem um mínimo de elementos de imaginação e de faz-de-conta”.

    Para Bomtempo (2007), quando a criança brinca ela está assimilando o mundo a sua maneira, pois a interação com o objeto não depende da natureza deste, mas da função que a criança lhe atribui, e isso é o que Piaget confere ao jogo simbólico.

    Bomtempo (2007) faz a relação de que a criança não vê o objeto como ele é, mas lhe dá um novo significado, e para ele o importante não é a similaridade do objeto com a coisa imaginada, mas o gesto. Nesse caso, o pano (tecido) comporta um gesto em relação ao objeto (avião) ao qual ela está atribuindo um significado.

    Já no caso da família A percebemos que ter todos aqueles brinquedos merecia um “prêmio”. Fica a idéia de muita coisa, de ter demais e, muitas vezes, nem saber com o que brincar. É o que Brougère (2000, p. 63) considera “como um objeto que introduz junto à criança a objetalidade própria a nossa sociedade, através da presença maciça e de sua importante valorização”.

    O brinquedo por muitas vezes não teve esse lugar tão expansivo na vida das crianças, ou então era visto/feito de outra forma. Conforme Benjamin (1984), o século 19 consistiu na substituição paulatina dos brinquedos artesanais por brinquedos fabricados industrialmente.

    Atualmente, Brougère (2000) nos fala sobre a materialização de um projeto adulto destinado para as crianças (vetor cultural e social). Esses objetos são, freqüentemente, reconhecidos como propriedade da criança, dando a ela a possibilidade de usar conforme a sua vontade, tendo pouco controle do adulto.

    A criança entra em contato com o discurso cultural sobre a sociedade por intermédio do brinquedo, dos livros, contos, desenhos animados, propondo um olhar sobre o mundo. Nesse aspecto o brinquedo tem uma especificidade no fato de ter volume e convidar à manipulação lúdica (BROUGÈRE, 2000).

    Após as observações, perguntamos às crianças onde elas gostavam de brincar. Na família A as crianças falaram que o melhor lugar para brincar é o pátio, pois dá para jogar bola, e também gostam da garagem e do quarto dos brinquedos. Já na família B, as crianças ficaram com o pátio, e ainda explicaram que não podem sair para fora do pátio para brincar com os vizinhos e nem ir à rua, pois a mãe não deixa.

    Como podemos perceber, as rotinas das duas famílias são um tanto distintas, apresentando diferenças nesse repertório criança-brinquedos, principalmente no que se refere à organização do espaço e os efeitos de gênero. Cabe ressaltar aqui, porém, que nas duas famílias a melhor opção de lugar informada para a brincadeira foi o pátio; o que muda são os modos de acesso e o tempo destinado a esse espaço nos dois contextos.

    Na medida em que situamos grupos com maior capital econômico e cultural, parece que maiores são as relações de assimetria entre meninos e meninas. O grupo de classe popular não tem forte diferenciação de gênero. No grupo de classe média alta, as relações entre meninos e meninas estão distribuídas de forma mais marcada.

    Aqui se concretiza o esforço analítico de problematizar as diferenças de infâncias a partir de potentes marcadores de gênero e classe social. O que destacamos foi a conjugação destes dois vetores na organização das temporalidades entre crianças pertencentes a grupos socialmente distintos. Essa é uma discussão inicial ao debate.

Notas

  1. Canção cantada pela Chapeuzinho na história Chapeuzinho Vermelho, versão original dos Irmãos Grimm, adaptada por Maria Mazzette, 1970.

  2. Dou créditos à idéia de usar a literatura infantil para Cinthia Fernandes, que me inspirou com sua Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.

  3. Música: Mundo Novo – Trilha sonora Deu a Louca na Chapeuzinho.

  4. Os que tivemos contato durante as observações.

Referências

  • ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

  • BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. 4. ed. São Paulo. Summus, 1984.

  • BOMTEMPO. E. A brincadeira de faz-de-conta: lugar do simbolismo, da representação, do lugar imaginário. In: KSHIMOTO, Tizuco Morchida (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

  • BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e cultura, revisão técnica e versão brasileira adaptada por Gisela Wajskop. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

  • CURIA, Luiz Roberto; CESPEDES, Lívia; NICOLETTI, Juliana (Cols.). ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). In: Vade Mecum Saraiva. 15. ed. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

  • FERNANDES, Cinthia. Eu gosto de brincar com os do meu tamanho. Culturas infantis e cultura escolar – entrelaçamento para o pertencimento etário na instituição escolar. Porto Alegre, 2008. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15690/-000688649.pdf?sequence=1. Acesso em: 13 jan. 2013.

  • GOELLNER. S. A contribuição dos estudos de gênero e feministas para o campo acadêmico profissional da Educação Física. In: DORNELLES, Priscila Gomes; WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione (Org.). Educação Física e gênero: desafios educacionais. Ijuí: Ed. Unijuí, 2013.

  • GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

  • GUARESCHI, N. M. F.; HÜNING. S. N. Reflexões sobre o desenvolvimento da criança na contemporaneidade. Revista do Departamento de Ciências Humanas e do Departamento de Psicologia, n. 24, 2006.

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2008_2009/POFpublicacao.pdf. Acesso em: dez. 2013.

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  • NICOLINO, A.; SILVA, A. Corpo e gênero na percepção de educadoras/es. In: DORNELLES, Priscila Gomes; WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione (Org.). Educação Física e gênero: desafios educacionais. Ijuí: Ed. Unijuí, 2013.

  • SARAIVA, M.; KLEINUBING, N. Estereótipos de movimento e gênero na dança no Ensino Médio. In: DORNELLES, Priscila Gomes; WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione (Org.). Educação Física e gênero: desafios educacionais. Ijuí: Ed. Unijuí, 2013.

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